29 de janeiro de 2014

Dancing in the Dark

Apesar das guitarras inexistentes e dos ritmos electronicamente gerados, os Suicide foram o primeiro  grupo a autodefinir-se como punk. Surgido no alvor dos anos 70, o duo nova-iorquino formado por Alan Vega e Martin Rev causou controvérsia, animosidade e estranheza logo à partida, mas foram também esses elementos que os fizeram perdurar no tempo e tornar-se um dos projectos mais influentes do final do século XX sem nunca perderem o estatuto underground.
O primeiro álbum, clássico absoluto e um dos discos mais distintos da sua era, surgiu apenas em 1978. Nessa altura, os Suicide já não soavam e pareciam tão singulares e ofensivos como nos primórdios, mas a postura confrontacional mantinha-se, especialmente nos concertos ao vivo, eventos normalmente utilizados pelo vocalista Alan Vega para espicaçar e provocar o público, observado pelos impenetráveis e constantes óculos escuros do gerador de sons Martin Rev.
A música de Suicide é densa, tensa e sombria. Quase lúgubre no seu negrume e envolta numa disforia espectral. Os trovejos electrónicos expelidos pelos teclados de Rev alternam entre o calor hipnótico e o frio imaterial. Vega paira por cima, qual morcego rockabilly, debitando vocalizações que invocam os fantasmas de Elvis Presley e Gene Vincent.
As letras são vagas e minimais. America, America is killin' its youth, ouve-se em Ghost Rider, o propulsivo e intenso tema de abertura. Gonna crash, gonna die and I don't care, apregoa o urgente e turbulento Rocket U.S.A.. E Frankie Teardrop leva ao extremo a união entre palavras explícitas e música transtornada, com o relato de um jovem operário que fica na miséria e mata mulher e filho, suicidando-se em seguida. We're all Frankies, we're all lying in hell, clama Alan Vega no final, e ninguém sai incólume deste filme de terror sonoro.
Girl debita ritmo em chicotadas metralhadas e Cheree é uma das canções de amor mais desviantes e incomuns de sempre. Um abraço quente na frieza das ruas, um poema parco em palavras mas rico em ardor. E é da desolação das ruas escuras da Nova York dos anos 70 que toda a música de Suicide se alimenta. Um disco para ouvir sempre fora de horas e sempre um disco fora de tempo, apesar de inovador e influente.
A reedição de 2000 desta obra seminal acrescenta-lhe um merecido e lendário artefacto: 23 Minutes Over Brussels, gravação de um concerto em que os Suicide abriam para Elvis Costello. A hostilidade do público para com a banda passa de latente para evidente, Vega e Rev são forçados a abandonar o palco e Costello responde tocando apenas uns minutos. Tudo termina em motim e pancadaria. Alan Vega pode ter saído da Bélgica com o nariz partido, mas foi ele e o seu parceiro que riram melhor no fim.

15 de janeiro de 2014

Às Armas

A música dos Gun Club entranha-se como o calor da sua Califórnia natal. Mas é um calor nocturno, que rasteja pelo deserto e se infiltra na cidade, acordando vícios e transgressões. É música urgente e vibrante, mas que carrega o peso das raízes americanas, fantasmas do passado que encarnam no esqueleto do punk e do rock de garagem.
O grupo de Los Angeles foi formado em 1979 por Jeffrey Lee Pierce e Brian Tristan, em breve rebaptizado Kid Congo Powers. O melting pot entre a energia do punk, a visceralidade dos blues e a atmosfera ao vivo quase tribal que os Gun Club exibiam lançou as primeiras sementes para subgéneros como o punk blues e o psychobilly.
Aquando da edição de Fire of Love, o guitarrista Kid Congo Powers tinha-se tornado membro das principais referências deste último, os Cramps. Mas isso não impediu que o primeiro álbum dos Gun Club fosse um prodígio vertiginoso e venenoso de urgência, desespero e intensidade. Os seus 40 minutos passam como um ritual voodoo alimentado a guitarras extáticas e ritmos inquietos, em que a atmosfera alterna entre o transe arrebatado e o torpor narcótico.
Sex Beat é, em si, uma referência. Um frenesim diabólico de sexo, drogas e country fustigado pelo punk. Um som crú mas refrescante em simultâneo, expelindo fantasmas das trevas musicais americanas à luz de 1981. A sedução com odor a morte é uma constante ao longo do disco. She's Like Heroin To Me, pulsante e intoxicante, contém a mesma mensagem dúbia, o vício como mulher ou uma mulher como vício. Impossível não relembrar as palavras de Keith Richards na sua biografia quando diz heroin is the most seductive bitch in the world. 
For the Love of Ivy é coberta por uma mortalha gótica, uma história de amor e morte entre a surdina paranóica e o estouro descontrolado que soa a antepassada remota dos tremendos 16 Horsepower. A mesma sombra gótica, sulista e fatalista, paira sobre a cavalgada espectral de Ghost on a Highway. Uma versão demolidora de Preaching the Blues transforma o original de Robert Johnson num lança-chamas musical, tão contagiante como infernal. Goodbye Johnny despede-se como um outlaw country tocado por cowboys demoníacos que inflingem descargas eléctricas de guitarra como se fossem chicotadas.
Ao longo do disco, Jeffrey Lee Pierce estraçalha a laringe que nem um perdido e a temática das suas letras não deixam muito espaço à imaginação quanto ao seu estilo de vida e ao destino que o aguardava. Pierce morreria em 1996, depois de anos de abuso de drogas e álcool, seropositivo e cirrótico. O seu legado musical com os Gun Club, que começou a ser escrito de forma brilhante e influente em Fire of Love, depurou-se e transmutou-se ao longo de mais seis álbuns. Com altos e baixos, mortes e ressurreições até ao estertor final. O legado é notório e salta à vista, mas nada excede o pecado original.