30 de novembro de 2015

Poesia para as Massas



Algures entre Songs From a Room e Songs of Love and Hate, seus segundo e terceiro álbuns, Leonard Cohen passou, de forma algo relutante, pelo festival Isle of Wight de 1970. O que, à primeira vista, poderia parecer um desastre, resultou num concerto-experiência intimista para meio milhão de pessoas. Uma noite, a todos os títulos, mágica e poética, e à qual é possível aceder desde a edição revista e aumentada de Live at the Isle of Wight, editada em 2009.
Os temas que compõem o concerto são, na sua esmagadora maioria, oriundos dos dois primeiros discos do baladeiro canadiano - Songs of Leonard Cohen e o supramencionado Songs From a Room - e incluem clássicos como Suzanne, Bird on a Wire ou Hey, There's no Way to Say Goodbye. Porém, Famous Blue Raincoat e Sing Another Song, Boys, sementes do genial Songs of Love and Hate, são igualmente lançadas sobre a turba silenciosa e atmosfera quase sacra.
Não deixa de ser um artefacto inusitado assistir a um poeta de gabardina enquanto encanta uma multidão de hippies numa noite de Verão com a solenidade hipnótica da sua voz, uma guitarra melancólica e parcos artefactos acessórios. Uma estranha forma de beleza que agora é contada em filme.


                       
leonard cohen isle of wight 1970 full complete concert from sujit phatak on Vimeo.

28 de novembro de 2015

Zénite Lunar

É impossível não chegar ao fim de Moon Blood com uma sensação de esmagamento. Especialmente para quem enceta, pela primeira vez, contacto com os Fraction.
Se existem bandas injustamente condenadas ao esquecimento, estes californianos são membros honorários do clube. Formado por trabalhadores que ensaiavam nas primeiras horas da manhã, e antes dos seus afazeres proletários, a estranheza deste quinteto acentua-se pelo facto de se assumirem como uma banda cristã. Mas que soa como se tivesse o diabo no corpo.
O que torna os Fraction apelativos é a entrega verdadeira que colocam em cada nota tocada e sílaba cantada. Uma urgência ponderada, mas igualmente ritualista. Certos arautos anunciam Moon Blood como o álbum que os Doors nunca fizeram mas que sempre almejaram, e é notória a aproximação - entre o transe e a explosão - do vocalista Jim Beach a Jim Morrison. Todavia, a ausência dos teclados floreados de Ray Manzarek e a preponderância das guitarras, regurgita ecos da escuridão dos Black Sabbath e da intensidade dos Stooges.
É tarefa complicada apontar pontos altos a uma obra tão monolítica e consistente como Moon Blood, o único longa-duração do grupo. O álbum funciona como um turíbulo que asperge incenso heavy psych a cada movimento. O ano do seu lançamento remonta a 1971, mas parece obra padroeira do stoner rock.
Se a produção reflecte os meios state of the art da época, podemos agradecer o facto dos Fraction não terem sofrido uma lapidação artificial. O som é crú e os únicos efeitos que prevalecem e intoxicam são o fuzz das guitarras, filhas pródigas do psicadelismo. Os ritmos são densos e narcóticos, acentuando o inusitado cocktail bíblico-roqueiro que evangeliza o ouvinte pela incineração.
Um enorme disco de uma enorme e perdida banda, Moon Blood ganha, actualmente, contornos de fanatismo no que concerne à sua edição original. Delícia para melómanos obsessivos (e cristãos propensos a romarias ácidas de quando em vez), o encanto hipnótico e denso de Sanc-Divided, Come Out of Her, Eye of the Hurricane, Sons Come to Birth e This Bird (Sky High) urge ser reavivado ad aeternum, pois nunca será ad nauseam. Prisms, Dawning Light e Intercessor's Blues são apêndices que completam a reedição do disco, surgida em 2010, e que não abanam, de forma alguma, os pilares que o sustentam.
Indubitavelmente um dos discos mais intensos, penetrantes e intoxicantes do rock americano pós-Woodstock, Moon Blood retém o espírito da era, mas aventura-se por labirintos sem medo de não encontrar a saída. Se a fé move montanhas, esta obscura e deslumbrante obra-prima comprova-o fervorosamente.

24 de novembro de 2015

Kosmische Kosmetik XLVIII

Jeronimo. Nem o líder do PCP (o que hoje não deixaria de vir a propósito), nem propriamente uma banda do espectro genuíno do krautrock. Talvez o epíteto de banda mais americana do rock alemão seja o que melhor defina este trio, surgido em finais dos anos 60 e criador de três obras a perseguir e capturar.
De todas, a primeira será a mais estranhamente aprazível e deliciosamente acessível. À primeira audição, é quase impossível avançar com a teoria que o rock possante e de laivos psicadélicos que se eleva, fumegante e viscoso, de Cosmic Blues, seja engenho germânico. A voz de Rainer Marz não deixa cair a máscara que revele um sotaque teutónico, assim como a sua guitarra rola e flui com gingares pélvicos. Da mesma forma, o baixo de Gunnar Schäfer e a bateria de Ringo Funk investem em sintonia como dois panzers artilhados de groove. O resultado deste combo bem oleado e atrevido é, assim, um disco de excelente rock musculado e solto, com tanto de orelhudo como de imponente.
Um primeiro vislumbre sobre a capa e os senhores hirsutos que a decoram projecta-nos para um imaginário que cruza os Blue Cheer com os Black Sabbath. Tal não será descabido, pois os Jeronimo apresentam-se com a energia dos primeiros e o peso-pesado dos segundos. Todavia, o seu psicadelismo não chega nunca a ser lisérgico e Belzebu não parece habitar estas paragens. O termo proto-metal assenta-lhes muitíssimo bem, mas as influências são bem mais abrangentes, dos Kinks mais incisivos em News, aos blues pomposos dos Cream em The Key, passando por um Bob Dylan em versão prazenteira em The Light Life Needs.
Os temas cativantes sucedem-se, tornando Cosmic Blues uma obra de coerência e consistência contagiantes. Apesar do rock ser hard, as vibrações são boas e luminosas. A melhor prova encontra-se nos dois singles do álbum, que causaram relativo impacto aquando da sua edição em 1970: Na Na Hey Hey e He Ya, canções celebratórias e convidativas a um discreto mas veemente headbanging.
A partir daqui, é só deixar que estes alemães nos ponham a mexer, com maior ou menor intensidade, através da combustão constante de So Nice To Know, Let The Sunshine In ou Never Goin' Back, temas que parecem colocar a Califórnia na Baviera.
Cosmic Blues, é, acima de tudo, um disco de feel good music. Um álbum de rock despretencioso, mas forte e extremamente lúdico, cujos 40 minutos de duração constituem uma curta mas eficaz panaceia contra dias cinzentos e outros tormentos. A acompanhar com cerveja.

22 de novembro de 2015

Folie Cosmique

A arte sonora do francês Pierre Zalkazanov evidenciou-se, obscura e remotamente, num disco de paisagens electrónicas denominado Green Ray. Tal obra, editada em 1976, permaneceu num recanto poeirento de memórias futuristas, mas merece de sobremaneira o resgate para ouvidos presentes.
O seu charme não reside na novidade ou na audácia - pouco ou nada de novo conseguimos desenterrar do filão electrónico dos idos de 70 -, mas na sedutora envolvência que reveste os três temas que o compõem.
Imagine-se um motor híbrido, criativamente posicionado entre as paisagens infinitamente estelares e estéreis de Klaus Schulze e a sónica torre em mel de Jean-Michel Jarre. Um Volkswagen com as curvas de um Citröen, eis a infraestrutura que alberga Green Ray.
É impossível não olhar esta obra como uma reacção, ou um derivado, da cena electrónica germânica da época. Todavia, ao invés de ser mais um sucedâneo de herméticas ruminações provindas do lado oculto da Lua, o primeiro disco de Zanov apresenta-se como um monolito colorido, um vitral de paisagens gélidas e inóspitas, mas de recortada e tangível beleza.
O tema-título, hipnótico e onírico, resume o condão dos sintetizadores analógicos em criar espirais dançantes de coreografia artificial. Mesmo arcaico, o som é caleidoscópico, servido em camadas que parecem desdobrar-se infinitamente, adornado por tons escuros, mas estranhamente sedutor.
Machine Desperation incorpora um rigor austero e evolui mecanicamente, num pulsar que consome tudo o que encontra na sua roldana. Não existem melodias identificáveis, ou harmonias aconchegantes, mas apenas um convite ao mergulho no vazio, embalado por braços indefinidos.
Green Ray nunca deixa de ser experimental, o que se encontra bem patente na longa e alquímica navegação que o encerra. Running Beyond a Dream revela-se como o astronauta perdido no espaço, estranho a tudo o que o rodeia, mas demasiado fascinado para temer o desconhecido. O tempo parece suspender-se e os sons ecoam como canto de sereias. Ao nível do melhor do supramencionado Schulze ou dos Tangerine Dream, esta peça constitui uma verdadeira delícia para os amantes da música que encerra nos seus domínios o espaço profundo.
Belo na sua essência e recompensador no seu transe atonal mas inebriante, Green Ray é uma estrela distante, mas intensamente brilhante, da era de ouro da música electrónica. Ouvi-lo hoje é, simultaneamente, nostálgico e desafiante. E tão recompensador como sentir saudades de um futuro que poderia ter sido idêntico ao que sonhámos.