28 de fevereiro de 2021

Lights, Camera...Revolution!

 



Melhor que um excelente livro, só mesmo um excelente filme. E vice-versa. Easy Tigers, Raging Bulls, subtitulado How the Sex'n'Drugs'n'Rock'n'Roll Generation Saved Hollywood é uma viagem imersiva e fascinante aos meandros do cinema americano dos anos 60 e 70. Editada originalmente em 1998, esta obra do crítico e historiador do cinema Peter Biskind relata a revolução levada a cabo na Meca da sétima arte no seguimento do pós-Segunda Guerra Mundial e no advento da guerra do Vietname. 
Pleno de histórias de bastidores, episódios anedóticos e retratos reais de actores, produtores e realizadores, o livro continua a ser objecto de estudo e culto para todos os cinéfilos e/ou interessados na mudança radical iniciada em Hollywood há 60 anos e perpetrada por beatnicks, hippies, estudiosos entusiastas da Nouvelle Vague francesa e agitadores da contra-cultura norte-americana.
Outro dos méritos de Easy Tigers, Raging Bulls é colocar o leitor como espectador/voyeur no backstage de obras agora seminais e clássicas como Easy RiderThe Exorcist, Taxi Driver ou Apocalypse Now. Os egos, excessos e fragilidade humana das estrelas imaculadamente imortalizadas no grande ecrã desfilam em parada e, até à data, são alvo de controvérsia e acusações de falta de veracidade.

Easy Tigers, Raging Bulls foi objecto de um filme documental em 2003, realizado por Kenneth Bowser e narrado pelo actor William H. Macy. A película constitui um complemento essencial e bem estruturado à obra escrita, contendo depoimentos interessantes e sumarentos de alguns dos principais intervenientes.

Em suma, ambos os documentos proporcionam um trajecto revelador e exaustivo através de uma das épocas mais inovadoras e marcantes do cinema, não só norte-americano, mas mundial. Muito da cultura popular actual e do nosso imaginário colectivo foi construído com base nos filmes desta era dourada/tresloucada. Afinal, quem nunca olhou para o espelho e lançou um "Are you talking to me?"



             

9 de fevereiro de 2021

Good & Bad Vibrations

 



I am Brian Wilson narra a fascinante história do génio musical e criativo que orquestrou a elevação dos Beach Boys a um dos grupos mais marcantes da história da música popular. Escrito na sequência de uma série de entrevistas com o romancista e jornalista Ben Greenman, é uma biografia cândida e intimista que nos ajuda a penetrar na mente tão brilhante como conturbada de um dos maiores escritores de canções vivos.
Através das memórias sem filtro de Brian Wilson, o livro transporta-nos ao longo de uma vida em montanha russa. Períodos incómodos e sombrios - como a relação com o pai abusivo na infância e com o violento e manipulador psiquiatra Eugene Landy -, contrastam com momentos gloriosos e luminosos - a criação da obra-prima Pet Sounds e o casamento com Melinda Ledbetter.
I am Brian Wilson subdivide-se em capítulos intitulados de forma prosaica e directa: Fear, Sun, America, Time... Ao longo de cada um deles, o músico revela a história da sua vida de forma simples e apaixonada, num deslumbramento quase infantil.
A relação com a música ganha óbvio lugar de destaque, sendo fascinante/desconcertante a forma como Wilson descreve as suas inspirações e influências, bem como o método de criação de temas considerados imortais, como os excelsos God Only Knows ou Good Vibrations.
I am Brian Wilson é uma obra fundamental para entender um artista tantas vezes incompreendido como homem e a forma como a arte pode ser um fardo e uma libertação, um anjo e um demónio. As boas e as más vibrações sucedem-se ao longo desta fascinante existência, numa luta constante contra o fantasma da fragilidade psíquica e em busca da paz. 
Neste Inverno que parece nunca mais ter fim e em que a esperança se torna fundamental para enfrentar tempos de doença e medo, estas páginas recuperam memórias de dias felizes, solarengos, de praia e de mar, Verões que a música de Brian Wilson ajudou de sobremaneira a cristalizar no imaginário colectivo. Esperemos que tais dias despreocupados voltem depressa e que as nuvens no horizonte não sejam mais que isso.

6 de fevereiro de 2021

Kosmische Kosmetik LVII

 

O outro projecto musical do multi-instrumentalista alemão Nico Seel intitula-se The Space Spectrum. Aqui, o seu alter ego escapa às influências rítmicas maquinais e à austeridade melódica, enveredando por uma vertente assumidamente cósmica e psicadélica.
The Space Spectrum é forjado na encruzilhada onde o Krautrock e o Space Rock se encontram. Desta feita, as referências imediatas centram-se nos Hawkwind e nos Pink Floyd dos primórdios, mas o improviso trippy de conterrâneos como Amon Düül II encontra-se igualmente latente ao longo dos dez álbuns já editados com o selo do projecto.
O primeiro deles, denominado Cosmic Sounds, remonta a 2011. Tal como na one man band Krautwerk, Nico Seel assegura todos os instrumentos audíveis no disco. A solidão artística imperou até 2013, altura em que, ao sexto álbum, os Space Spectrum se transformaram num quarteto, deixando para trás a aura artesanal, porém charmosa, que caracterizava a sua obra até então.
Cosmic Sounds é um disco pesado e denso, que cobre o ouvinte com um frio manto espacial e o embala ao longo das eternas trevas cósmicas. É composto por quatro longas peças instrumentais, aparentemente indistintas entre si, mas que se desdobram em subtis nuances. The Dead Cosmonaut avança, em constante propulsão, como nave desgovernada a orbitar o vazio. O ritmo é árido. As guitarras, fustigantes.
Lunatic Moon recupera os Hawkwind da fase mais abrasiva - por alturas de Doremi Fasol Latido - e engole-nos numa espiral de guitarras minimais, ritmos hipnóticos e apontamentos electrónicos que vibram como flashes luminosos num escuro caminho.
The Giant Orbit é a peça central de Cosmic Sounds. Tema colossal, é dominado por um riff de guitarra circular e penetrante, ritmos que variam entre o arrastado e o marcial, e a subtil mas omnipresente ornamentação electrónica, que povoa o disco e acentua o psicadelismo gélido da sonoridade.
A fechar, Sleeping Moon acentua a atmosfera desoladora contemplada ao longo de todo o disco. Move-se lentamente, em ritmo funéreo, e as notas da guitarra caem como elegíacas gotas de cristal.
Cosmic Sounds é, acima de tudo, o trabalho de um devoto. De um purista que almeja homenagear as suas raízes musicais e, dessa forma, sentir-se mais próximo e comungar do seu universo. Nico Seel conseguiu tal feito aqui, exemplarmente. Pode sentir-se orgulhoso.

Kosmische Kosmetik LVI

 

O nome não podia ser mais óbvio e, no entanto, soa descaradamente a lugar-comum: Krautwerk. Bebe do movimento musical alemão e de um dos seus grupos seminais. Trata-se de uma one man band criada por Nico Seel, projecto essencialmente artesanal que tem debitado discos em cadência constante desde 2014. 
Além dos Kraftwerk como óbvia referência, o músico germânico presta reverência aos Neu!, e aos Can ao longo dos 7 álbuns lançados até à data, sendo o responsável pela execução de todos os instrumentos que compõem a sua tapeçaria sonora. Todas as obras apresentam semelhanças em termos de forma e conteúdo, constituindo peças quase académicas na forma como estudam e depuram o núcleo da sonoridade austera, motorizada, mas igualmente melódica e emotiva, encapsulada no melhor Krautrock.
1971 é o nome do primeiro álbum de Nico Seel sob o pseudónimo Krautwerk. Explorá-lo auditivamente é uma experiência deveras desconcertante, porém fascinante. Dir-se-ia estarmos perante um disco perdido dos Neu!, gravado algures entre Neu!2 e Neu!75, que ficou conservado em âmbar numa cave escura e foi milagrosamente redescoberto em 2014.
Ao longo de seis peças, somos transportados por um maravilhoso mundo de guitarras reverberantes, ritmos motorik, melodias intrusivas e constantes momentos de deleite abandónico.
Os temas que compõem 1971 não têm título, somente um número. Provavelmente porque o álbum deve ser ouvido como ou todo, exercendo, dessa forma, o seu poder hipnótico e físico. Tal como o melhor dos Neu!, este disco aponta miras ao cérebro e ao corpo em simultâneo, alimentando ambos por igual e convidando a um escapismo sedutor e sem efeitos perniciosos.
Em adição aos seis poderosos e irrepreensíveis temas originais de 1971, as novas edições do álbum contêm mais dois temas, igualmente sem nome e identificadas como VII e VIII. Pese embora apresentarem uma toada mais agressiva e decorada por elementos electrónicos, ambos apenas ajudam a prolongar o prazer sensorial dos apreciadores de tais sonoridades.
Pode ser uma pastiche descarada dos Neu!. Pode ser uma respeitosa homenagem ao duo composto pelo malogrado baterista Klaus Dinger e o guitarrista Michael Rother. Pode ser ainda uma tentativa de replicar a sonoridade dos mesmos em pleno século XXI. Sendo isso tudo, ou nada disso, 1971 é um absoluto deleite.