23 de agosto de 2009

Poema para S. V



Linda princesa
No paraíso forjada
Com alma de ninfa
E magia de fada
Tens o sopro da vida
Que me faz despertar
E o brilho de mil estrelas
A incandescer-te o olhar.

Anjo lindo
Que guardas o meu coração
Tão leve como uma pena
Tão pesado de paixão
Desejo que estas palavras
Vindas de quem tudo te diz
Te façam sentir como és amada
Me façam sentir como és feliz.

22 de agosto de 2009

As Fontes Pálidas e a Cabana Partida

The Pale Fountains: As Fontes Pálidas. Enamorei-me do nome mesmo antes de os ter ouvido. Lembrava-me pureza, frescura e riachos primaveris. E a música não me defraudou. Escutei-os pela primeira vez a caminho do Bairro Alto, no carro de um amigo alentejano, mas moscavidense por imposição, que detinha uma velha e passada cassette do primeiro álbum. Foi um caso de paixão à primeira audição. Desde esse altura, nunca mais os esqueci.
Os Pale Fountains nasceram para ser uma banda de culto. Tinham tudo contra eles. Na época em que lançaram o seu primeiro LP, reinavam colectivos como os urbano-depressivos Echo & The Bunnymen, os divinos mas miserabilistas Smiths e os gottico ma non troppo Cure. Os Pale Fountains pareciam ser felizes, logo, carta fora do baralho. No cinzentismo dominante, Pacific Street, o registo de estreia do grupo, injectava flashes de luz e cor, influenciados maioritariamente pelos Love, pelos Byrds e pela bossa nova, com arranjos opulentos e expressivos na melhor tradição de Burt Bacharach. Pacific Street é um álbum ímpar no panorama dos anos 80, rivalizado apenas pelo ingénuo mas loquaz You Can't Hide Your Love Forever dos Orange Juice e pela pop existencial e adolescente, imberbe mas afectada, de High Land, Hard Rain dos Aztec Camera. Enquanto a maioria das bandas britânicas se escondia dentro das suas gabardinas e aspirava os ares herméticos e fumarentos da cidade em busca da sua musa, os Pale Fountains eram seres sacrílegos, vistos a passear de canoa, envergando calções e bonés e munidos de canas de pesca.
Pacific Street é um álbum radioso e optimista, rasgado por momentos mais circunspectos e melancólicos, mas nunca soturnos. É a banda sonora de uma vida sem mácula, que nos remete para uma adolescência eterna, para uma juventude despreocupada, em que os amigos eram verdadeiros e omnipresentes e o amor era um caleidoscópio de emoções difícil de entender, mas delicioso de sentir. Um disco de idealizações e de reminiscências, de fuga e de nostalgia, com as hormonas à flor da pele. Iluminado por excelentes canções, torna-se tarefa difícil apontar pontos altos neste disco, se bem que o pôr-do-sol à beira-mar que emana de Something On My Mind e Unless mereçam destaque. A folk com laivos de soul de Southbound Excursion é igualmente assinalável, tal como a placidez primaveril e campestre de Beyond Friday's Field e a estival e exuberante You'll Start a War. O brilhante uso dos sopros, constantes e carnais, fazem de Pacific Street um disco ainda mais caloroso. Prova disso são dois breves e súbitos trechos instrumentais que arrebatam completamente pela sua genialidade: Faithful Pillow (Pts. I & II). Só o que está intuído nestas pequenas peças lindas de morrer dava para construir uma sinfonia completa.
A complementar a edição em CD desta pérola, surgem os primeiros singles gravados pela banda, e que se desviam ligeira e esteticamente da edição original. São temas mais acessíveis, possuídos pelo espectro do easy listening, via Bacharach, o que afasta ainda mais os Pale Fountains das tendências da época. Palm Of My Hand poderia ter sido cantada por Dionne Warwick e a açucarada Thank You, com a sua orquestração em cascata, poderia ter concorrido ao Festival da Eurovisão de 1982. Autênticos OVNI resplandecentes a sobrevoar a urbe negra e poluída... Os Belle & Sebastian não seriam nada se este disco não tivesse existido.
Em 1985, e em resposta à falha comercial do primeiro àlbum, os Pale Fountains regressam com uma produção menos subtil e um som mais endurecido em ...From Across The Kitchen Table. Disco mais directo, não possui a beleza tranquila do seu antecessor, revelando-se mais atrevido e musculado. A sólida e focada produção de Ian Broudie não dá muito espaço para ler nas entrelinhas, mas arrancam-se momentos memoráveis no cantarolável Jean´s Not Happening, no urgente tema-título e no ambiente frustrado de cabaret vazio de Bicycle Thieves. Mais uma vez, o disco não teve o sucesso esperado e a banda de Liverpool separou-se. O líder Michael Head formou os Shack com o seu irmão John e o fabuloso trompetista Andy Diagram juntou-se aos ainda verdinhos James.

O primeiro álbum dos Shack, editado em 1988, e intitulado Zilch, é uma obra embrionária no que haveria de ser esta banda. As influências de Michael Head continuam imutáveis, nomeadamente os Love e os obrigatórios Beatles, e a tendência para compôr melodias clássicas e intemporais, deliciosas para os ouvidos, dão os primeiros e tímidos passos neste disco praticamente esquecido. O melhor ainda estava para vir, mas tomara muitas bandas conseguirem momentos como Emergency, High Rise Low Life, I Need You ou Someone's Knocking, esta última profetizando a ascenção dos marcantes Stone Roses.
Filhos do azar, para além de serem uma excelente banda ignorada comercialmente, os Shack sofrem um enorme revés quando, após a conclusão do seu segundo LP, Waterpistol, o estúdio arde, consumindo a maior parte das bobines que o continham. Uma única cópia do resultado final do álbum foi encontrada num carro alugado pelo produtor, mas ninguém o quis destribuir. Em 1995, quatro anos depois de ser gravado, o belíssimo Waterpistol foi finalmente editado pela alemã Marina Records, falhando novamente o sucesso. E belíssimo é a palavra exacta para um disco desta qualidade, uma jóia no meio de tanta mediocridade que, amiúde, é anunciada pela histérica imprensa musical britânica como the next big thing.
Preenchido por um ambiente geral de melancolia e desencanto, apesar das melodias graciosas e cristalinas, num planeta normal, este disco deveria ser uma lição para bandas como os Oasis. Aqui está tudo o que de melhor foi feito nas últimas quatro décadas de bandas de guitarras. Love, Beatles, Byrds, Stone Roses, todos eles se encontram neste disco como num labirinto de espelhos. Neighbours consegue enveredar pelos mesmos trilhos dos Pale Fountains e, ao mesmo tempo, fazer com que nos esqueçamos deles. Time Machine é uma brilhante composição, uma canção com C grande, plena de entrega e génio. Tal como o génio que habita a sublime balada Undecided, provavelmente a melhor canção que Michael Head compôs até à data. Hazy é um belíssimo exercício em tons de country rock e Stranger uma valsa intoxicada e sonolenta. Este disco parece ter sido feito para ser ouvido naquele período em que acordámos, mas ainda nos mantemos no limbo, num misto de sonho e realidade. E foi mais um disco que passou como um fantasma pelo universo melómano dos anos 90...
Após uma tournée a acompanhar os seus ídolos Love, Michael Head fez uma pausa nos Shack em 1997, e editou em conjunto com os Strands, banda propositadamente reunida para o efeito, mais um álbum de avassaladora e genial beleza denominado The Magical World of The Strands. O disco parece ter pegado na suave faixa acústica que fecha Waterpistol, a balada London Town, e seguir esse rumo para fabricar um disco outonal e recatado, pop de câmara, como foi já denominado. Esta obra é o corolário definitivo de Head como grande escritor e intérprete de canções. A sombra de Nick Drake, o lado mais sensível de Roger McGuinn e as texturas orquestrais dos Tindersticks marulham ao longo das onze canções do álbum. Queen Matilda, Something Like You e Fontilan são canções de elevadíssimo gabarito e que merecem tudo menos o esquecimento. Mas o génio de Michael Head continuava a não ter o reconhecimento merecido e as intermitentes malhas da heroína tornam-se uma mandíbula que o aprisiona cada vez com mais força. É pertinente questionar o que leva o homem a compôr, perante tanta adversidade e indiferença...
Em 1999, os Shack editam o seu terceiro álbum e conseguem o seu, ainda que modesto, pico de sucesso. A produção é eficiente e os temas são fortes, como se o líder da banda conseguisse ainda encontrar força na adversidade e responder com canções que são positivas e autênticos testemunhos de uma vida de revéses e droga. H.M.S. Fable é mais um grande disco, não tão orgânico como os anteriores, mas que debita diversas pérolas, em hinos como Natalie's Party e Beautiful, ou harmonias magníficas como o esmagador Comedy. A aura sombria de Nick Drake ainda se sente na canção que serve de título ao álbum e Daniella encerra-o de forma arrepiante e funesta, como se Arthur Lee fosse fechado num quarto escuro com a sua guitarra acústica e só lhe permitissem sair depois de compôr uma balada acerca do assunto.
Após os primeiros raios de sol do reconhecimento massivo, os Shack voltaram a ser a banda de culto que sempre foram. Quem gosta, gosta sempre, e este grupo não defrauda as expectativas dos seus conhecedores. Here´s Tom With The Weather, o álbum que se seguiu em 2003, optou por caminhos menos concorridos, por temas mais acústicos e por tonalidades mais sóbrias e maduras, mas com todos os elementos-chave que enfeitiçam a música presentes. A brisa de bossa nova que sopra de Soldier Man e a languidez de The Girl With The Long Brown Hair tornam o disco relaxante e, ao mesmo tempo, elegante. Uma obra de irrepreensível bom gosto, muito bem composta e executada, para disfrutar como se de um bom vinho se tratasse, sem pressas e trago após trago. Realce também para Carousel, interpretada pelo mano John Head, para o rastilho melódico de Meant To Be e para a declarada homenagem aos Byrds no terno Byrds Turn To Stone.
A suculenta receita prossegue com o último álbum da banda, datado de 2006 e intitulado On The Corner Of Miles And Gil. Com um nome que funciona como óbvia piscadela de olho a Miles Davis e Gil Evans, dois monstros do jazz, o disco não é propriamente uma obra derivada do que estes músicos produziram nos anos 50. Agora e sempre, os Shack conseguem ser a banda que mais se aproxima da herança que os Love nos legou. Com a morte de Arthur Lee, isso só pode ser coisa boa. Quem aprecia música feita com paixão, mestria e sob tão nobres influências, já deve ter um cantinho do coração guardado para estes senhores de Liverpool. De qualquer forma, nunca é demais empolar a qualidade de temas tão fabulosos e cativantes como Miles Away, Tie Me Down, Cup Of Tea e Closer, a já tradicional balada que finaliza este capítulo discográfico da banda. Espero sinceramente que o próximo não tarde.
Sempre que ouço os Pale Fountains / Shack, lembro-me de como a maior das misérias ou a maior das adversidades pode ser sublimada pela arte de criar e de como isso pode fazer com que uma chance perdida se transforme numa perseverante esperança renovada. Uma banda a lembrar, outra a estimar, respeitosamente...



20 de agosto de 2009

Danças Cósmicas

Em 2005, os Subway, duo inglês composto por Michael Kirkman e Alan James lançaram um álbum de electrónica com reminiscências dos grandes vultos alemães de 70. Empty Head, assim se chamava o LP, era um laboratório de influências onde a cena Krautrock / Kosmische e os sons mais dançantes do techno de Detroit e do house de Paris se conjugavam num disco extremamente bem conseguido e onde temas como Testing ou Empty Head traziam novamente à ribalta os sons imemoriais da pioneira electrónica germânica.
Agora, em 2009, a dupla regressa com novo upgrade desta tendência e o que resulta é uma obra-prima para os amantes da música analógica, da electrónica etérea, de batidas hipnóticas e de ambientes de perfeita sedução auditiva. Subway II é uma delícia para os indefectíveis do Krautrock. É incrível ouvir alguém recuperar estas sonoridades únicas e devolvê-las onde sempre estiveram: ao futuro. Estes senhores têm os pés assentes no século XXI, mas as mentes parecem conectadas com Berlim ou Düsseldorf no ano de 1975.
O disco abre magistralmente com Persuasion, e desde logo parece que os Harmonia da melhor safra voltaram das brumas do passado para nos envolver na sua onírica teia sonora. A batida motorik e a melodia giratória e espacial, simples mas penetrante, embala-nos e eleva-nos. Segue-se Lowlife, que começa por planar e cintilar ao nosso redor como os Cluster mais atmosféricos, para então se tornar um exercício electro cerebral e lento. Simplex traz à luz reminiscências dos Neu! em velocidade de cruzeiro, apresentando-se minimal e varrida por sintetizadores arcaicos mas viciantes na melodia que debitam. O duo gravou este disco utilizando somente equipamentos analógicos clássicos como o Roland Jupiter 6, Körg MS20, Univox SR55, Roland MKS80 e o Moog Prodigy, o que acentua ainda mais a veia retro-futurista da música. A quarta faixa, que ao denominar-se Harmonia não engana ninguém, rege-se pela ausência quase total de gravidade na qual os cosmonautas sónicos Roedelius e Moebius são mestres. O som mantém-se suspenso, nebuloso, sem princípio, meio nem fim, naquilo que é uma perfeita actualização da electrónica cósmica. Wünderbar...
A tendência galáctica prossegue com Jupiter, que cruza o ambiente frio e espacial com os bleeps e as batidas maquinais, computorizadas e urbanas do techno mais vanguardista de Detroit, como o praticado por Carl Craig ou Jeff Mills. Monochrome desbrava o mesmo território, mas eleva a fasquia experimental, soltando bafuradas de melodia abstracta e orbitando irregularmente ao nosso redor. Nota-se a presença de elementos mais radicais e mentalmente comburentes, deixando marcas dos Mouse on Mars ou cinzas dos To Rococo Rot. Horizon é uma estrela cadente, bela e distante, que intriga ao rasgar o negrume, mas breve demais para contemplar. O regresso a cenários mais dançantes é retomado em Delta II, peça de disco progressivo e interplanetário, que impele estranhamente ao movimento. A terminar, Xam deixa a pairar um perfume a Kraftwerk intercruzado na perfeição com texturas house contagiantes.
Os Subway não são plagiadores, muito menos revivalistas. Tudo o que fazem é música de dança, que soa fresca e inovadora. Misturam todas as influências supracitadas e o que resulta é um composto que apela às pistas, mas que consegue ao mesmo tempo enveredar por atalhos meditativos e, em certos momentos, melancólicos. Como toda a música de qualidade, a que está guardada em Subway II é intemporal. Como todas as bandas e artistas evocados e cuja ressonância ecoa pelas faixas deste álbum, os Subway merecem ser considerados mestres da arte da electrónica cósmica e avant-garde. Uma agradabilíssima surpresa e, definitivamente, um dos melhores discos do ano.

19 de agosto de 2009

América Nazi

Foi lido com alguns anos de atraso em relação ao original. Não obstante, foi o melhor romance que li em alguns anos. A Conspiração Contra a América, de Philip Roth, narra a história do que aconteceria se, em pleno início da Segunda Guerra Mundial, o aviador Charles Lindbergh se tornasse Presidente dos Estados Unidos.
Lindbergh ficou conhecido pelas ideias isolacionistas e as suas simpatias nacional-socialistas. O que advém deste enredo é uma obra avassaladora que impressiona ao relatar uma América aliada de Hitler e manipulada pelos nazis. No centro da história, encontra-se uma família judia, que assiste atonitamente ao desenrolar dos acontecimentos, que a minam por dentro e a mudam radicalmente e para toda a vida.
Brilhante, perturbador e vívido nas imagens realistas que consegue criar, este livro é imprescindível para quem se interesse pela História do Século XX, mais concretamente por este período negro e conturbado da evolução da Humanidade.

The Colour of Spirit

Desde sempre, os Talk Talk pareceram uma banda à margem, inadaptada, deslocada. Uma pedra na engrenagem, mas que ao mesmo tempo a faz mover para tomar outro rumo. Provavelmente por não saber onde os encaixar quando surgiram, a crítica britânica inseriu-os no caldeirão bizarro e, na sua maioria, inconsequente, do movimento neo-romântico de inícios de 80. Efectivamente, no seu primeiro álbum, The Party's Over, de 1982, a banda apresenta-se, a espaços, como um pastiche dos Duran Duran. Caso flagrante são os singles Talk Talk e Today. No entanto, momentos como Candy ou o próprio tema-título, aproximam-nos mais dos Ultravox ou da infância dos Japan que de poster bands como os ouriçados Kajagoogoo. Coisa saudável nos Talk Talk foi que nunca se identificaram como banda pretendente a arrebatar corações de adolescentes ou candidata a aparecer na capa da estridente revista Bravo. Provavelmente pela noção que os três rapazes não eram nenhumas estampas (Mark Hollis tem uma voz que ridiculariza Simon Le Bon, mas este último é mais fotogénico...), a música levou sempre a melhor sobre a imagem.
Em 1984, surge a primeira prova que os Talk Talk eram mais que outra banda de sintetizadores, camisas brancas, finas gravatas pretas e penteados exuberantes. As influências continuam, presentes mas difusas, sendo a mais palpável neste período os Roxy Music da era disco glam de Manifesto. De qualquer forma, a banda começa a ganhar identidade própria vincada em canções excepcionais como Such a Shame ou It's My Life, tema que dá igualmente título ao seu segundo álbum. Mark Hollis aperfeiçoa já o seu estilo vocal único, simultaneamente contido e dramático, capaz de arrepiar num momento e apaziguar no seguinte. A música abre espaço a maiores subtilezas, torna-se mais arrojada e complexa, deixando-se arrastar para uma beleza melancólica, especialmente em peças como Tomorrow Started ou a magnífica Does Caroline Know?.
Em 1986, com The Colour of Spring, os Talk Talk alcançam o panteão reservado aos estetas da pop. Àqueles que fazem da música mais que consumo de massas e tinta para pintar as paredes das estações de rádio. Ao seu terceiro disco, o trio londrino torna-se influência para muitas das bandas que surgiram depois, fazendo o seu legado prevalecer até à actualidade. Disco assombrado por uma etérea e hipnótica magia, cada canção parece fazer jus à capa, onde borboletas multicoloridas se alinham num todo que é diferente da soma das partes. The Colour of Spring é atravessado por uma atmosfera de tímido mas sintomático experimentalismo, ritmos intrincados e sumptuosas melodias, em que as guitarras assumem um papel de charneira. Dissertações sobre a vida e a morte, evocações de juventude e inocência, de amor e de perda constituem a espinha dorsal lírica do álbum. Todos os oito temas que o compõem são fora de série, com destaque óbvio para o pulsante Living In Another World e para o ritmo sincopado conjugado à secura da guitarra de Life's What You Make It. Os ambientes de rara beleza, oníricos e envolventes, de April 5th e Time It´s Time são igualmente pontos de paragem obrigatória. Contudo, é o intrigante e despojado Chameleon Day que perdurará como peça fracturante na história deste disco. Após este tema, os Talk Talk nunca mais seriam os mesmos. A editora não os reconheceria neste tipo de sonoridade. O público mais prosaico também não. E eles editam Spirit of Eden.
Spirit of Eden é o disco onde os fantasmas de Mark Hollis se sobrepõem às imposições da realidade. É um disco anti-pop, pontuado por tonalidades jazzísticas esqueléticas e por nuvens esporádicas de um blues descarnado. É um disco de música esparsa, mas onde tocam mais de uma dezena de músicos e onde latejam uma urgência e uma intensidade viscerais, mascarados pela ambiência geral de aparente tranquilidade. Na medida em que utiliza instrumentos ligados ao rock para fazer música que soa a tudo menos a isso, podemos afirmar com legitimidade que Spirit of Eden é o primeiro álbum de pós-rock de sempre. Antecede em cinco anos a estética dos Labradford, dos Bark Psychosis, ou até dos Tortoise. Datado de 1988, influencia de sobremaneira bandas como os Radiohead ou os Sigur Rós.
O álbum funciona como um contínuo, não podendo apontar grandes variações entre os temas, dado que todos partiram de uma base experimental que depois foi depurada até ao resultado final. Ecos do John Coltrane mais místico despontam pontualmente, assim como pináculos da música de câmara ou para cordas de Debussy ou Charles Ives. A tónica é toda ela avant-garde, o que torna o álbum uma experiência única mas exigente, que necessita de sucessivas audições para ser apreendida em pleno. De preferência na obscuridade, dado que grande parte do álbum foi produzido com a banda imersa na escuridão. E, ainda hoje, temas como o lindíssimo e comovente I Believe In You, o inóspito The Rainbow, o intra-uterino Wealth ou a explosão inesperada de Desire provocam arrepios na espinha e entranham-se na pele de muitos melómanos de superior bom gosto e mente aberta ao experimentalismo. Obviamente, e devido ao facto de ser uma obra-prima visionária, Spirit of Eden não vendeu nada e os Talk Talk transformaram-se numa banda alternativa...
Uma das vantagens de ser uma banda pária, ou vanguardista, ou caída em desgraça, é que pode fazer tudo o que lhe dá na bolha. Laughing Stock, álbum de 1991 que sucedeu a Spirit of Eden, tece uma nova tapeçaria de sons a partir das farripas do seu antecessor. Isto não significa que o disco seja um clone do seu par, na medida em que continua a trilhar novas sonoridades, chegando mesmo a suplantá-lo por diversas ocasiões e colocando os Talk Talk num mundo definitivamente à parte. No entanto, mantêm-se as estruturas esqueléticas, as texturas minimais e o improviso do jazz, sendo que o álbum foi lançado pela famosa editora Verve. Myrrhman abre o álbum na costumeira toada sombria, e é guiado pela penumbra por um violino de partir o coração mais empedrenido. Ascension Day podia ser um faixa perdida dos tempos áureos dos Soft Machine, toda ela atravessada por um ritmo jazzístico circular a que juntam estertores de guitarra e remoínhos de harmónica. After the Flood é uma lenta mas cadente marcha, onde a bateria se assemelha à chuva que cai morosamente e a guitarra corta como vento. A voz de Hollis é, desde há muito, um instrumento a juntar aos demais, e não apenas fonte de palavras cantadas. A aparição espectral e sonâmbula de Taphead confirma novamente a certeza que os Talk Talk foram os inventores do pós-rock. New Grass é longa, contemplativa e outonal, convidando ao recolhimento. Segundo consta, o álbum foi gravado num estúdio iluminado somente por velas e onde incenso ardia incessantemente. Nesse sentido, Laughing Stock assemelha-se a uma experiência religiosa, de um misticismo confesso e de uma beleza tão extrema que não precisa de ser física, mas somente espiritual para se manifestar. Runeii fecha as portas ao álbum, com uma guitarra solitária e dormente e faz igualmente cair o pano em definitivo sobre os Talk Talk...

Appendix

Após a separação da banda, os seus principais membros envolveram-se em projectos a solo mais ou menos relevantes. Mark Hollis, vocalista e principal mentor da pandilha editou um único álbum, homónimo, em 1998, e retirou-se da música desde então. Os sete anos passados entre o seu último registo e a sua única obra em nome próprio parecem ter acentuado ainda mais a veia minimal e intimista de Hollis. O disco é música de esqueleto exógeno e a economia de meios é levada ao limite, sendo que as canções se aguentam na corda bamba e no limiar do silêncio. Isto faz com que cada palavra e cada nota ressoem com uma intensidade redobrada. Extremamente melancólico, mas sem ser desesperado, Mark Hollis é poético, arrojado e diferente de tudo o resto que ouvi até hoje. Canções esparsas como a belíssima The Colour of Spring ou a estilhaçada A Life (1895-1915) assombram como paisagens nunca vistas e intrigam como dédalos. Sente-se ainda a influência do jazz em temas como The Daily Planet, mas é um jazz desmembrado, com as entranhas expostas, o que perdura ao longo de todo o álbum. Toda a gente devia ouvir isto pelo menos uma vez, para ficar a amar ou a odiar este génio. Assim, sem meio termo, pois a música também é extremista.
O baixista Lee Harris e o baterista Paul Webb fundaram o projecto .O.Rang, que editou dois álbuns e um EP na mesma linha dos dois últimos álbuns dos Talk Talk e que merecem uma curiosa audição. Mais recentemente, em 2002, Webb adoptou o pseudónimo Rustin' Man e assinou, em conjunto com Beth Gibbons um dos melhores álbuns desse ano, o fabuloso Out of Season, pleno de ressonâncias outonais e reminiscências pastorais.
O teclista e segundo compositor da banda, Tim Friese-Greene, por vezes conhecido como Heligoland, tem produzido discos intermitentes, sendo que o seu mais recente álbum, 10 Sketches For Piano Trio vale muito a pena ouvir.
Da electrónica pomposa e sintetizada ao pós-rock etéreo e descarnado, a música dos Talk Talk foi um contínuo despojamento de tudo o que é supérfluo até à mais monástica das clausuras. Ao ver os vídeos abaixo, e exceptuando a voz característica de Mark Hollis, consegue vislumbrar-se a evolução da banda em 1984, 1986 e 1988...


Talk Talk - It's My Life (UK Version)
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Talk Talk - Living In Another World
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Talk Talk - I Believe In You
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17 de agosto de 2009

Silly Season

É Agosto, o calor acossa-nos impiedosamente e o H1N1 penetra-nos sem o mínimo de decoro e romantismo. A recessão não dá tréguas e o Diário Económico de hoje informa que o desemprego só deverá entrar em queda em 2011. O Benfica empata imerecidamente em casa. Que fazer perante esta conjunção de eventos? Que fazer para a esquecer, nem que seja por breves momentos? Escutar os Happy Mondays é uma boa opção.
Não me recordo de outra banda em que o hedonismo reinasse com tanto despotismo e cuja atitude se centrasse tanto em viver todos os dias como se fossem o último. Divertimento puro e duro. Excessivo e irreverente até à medula, fuzilando a moral e espancando os bons costumes. Em poucas mas sábias palavras foram definidos como 24 Hour Party People e o epíteto assenta-lhes que nem uma luva.
Oriundos da Manchester cinzenta mas polvilhada de cor de meados de 80, os Happy Mondays foram uma das bandas mais importantes da Factory, um misto de editora musical, cartel de droga e hospício fundada pelo jornalista Tony Wilson. A sua história é sobejamente conhecida, principalmente pelo estilo de vida pouco ortodoxo dos membros da banda. Pouco ortodoxa é igualmente a sua música, principalmente a contida nos primeiros três álbuns do grupo. Uma mistura venenosa e contagiante de psicadelismo, soul e ritmos funk e house. Tudo isto encimado pela voz desconcertante e intoxicada de Shaun Ryder, um dos mais pitorescos frontman que a música já conheceu, e pelas danças símias e desengonçadas de Mark Berry, universalmente conhecido como Bez. Este último merece uma especial palavra de apreço, dado ser o único membro da banda que não toca nenhum instrumento. Apenas dança, com o seu par de maracas e os seus olhos esbugalhados. E quando não dança, apenas está.
No ano de Sua Majestade de 1987, sai para as ruas o primeiro álbum da banda. Ainda hoje me custa lembrar do seu nome na totalidade, dado que se intitula Squirrel and G-Man Twenty Four Hour Party People Plastic Face Carnt Smile (White Out). Produzido pelo insuspeito mestre vanguardista John Cale, é um disco onde, apesar dos ritmos infecciosos, reinam as guitarras, e onde Shaun Ryder se aprimora já como especialista em letras tão obscuras como nonsense. Temas como 24 Hour Party People e Tart Tart são dançáveis e caóticos em simultâneo, embrionários na forma como aliam a festa a uma sensação de que o amanhã não irá chegar e, caso chegue, será negro. Kuff Dam e Olive Oil aproximam-se mais do som clássico das guitarras das bandas de 80, mas sempre com um groove inerente que obriga o corpo a mexer-se. Esta primeira obra é ainda um pouco contida, sendo que a produção de Cale emagrece alguns dos temas, tornando o ambiente geral numa espécie de celebração cinzenta. De qualquer forma, é um excelente disco na forma como transporta o ambiente festivo para a Manchester opressiva, industrial e thatcheriana, influenciando-a e, em simultâneo, sendo influenciado por ela.
A loucura controlada por John Cale transforma-se na loucura declarada por Martin Hannett no surreal Bummed. O segundo longa-duração dos Happy Mondays, datado de 1988, beneficia e muito da produção do genial Hannett, homem mais dotado para este tipo de aventuras musicais. Li algures há muito tempo que este álbum parece ter sido gravado numa masmorra subaquática. Sinceramente não me ocorre termo mais adequado para descrever este disco. Uma autêntica rave party claustrofóbica, preenchida por reverbs ecoantes, ritmos opulentos e uma atmosfera geral de decadência lasciva e hedonismo feroz. Shaun Ryder é a epítome do poeta ébrio, do liricista tóxico, que dispara ironia, sarcasmo, bílis e joie de vivre em simultâneo. Country Song abre o álbum com estas inolvidáveis estrofes: I'm a simple city boy / With simple country tastes / Smoking wild-grown mari-jo-wana keeps that smile on my face. Mais à frente, em Mad Cyril: Although our music and our drugs stayed the same / Although our interests and our music stayed the same / We went together, druggers from the well / We've smoked together and we slipped down in hell. Ainda em grande estilo, Fat Lady Wrestlers reza o seguinte: I've just got back from a year in the sack /Must have been something i'm eating/ I've just got back from a year away / It's down to something you're drinking. Em suma, um manancial lírico que nunca sabemos ser possuidor de algum significado metafísico ou se é mesmo só para rimar... Por esta altura, Manchester mudava o nome para Madchester e a música de dança psicadélica e subterrânea dos Mondays era a fotografia no seu novo B.I.. Bummed é um excelente cartão de visita para a génese deste movimento, especialmente através de sevícias e malícias, melódicas e repetitivas, como Wrote For Luck ou Lazy Itis. Destaque igual merece a dança lisérgica do single Hallelujah, de 1989, o último sob a batuta de Hannett, e umas das melhores canções da banda.
Se com Bummed os Happy Mondays nos arrastam para o seu submundo e nos aprisionam em gaiolas dançantes, o álbum seguinte consuma a festa interminável no mais colorido e luminoso dos hedonismos. Pills & Thrills and Bellyaches, editado em 1990 é a coroa de glória da banda e o orgásmico apogeu da Madchester. Na cadeira de produção, Paul Oakenfold inflinge à banda uma sonoridade mais límpida e mais dançante que nunca, mas igualmente mais ácida. Isto é música hippie na era do MDMA e flower power nas pistas de dança. Irresistivelmente convidativo e contagiante do princípio ao fim, este álbum é capaz até de pôr um sorriso na cara de Manuela Ferreira Leite. Grooves imensos e obnubilantes transbordam por todo o lado, sem dar tréguas, sem parar a celebração. Como se não houvessem amanhãs nem ressacas. Como se não nos devêssemos ralar, pois vamos morrer na mesma e o melhor é fazê-lo em festa. As letras de Shaun Ryder seguem a senda costumeira, com o brilhante e já clássico Kinky Afro a abrir com a confissão: Son, I'm 30 / I only went with your mother 'cause she's dirty. A faceta mais romântica do artista surge em Bob's Yer Uncle onde são atirados a Rowetta, cantora que, por estes dias, é membro honorário da trupe, versos como: What do you want to hear when we're making love / Can I take you from behind and feel you in my heart ou, segundos adiante, Four fall in a bed, three giving head, one getting wet. O efeito das palavras de Ryder é, como sempre, quase tão narcótico como a música, que tem o poder de nos anular o pensamento e nos deixar nos braços de um saboroso esquecimento. De todos os magníficos temas que compõem o álbum, há que nomear igualmente o intemporal Step On, a viagem alucinada de Dennis and Lois, o hino ao ecstasy de God's Cop (a frase God rains it E's all on me diz tudo...) e a homenagem às roupas largas características da cena baggy em Loose Fit. Na hilariante e solarenga Holiday ficamos igualmente a conhecer o ideal de férias de Shaun Ryder: I'm here to harass you / I want your pills and your grass you / You don't look first class you / Let me look up your ass you / I smell dope, I smell dope, I smell dope, Fine smelling dope...
Com a vida desregrada e de excessos a começar a exigir os seus dividendos, os Happy Mondays foram eleitos por Tony Wilson salvadores da arruinada Factory e enviados para gravar um álbum que a salvasse da bancarrota. Enviado para Barbados para a sua concepção, o grupo preferiu dedicar-se aos prazeres do recém-descoberto crack, negligenciando a música e afogando-se na produção sensaborona do casal ex-Talking Heads Tina Weymouth & Chris Frantz. Yes, Please! foi editado em 1992, mas, se não o tivesse sido, ninguém daria pela sua falta. A carreira da banda entrou então numa toada de parada-resposta, mas que em nada se assemelha ao futebol britânico. Após uma mão-cheia de compilações, reuniões esporádicas, um projecto com alguma piada de Shaun Ryder e Bez denominado Black Grape e um mediano álbum a solo do cantor chamado Amateur Night At The Big Top, os Happy Mondays regressaram com novo álbum de originais em 2007. Unkle Dysfunktional possui bons momentos, como em Jellybean ou Cuntry Disco, mas nada que se compare com o brilhantismo do passado. Nesse sentido, o melhor último álbum dos Mondays continua a ser o primeiro álbum dos Black Grape, o espalhafatoso, caleidoscópico e revigorante It's Great When You're Straight...Yeah! de 1995.
Agora, e à medida que os Verões se sucedem, resta a nostalgia daqueles tempos gloriosos entre 1988 e 1991, em que o hedonismo imperava sem complexos de culpa, em que a Hacienda era onde um homem quisesse e onde duetos improváveis como este entre Shaun Ryder e Karl Denver estavam na ordem do dia...

10 de agosto de 2009

Uma Jukebox na Roménia


No que concerne a países adeptos e impulsionadores de música popular de influência anglo-saxónica e norte-americana, confesso que a Roménia não é o primeiro nome que me surge. Mas os tempos mudaram desde os anos herméticos e penumbrentos de Ceausescu por terras da Transilvânia. Ao navegar pela web em horas mortas, descobri recentemente um site romeno que disponibiliza 1001 álbuns completos e prontos a ouvir. De 1955 a 2005, começando com In The Wee Small Hours de Frank Sinatra e terminando em Get Behind Me Satan dos White Stripes, deparamo-nos com um enorme e eclético festim musical. Apesar de ser uma lista do género "1001 álbuns a ouvir antes de morrer" e de não trazer grandes surpresas para além dos clássicos obrigatórios, trata-se de uma súmula dos discos mais históricos e agraciados da segunda metade do século XX e da aurora do século XXI. Para aumentar a auto-estima da nação do Conde Drácula poderia ter sido incluído o álbum Cantofabule dos Phoenix. Obra de 1975, é um magnífico híbrido de rock progressivo e influências étnicas, tendo sido já considerado o melhor disco de sempre lançado por uma banda romena. Mas não se pode ter tudo, e o rol patente no site já entretém de sobremaneira. Tudo se passa em http://www.radio3net.ro/dbalbums/albume1001.