29 de novembro de 2018

La Vie en Roseland

Portishead - Roseland New York



Roseland NYC Live foi já considerado um dos melhores álbuns ao vivo de sempre, feito estranho e discutível, tendo em conta a recatada e discreta banda que o assinou, os britânicos Portishead, bem como o estilo musical que praticam.  Contudo, a história toma outro rumo perante o contraponto visual do concerto registado em 1997 num velho salão de baile nova-iorquino. 
Roseland New York, filme-concerto realizado por Dick Carruthers, revela os Portishead num registo nú e crú, sem artifícios, luzes ou sombras além da atmosfera esparsa do local onde tocam, perante os olhares próximos do público e acompanhados por um conjunto de cordas intitulado apenas - e enigmaticamente - The Orchestra.
O contraste entre o trip-hop jazzístico com laivos de film noir praticado pelo grupo e a exposição da sala que alberga a música permite uma ilusória sensação de intimidade, no qual o narcótico embalo sonoro embate na rigidez permanente da luminosidade e da performance artística sem subterfúgios.
Os maneirismos vocais a la Billie Holiday de Beth Gibbons, a guitarra western spaghetti em território urbano de Adrian Utley e a teia sonora de teclas, ritmos e samples construída por Geoff Barrow florescem de forma hipnótica e encantatória em Roseland New York. Trata-se de um objecto único e precioso relicário para entender a música da década de 90 e de um dos seus colectivos mais geniais e influentes. Como esquecer ou não querer regressar ao abandono melancólico misturado com negrume sensual de Roads, All Mine, Glory Box ou Over? Esperemos que o sucessor de Third não demore mais dez anos a ver a luz da noite.



              

25 de novembro de 2018

Bowie Now



The age of bowie 9781471148118 hr



The Age of Bowie é, acima de tudo, uma biografia escrita por um admirador e seguidor. O seu autor é Paul Morley, eminente comentador artístico britânico e membro dos Art of Noise nas horas vagas (ou vice-versa). Erigida nos dias que se seguiram ao falecimento de David Bowie, a obra constitui um tour de force reactivo à perda de uma figura inimitável e insubstituível da cultura dos últimos 50 anos.
Num registo urgente, quase em regime stream of consciousness, muitas vezes verboso, mas sempre exaltado e apaixonado, Paul Morley constrói a sua visão histórica de Bowie, explorando como o artista emergiu, criou, estruturou, exibiu as suas ideias e envelheceu, à medida que revolucionou a música popular e inventou o futuro, tornando-se, ainda em vida, um mito.
O livro percorre os momentos mais marcantes da vida e da carreira do Camaleão, com óbvio e interessante destaque para a década de 70, definitivamente a mais assombrosa e marcante do ponto de vista criativo, sendo cada ano objecto de inspirada e emotiva dissecação.
Da viagem pelas influências e colaborações ao culminar da sua própria influência, de Space Oddity a BlackstarThe Age of Bowie é uma obra escrita por um fã confesso, que poderia ser qualquer um de nós. Certamente cada um escreveria a história de tão enorme figura apelando maioritariamente às razões do coração que da mente. Paul Morley segue o mesmo caminho, mostrando como a descoberta de David Bowie mudou a sua vida, a inspirou, a moldou, voltando a mudá-la com a sua morte. Em suma, sente o que todos sentimos, e expressa-o à sua maneira. Este é o Bowie de Morley, único mas caleidoscópico, que nos lembrará sempre o nosso.

24 de novembro de 2018

From Russia With Love

Aquando da entrada da voz em Northern Seaside, é impossível não fantasiar que Ian Curtis está vivo. E que reuniu um grupo de músicos russos em Rostov-on-Don para perpetuar a sua melancolia cinzenta e crónica. Todavia, à medida que o tema se espraia, a voz é envolvida por uma candura instrumental, cuja luminosidade coloca o desespero em segundo plano e deixa-o à espreita no escuro, por uma porta entreaberta. A voz é de Vladislav Parshin, a banda dá pelo nome de Motorama e este é Alps, o seu primeiro longa-duração.
Editado em 2010, o álbum é uma curiosa e interessante manifestação da música actual feita na Rússia, sendo que, para ouvidos incautos, passaria bem por um produto artístico britânico ou norte-americano.
A influência dos Joy Division é mais que notória, nomeadamente ao nível da já referida voz, mas igualmente das estruturas rítmicas bateria-baixo, que invocam constantemente o apelo à dança maquinal e descarnada de Morris-Hook. Contudo, o duo de guitarras formado pelo igualmente vocalista Vladislav Parshin e por Maxim Polivanov transporta as composições além do negrume pessimista do post-punk - corrente musical que constitui a raíz da banda - e torna-as mais expansivas, algures entre os Interpol menos austeros e o neo-psicadelismo outonal dos Church da década de 80.
A prova deste chiaroscuro está patente nos dois melhores temas do disco. Warm Eyelids é irresistível, imbuído da adolescência em crise do melhor indie rock, trespassado por guitarras afiadas e certeiras, ritmo frenético e urgência romântica. Wind In Her Hair é uma brisa melancólica, conduzida por guitarras cristalinas e oníricas, como uns Byrds renascidos nas praias do Mar Negro.
O que fica dos restantes temas de Alps é um trabalho de uniforme consistência e extrema meticulosidade, onde as guitarras seduzem e as melodias arrebatam sem tréguas. Fica sempre a ideia que já ouvimos isto nalgum lado, do andamento agridoce do tema-título ao cativante embalo de Empty Bed. Porém, a frescura da entrega e a qualidade composicional fazem-nos sentir aconchegados como na chegada a uma casa que sempre conhecemos mas nunca visitámos. O imaginário dos Motorama é um filme a preto e branco com algumas cenas pintadas a cores. Impele-nos à dança, impele-nos à introspecção, impele-nos a ambas em simultâneo. Em 2018, assinaram o seu quinto álbum, Many Nights. A fórmula criativa tem sido mantida, sem grandes alterações a registar. Os Motorama não conquistarão o mundo, mas parecem contentes em conquistar os corações de eternos adolescentes, que vagueiam, melancólicos, debaixo do Sol.

10 de novembro de 2018

A Marca Amarela VIII


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No final da audição do álbum homónimo (e única obra gravada em estúdio) dos japoneses Shingetsu, é impossível não perguntar "porquê só isto?"
Este disco de 1979 constitui, não apenas uma das obras mais marcantes do rock progressivo nipónico, mas de todo o universo do género. Pese embora não enveredar pelos caminhos mais experimentais e vanguardistas dos Van der Graaf Generator ou dos King Crimson, o colectivo liderado pelo vocalista Makoto Kitayama, Shingetsu guarda um relicário de belas e transcendentes melodias, em constante estado de mutação. Mais próximo do apogeu criativo dos Genesis (não é à toa que Makoto Kitayama é alcunhado de Peter Gabriel japonês), o disco exibe igualmente um certo exotismo oriental barroco em termos instrumentais, que o afasta das convenções e o transforma num objecto singular e numa autêntica delícia para os ouvidos.
Oni e Return of the Night, peças que abrem e fecham o álbum - e que, em última instância, se complementam - são possuídas por uma complexa e cristalina melancolia, acentuada pela voz etérea de Makoto Kitayama. A primeira é a verdadeira obra-prima e trave-mestra de Shingetsu, espraiando-se ao longo de quase dez minutos como uma onda de luz e sombras num intermitente e deleitoso duelo entre a guitarra sinuosa de Harukiko Tsuda e as teclas assertivas de Akira Hanamoto. Uma viagem levitante e cósmica, tão envolvente quanto estimulante, e que, sabiamente, é recuperada no final do disco para encerrar um círculo perfeito com uma guitarra em estado de graça.
The Other Side of Morning poderia ter sido um single arrojado, uma canção magnífica, que, mesmo sem refrão, emana luminosidade da sua doce melodia folk e da vocalização perfeita, como um lento nascer do Sol, cujo calor nos persegue o corpo à medida que cresce no céu. Influential Street inflecte igualmente por territórios mais exuberantes e harmoniosos, num cativante exercício que poderia ser apelidado glam prog.
A estética mais elaborada retorna em Afternoon (After the Rain), que acrescenta um oportuno saxofone à excelente base melódica, e prolonga-se em Fragments of the Dawn, peça de toada mais contemplativa, mas movida pela incessante criatividade e mestria instrumental da banda.
Após um breve e estranhamente ominoso interlúdio intitulado Freeze, surge Night Collector, que carrega no acelerador do rock sem nunca abandonar a estrada meândrica do prog, debitando inflexões rítmicas e melódicas com assombrosa destreza.
Em português, Shingetsu significa lua nova. A fase em que a Lua se encontra entre a Terra e o Sol. Não é visível a olho nú, mas sabemos que lá está. É igualmente bom saber que, não obstante os Shingetsu já não existirem, este belíssimo legado continua ao nosso alcance, para perpétuo encanto e deleite.