31 de dezembro de 2009

2009: A Soundtrack



Nas horas derradeiras do conturbado e, muitas vezes, desconjuntado ano de 2009, resta-me ser arauto dos sons que mais me ajudaram a iluminá-lo e atravessá-lo. Como sempre, a lista é mais intuitiva que obsessiva e resume-se ao nicho da pop e do rock, mais ou menos alternativo, menos ou mais experimental. Muito foi ouvido e assimilado, aqui fica o que de mais essencial ficou retido e conseguiu ser inspirador...

1. Animal Collective – Merriweather Post Pavillion

2. The XX – The XX

3. Grizzly Bear – Veckatimest

4. Bill Callahan – Sometimes I Wish We Were Like An Eagle

5. Dirty Projectors – Bitte Orca

6. Fuck Buttons – Tarot Sport

7. The Flaming Lips – Embryonic

8. Fever Ray – Fever Ray

9. Girls – Album

10. Bob Dylan – Together Through Life

11. Antony & The Johnsons – The Crying Light

12. Wild Beasts – Two Dancers

13. Broadcast & The Focus Group - … Investigate Witch Cults Of The Radio Age

14. Sunn O)) – Monoliths & Dimentions

15. The Very Best – Warm Heart Of Africa

16. Neon Indian - Psychic Chasms

17. Atlas Sound – Logos

18. Yeah Yeah Yeahs - It's Blitz

19. The Antlers – Hospice

20. Micachu & The Shapes – Jewellery

21. Oneohtrix Point Never - Rifts

22. Bat For Lashes - Two Suns

23. Memory Tapes – Seek Magic

24. Richard Hawley – Truelove’s Gutter

25. Sonic Youth – The Eternal

26. Cass McCombs – Catacombs

27. Real Estate - Real Estate

28. Jim O'Rourke - The Visitor

29. Phoenix - Wolfgang Amadeus Phoenix

30. JJ – JJ nº 2

31. Alasdair Roberts – Spoils

32. Bibio - Ambivalence Avenue

33. The Low Anthem – Oh My God, Charlie Brown

34. Tinariwen - Imidiwan: Companions

35. Mayer Hawthorne – A Strange Arrangement

36. Dâm Funk - Toeachizown

37. Matias Aguayo - Ay Ay Ay

38. Emeralds - What Happened

39. Subway –Subway II

40. The Horrors - Primary Colours

41. Wilco - Wilco (The Album)

42. Espers – Espers III

43. David Sylvian - Manafon

44. The Sa-Ra Creative Partners - Nuclear Evolution: The Age Of Love

45. Ben Frost - By The Throat

46. Dinosaur Jr. - Farm

47. Iggy Pop - Preliminaires

48. Raphael Saadiq – The Way I See It

49. King Midas Sound - Waiting For You

50. Franz Ferdinand - Tonight: Franz Ferdinand

Manifesto


Toda a gente devia ter isto. Devia ser obrigatório por lei ou permitir benefícios fiscais a quem o adquire. Devia ser matéria de estudo nas escolas e ombrear com o PC Magalhães. Aqui reside a súmula da melhor música popular do século XX, honradamente revista e pomposamente melhorada. Podia ser a caixa de Pandora, mas daqui não saem maldições nem pragas, somente bálsamos. Pensava que o excelso Tomorrow Never Knows já não me conseguiria surpreender mais; A Day in the Life igualmente. Quão magnificentes soam lingotes de menor quilate mas igual valor sentimental como Blue Jay Way e Long, Long, Long nesta arca do tesouro sonicamente reconstruída! E porque nunca é demais lembrar paraísos terrenos...

19 de dezembro de 2009

Stars In The Bar Room Floor

Os Flaming Stars têm vindo a fazer, essencialmente, o mesmo álbum há 13 anos. Isto não implica que a sua música seja classificada como aborrecida ou repetitiva. O facto é que este quinteto londrino, liderado por Max Decharné, ex-membro dos nocturnos mas fogosos Gallon Drunk, tem apostado numa sonoridade que pouco ou nada se afasta da traça original. Essa traça bebe sofregamente das bandas de garagem dos anos 60 e de um imaginário noctívago, rockabilly e decadente, alimentado a álcool, tabaco e western spaghetti. Inúmeras vezes comparados aos Gun Club e aos Bad Seeds de Nick Cave, comungam dos primeiros a vertigem urbana e árida e dos segundos a visceralidade e qualidade interpretativa. Mas são acima de tudo bandas norte-americanas primordiais como os Sonics, os Artesians ou os Wailers e actos individuais icónicos como Elvis Presley ou Gene Vincent que moldam e assombram a sonoridade dos Flaming Stars.
Banda prolífera, desde o lançamento do primeiro álbum Songs From The Bar Room Floor em 1996 até Born Under a Bad Neon Sign, disco de 2006, os Flaming Stars editaram sete álbuns de originais e uma mão-cheia de singles, EP's e compilações. A consistência está presente em todos os lançamentos, sendo que Bring Me The Rest Of Alfredo Garcia será provavelmente a melhor carta de apresentação do grupo. O que fica, sobretudo, são as canções, urgentes e poderosas, penetrantes e inesquecíveis, amargas e ressacadas. Chamativas como um Cadillac dos anos 50 e espalhadas ao longo dos anos de existência da banda, são o sangue que lhe corre nas veias. Ten Feet Tall, A Hell Of A Woman, Downhill Without Brakes ou Sweet Smell Of Success são temas de fazer cair o queixo, nem que seja pelo majestoso Vox Continental que borboleteia infecciosamente ou pelos raids rítmicos do soberbo baterista Joe Whitney. The Day The Earth Caught Fire, The Last Picture Show, House Of Dreams ou Black Mask são sedutoramente escuras e palpam terreno nas sombras com dedos que parecem apreciar a travessia.
Como já foi dito, pouco ou nada mudou no estilo dos Flaming Stars desde a sua fundação. A música continua a encarnar no presente espectros do passado e as capas dos discos continuam a ser pastiches de cartazes cinematográficos dos anos 50. A atitude, essa, só pode ser apelidada de punk (por vezes dou comigo a pensar nos Stranglers dos primórdios quando os ouço...). Eternos membros da segunda divisão das bandas britânicas, parece não quererem mais que isso e também não precisam. Vestem os seus fatos e gravatas como se fossem membros da Rat Pack no coração do Soho; manda a tradição que iniciem cada álbum com um tema fervilhante e o encerrem com uma balada lacrimejante; arrancam tornados sónicos e são fiéis àquilo que fazem como se fossem a última das bandas de garage rock à face da Terra. Depois de vários anos de bulício constante, há três que se remetem ao silêncio discográfico. Pode ser que tenham terminado. Pode ser que lhes esteja a faltar combustível para arder. Seja como for, se voltarem, que seja na forma de sempre, pois não há mais ninguém como eles.

8 de dezembro de 2009

Chill-Out Folk

Em 1973, o mestre John Martyn editou aquela que será, seguramente, a sua obra de referência. A sua obra-prima. O disco recebeu o título Solid Air e, ainda hoje, a sua influência se faz sentir, especialmente pelo facto de a folk nunca ter ido tão longe como antes deste álbum. Composto originalmente por 9 canções em estado de graça, este excelso disco mantém ao longo da sua duração o mesmo tipo de ambiência, dolente, arrastada, profundamente nocturna e tocada pelas estações do frio. O clássico absoluto que abre o álbum e lhe dá título é dedicado ao mago Nick Drake, amigo pessoal de John Martyn entretanto falecido. Esta canção foi feita para ouvir em quase total ausência de luz e silêncio absoluto. A voz inebriada e fumarenta de Martyn é magistralmente acompanhada por gotas cintilantes de xilofone, enquanto um saxofone enlutado observa à distância. Segue-se a folk mais tradicional do esplêndido Over The Hill, complementada por bandolim e violino, e em que a letra foca as agruras de uma vida de excessos, temática presente na maioria das canções do disco. A penumbra regressa, em tons de vermelho-escuro, com Don't Want To Know, belíssima balada adornada por discretos mas valiosos enfeites jazzísticos, nos quais um cálido piano eléctrico é rei. I'd Rather Be The Devil cumpre a promessa. É um tema possesso, um martelar voodoo, em que John Martyn aparenta mais ser um bluesman como Howlin' Wolf ou Leadbelly que um baladeiro do Surrey. O espírito livre do jazz sente-se mais que nunca, sendo que a versão ao vivo deste original de Skip James que viria a povoar algumas reedições do álbum ganha novo fervor pela intensidade e pelo improviso. Em ambas, o tema fecha com um encantatório trabalho de guitarra que remete para paisagens mais psicadélicas.
Um contrabaixo meditabundo estende o tapete a Go Down Easy, canção trémula em que a folk e o jazz se imiscuem na perfeição. Um baixo meio funky e uma guitarra semi wah-wah encetam a travessia vincadamente ritmada e fortemente inebriada de Dreams By The Sea, até que o piano eléctrico, sonolento e às apalpadelas, põe termo à excitação.
Chega a vez de May You Never, hino à amizade e um dos temas mais belos e emblemáticos do álbum, terno e despojado, em que a guitarra, ora golpeada, ora dedilhada, e a voz sentida de John Martyn chegam e sobram para as encomendas. A bruma e as sombras envolvem-nos e trepam por nós em The Man In The Station, perfeita ode a solitários que vagueiam pelas ruas nas horas mortas da noite. O disco termina em toada mais tradicional e alegre, com a dupla The Easy Blues / Gentle Blues. A primeira mostra bem a influência de Hamish Imlach, homem da folk mais aguerrida que lançou Martyn; a segunda é um quase um breve trecho cujo intuito é colocar ponto final no disco. E fá-lo com a qualidade e o génio de tudo o que ficou para trás.
Solid Air foi considerado, com o habitual e histriónico valor acrescentado que os britânicos colocam quando formulam algumas opiniões artísticas, como o primeiro disco de trip-hop de sempre. Facto é que o influente radialista Gilles Peterson, homem mais vocacionado para danças e electrónicas, coloca amiúde o tema-título no éter. Mas isto não se aproxima da realidade, apesar de não andar totalmente fora dela. Solid Air é um álbum de ambiências extremamente carregadas, narcóticas até. Como terapêutica relaxante e entorpecente encontra pouca rivalidade. Trata-se, indubitavelmente, de um dos grandes discos britânicos do século XX, que, reedição após reedição (a última teve lugar este ano, poucos meses após a morte do seu autor) ainda mantém a traça original e não precisa de mais que os seus primeiros 9 temas para encantar e arrebatar para a eternidade.

Canterbury Delights

Apesar da magra obra que legaram, os Hatfield and The North são uma das bandas mais emblemáticas e representativas do que ficou conhecido nos inícios dos anos 70 como Canterbury Scene. Esta rotulagem, um pouco forçada e vaga como são todas, assentou numa semelhança de estilos entre diversas bandas do território inglês em epígrafe, muitas delas constituídas por elementos de outras bandas já existentes, o que confere a este estilo o estatuto de uma autêntica matrioska de individualidades. Estes estilos baseavam-se, essencialmente, em estruturas musicais intrincadas mas melódicas, em que os elementos mais acessíveis da música pop se conjugavam à complexidade mais experimental do avant-garde. Considerada muitas vezes um subgénero do rock progressivo, a onda (ou cena) de Canterbury é bem mais que isso. Daqui advém uma grande parte da ousadia e da inventividade que construiu os alicerces do rock mais arty, desafiador e incatalogável. O improviso é lema e peça-chave deste género musical, o que se nota distintamente na incorporação declarada de sequências jazzísticas e no liricismo muitas vezes absurdo e inusitado, que parece servir somente como bengala para a miríade instrumental que se estilhaça a cada momento. Música que encanta tanto como intriga, que se estranha tanto como se entranha, tem nos dois álbuns de originais dos Hatfield and The North um típico exemplo da suas artes sedutoras.
O primeiro álbum, homónimo, da banda, foi lançado em 1974, altura em que o estilo de Canterbury já tinha ultrapassado a sua fase embrionária. É uma obra rica e sofisticada, executada com a perfeição clínica dos seus calejados membros. O surrealismo e a excentricidade invadem-na a espaços, sendo que a música parece contorcer-se e amolgar-se para poder avançar pelas dobras do nosso córtex cerebral. A prova é o magistral Shaving is Boring, em que uma introdução saltitante de órgão vai sendo acometida de sucessivos estertores até se deixar levar numa corrente imparável e hipnótica da qual não apetece sair. O corte e colagem de ambiências e ritmos mais ou menos frenéticos perdura durante todo o álbum, pelo que é absolutamente normal suceder-se a uma peça suave e plena de coros femininos como Lobster in Cleavage Probe, o cataclismo em regime free-rock de Gigantic Land Crabs in Earth Takeover Bid. Como é igualmente apreensível, os títulos dos temas não apresentam grande margem para decifração. Exemplo disso é o intrigantemente denominado Big Jobs (Poo Poo Extract). Não raras vezes a capa de um álbum faz jus ao seu conteúdo, e desta feita acontece isso mesmo. O céu cujas nuvens parecem ser figuras de um fresco de Miguel Ângelo sobre a placidez cinzenta de um qualquer subúrbio britânico, demonstra bem a intrusão do surrealismo na normalidade.
O segundo álbum dos Hatfield and The North, lançado no ano seguinte e baptizado The Rotter's Club, prossegue a senda do seu antecessor, mas consegue alcançar a proeza de ser ainda mais conciso e depurado. O disco abre com uma declarada canção pop, Share It, leve à superfície, mas cuja escavação mais profunda revela um cinismo latente. Lounging There Trying principia com uma deliciosa e aquosa guitarra, que acaba por preencher magnificamente um tema outonal e sombrio, mas por onde apetece deambular bem agasalhado. Os interlúdios estranhos e vindos do nada mantém-se, como no gargantuamente denominado (Big) John Wayne Socks Psychology on the Jaw e no seu sucedâneo não menos esquizofrénico Chaos at the Greasy Spoon. O génio instala-se definitivamente ao quinto tema, uma peça contraditoriamente intitulada The Yes No Interlude. Aqui é dado livre-trânsito à improvisação, que se propaga em convulsões sobre a cadente secção rítmica. Primeiro o órgão de Dave Stewart, depois o saxofone de Jimmy Hastings, soltam chispas de sons naquele que é, provavelmente, o melhor momento do álbum. Após este bombardeamento, a toada prossegue serena e sem sobressaltos, com destaque para o excelente e jazzístico Underdub até Mumps, tema que encerra a edição original do álbum. Com 20 minutos de duração e dividida em 4 partes, a peça é o que mais se assemelha a rock progressivo em todo o espectro da obra da banda. Tocado pelo génio, a espaços, há que destacar obrigatoriamente a longa e extasiante deambulação de Lumps, mais um exemplo perfeito do motor propulsor que constituía o colectivo na posse dos seus plenos poderes. A abrir e a fechar esta última sequência do álbum, as duas partes de Your Majesty Is Like a Cream Donut, mais um título de referência a juntar ao reportório da banda. A reedição do disco em 1987 acrescentou-lhe mais 5 faixas extra. De todos os temas, há que realçar o belíssimo e sólido Halfway Between Heaven and Earth.
Pouco ou nada conhecidos fora do solo inglês, os Hatfield and The North conseguem ter a sua pequena legião de culto dentro de portas. Assim é com o escritor britânico Jonathan Coe, cujo notável romance de 2001 intitulado precisamente The Rotters' Club é uma homenagem indirecta à banda, que surge diversas vezes mencionada nas suas páginas. Mesmo não sendo a nata das natas de Canterbury (esse papel cabe a luminárias consagradas e instituídas como Robert Wyatt, Soft Machine, Caravan, ou mesmo os Gong), os Hatfield and The North constituem uma belíssima opção a juntar a este estilo musical tão único e sui generis.

7 de dezembro de 2009

Genes, Signos, Identidades

Quem Nos Faz Como Somos é uma nova iguaria literária do psiquiatra e professor universitário José Luis Pio Abreu. Nova não será o termo correcto, dado que foi editada em 2007, mas, latu sensu, é o seu mais recente livro e que sucede ao já clássico Como Tornar-se Doente Mental?.
Desta feita, o autor debruça-se sobre a extrema e, por vezes, hermética, complexidade que faz da espécie humana aquilo que ela é. Partindo do particular para o geral, dos genes para os signos, do biológico para o cultural, Pio Abreu demonstra perfeitamente que é possível escrever sobre temas científicos e filosóficos de forma clara e acessível. Através de uma prosa escorreita e, a espaços, bem-humorada, o livro conta ao leitor a história da evolução da vida do ser humano, desde a involuntária fecundação do óvulo, à voluntária escolha da sua identidade num mundo carregado de possibilidades. No final, fica perene a ideia de que, mesmo perante a multiplicidade de opções, de culturas, de religiões, de relações que constituem o mundo do Homem moderno, a sua identidade será sempre condicionada pela herança genética que transporta. É ela que o faz agir daquela forma, naquela altura, perante aquela situação. Os genes fazem-no para sobreviver, os signos também, e o Homem está condenado eternamente a perseguir a sua liberdade total. Uma obra do maior interesse e excelente como ponto de partida para futuros desbravamentos de Umberto Eco, Michel Foucault, Jean-Paul Sartre ou Daniel Dennett. Mais sobre este progressivamente influente autor aqui.

Space Ritual

The European Homepage For The NASA/ESA Hubble Space Telescope: Assim se apresenta a facção cibernauta do Velho Continente dedicada ao mega-telescópio espacial Hubble e às suas descobertas. O site é um regalo para a vista, um manancial de fotografias e vídeos do cosmos profundo captados pela microscópica potência do aparelho. É impossível não sentir o peso esmagador mas delicadamente belo destas imagens e dos mistérios que as envolvem. Mais que palavras para a descrever, a divulgação desta página deve ser feita com um convite a explorar as suas recônditas maravilhas. São autênticas viagens de alta definição pelo sistema solar, por quasares e nebulosas, luxuriosamente coloridas ou desoladamente negras. Perante o que nos surge, tanto nos podemos deixar levar pela espiral vertiginosa de nave desgovernada dos Hawkwind como pela ausência de gravidade dos intra-uterinos Ambients de Brian Eno. Para olhar demoradamente, com ou sem propostas sonoras, em http://www.spacetelescope.org/.