17 de fevereiro de 2010

Crisálida

Os Catapilla são mais uma daquelas bandas que só se encontram se esgravatarmos bem fundo nas areias do tempo. Perdidos no limbo psicadélico de finais de 60 e princípios de 70, deixaram apenas dois álbuns como legado. O primeiro, homónimo, data de 1971 e é um caldeirão iridescente de jazz ácido e rock progressivo desregrado, tão sedutor como esquivo, tão arrebatador como intrigante. É impossível não mencionar Embryonic Fusion, o bacanal sónico de 25 minutos que lhe põe termo. O segundo, Changes, viu a luz do dia no ano seguinte e apresenta-se bem mais interessante e depurado que o seu irmão mais velho.
Guiado igualmente pela parafernália saxofónica do influentíssimo e infelizmente malogrado Robert Calvert e pela voz acrobática de Anna Meek, Changes é um marco incontornável no cruzamento entre a implausibilidade do jazz e a inevitabilidade do rock. Atmosférico q.b., o disco alonga-se por não mais de 4 faixas, todas elas de duração considerável, todas elas perfeitas para meditação, reclusão, desligamento temporário da realidade. Reflections, primeiro tema, desliza como bicho-da-seda sobre folha verde, lenta e viscosamente, o saxofone e o órgão a debaterem-se por entre a voz de Anna Meek, que parece oscilar entre os guinchos de banshee da Kate Bush dos primórdios e a genuína pedrada (herbal ou qualquer que seja...) de Grace Slick. O ritmo é bombeado em força e a velocidade é estanque, sendo o final da peça um ecoante delírio fantasmagórico, inesperadamente acústico e invadido por sombras inquietas, invocadas pela voz de Meek. Diamanda Galás bem poderia ser uma delas, que parecem carpir à distância...
Charing Cross atenua a gélida performance concluída segundos atrás, revelando-se mais morna e dominada pelo sopro melódico mas parcimonioso de Robert Calvert. Protótipo descarnado de canção jazz, inflecte a meio caminho por um ritmo frenético e espacial, não muito longe dos desvarios fora de órbita dos apocalípticos Hawkwind, outro dos part-times do free-lancer Calvert. A terminar, um soberbo e planante solo de guitarra de Graham Wilson, que coloca o tempo em suspenso à medida que se escoa em fade-out.
Thank Christ for George escancara-se à partida como um forte e belíssimo exercício jazz-rock. Traz reminiscências dos magníficos Nucleus e dos seminais Soft Machine, gente incontornável por estas alturas na velha Albion... Anna Meek junta-se à festa, com voz felina e enfeitiçada. A partir daí, a música entra em transe, um transe nocturno e psicadélico da melhor safra, dos que penetram o cérebro e não lhe dão descanso. E o acme chega à quarta faixa. Simplesmente magistral, It Could Only Happen to Me é a melhor criação dos Catapilla. Três minutos iniciais em que o saxofone de Calvert despeja uma beleza e um langor quase seráficos, antes de se deixar impregnar pela guitarra em sinuoso improviso. A envolvência é extrema e, à medida que a música progride, somos enredados num sublime casulo sonoro. É um daqueles temas que só peca por ser escasso e que, ao terminar, nos impele a ouvi-lo de novo.
Como em todas as crisálidas, esta pouco ou nada nos exige em termos de movimentos. Changes é uma escuta incorpórea, ideal para serões solitários em que a alma pede alimento e a mente pede estímulo.