23 de fevereiro de 2011

Lava Celestial


Raras são as bandas que podemos considerar absolutamente inovadoras. Detentoras de uma personalidade própria e inventoras de uma linguagem única. Os franceses Magma foram e serão sempre um caso à parte, estranhos demais para o mainstream, demasiado imiscuídos na cultura popular para serem eruditos.
Rezam as crónicas que Christian Vander teve uma visão. Não faltavam músicos nos anos 70 que tivessem visões - muito graças às substâncias que corriam livremente por esses tempos -, mas a visão de Vander foi de tal modo intensa e perturbadora que mudou para sempre o curso da sua existência. Este virtuoso baterista francês, herdeiro directo da velha escola do jazz, anteviu um futuro negro, decadente e convoluto para a humanidade (mais ou menos o que estamos a viver agora...). E decidiu comungá-lo através da melhor forma de expressão ao seu alcance: música visionária.
Todo o imaginário dos Magma parte de uma estética conceptual. Um grupo de humanos deixa a devastada Terra e fixa-se num planeta imaginário chamado Kobaïa. É nesse mundo ficcional que decorrerão estas crónicas épicas e que constituem as principais obras da discografia magmática. Christian Vander levou de tal forma a sério a construção deste universo paralelo, que inventou uma linguagem própria (o Kobaïan) para acompanhar as suas criações. Este peculiar idioma faz-se ouvir ao longo dos discos da banda, assemelhando-se a mais um instrumento na complexidade do conjunto. A imagem adoptada pelo colectivo foi igualmente estilizada ao pormenor, com os seus membros a aparentarem mais ser parte de uma frota espacial que músicos:


Musicalmente, a forma mais fácil de encaixar os Magma foi no rock progressivo. Mas a sonoridade do grupo e as suas influências transcendem em muito os arquétipos deste estilo. Os dois primeiros álbuns dos franceses, os excelentes e influentes Magma (Kobaïa) e 1001º Centigrades são massivamente contaminados por sombras de música clássica contemporânea e, sobretudo, pelo jazz, sendo que John Coltrane é a eterna inspiração do líder Christian Vander. As composições são complexas e artisticamente arrojadas, nos antípodas de tudo o que o universo rock tinha conhecido até então. Ainda hoje é impossível não ser invadido por um sentimento de estranheza e desorientação perante peças tremendas e frenéticas como Kobaïa, Aïna, Nau Ektila ou o estonteante Rïah Sahïltaahk. Imagine-se o resultado se esta música fosse gravada sem as contingências de produção dos inícios dos anos 70...
Em 1973, Mekanïk Destruktïw Kommandöh vai ainda mais longe na inovação e inventividade do conjunto. Verdadeira ópera alieníngena e marcial, intensa e abrasiva, é muitas vezes considerada a Carmina Burana do rock. Para além da constante vertigem, a estrutura similar à obra de Carl Orff revela-se, quer em termos da utilização de vários coros, quer na utilização massiva das percurssões. M.D.K. celebrizou-se por inventar um estilo per si. Uma corrente desviante do rock progressivo denominada Zeuhl. Zeuhl significa celestial na linguagem Kobaïan inventada por Christian Vander, mas esta música não nos leva propriamente ao céu. Leva-nos para os confins do Universo. Uma miríade de bandas, derivadas directa ou indirectamente dos Magma, brotam desta corrente, sendo os casos mais notórios Univers Zero, Zao e Dün. Estes últimos editaram apenas um único e muito recomendável disco, o magnífico Eros. A sonoridade Zeuhl assenta no cruzamento entre a música clássica e a música contemporânea, na fusão entre rock e jazz e na alternância entre momentos de agressividade com outros mais atmosféricos. É uma música escura e quase ritualística, da qual o insano De Futura - presente no álbum Üdü Wüdü, de 1976 - é um bom exemplo...



Köhntarkösz, de 1974, inicia uma nova fase na existência dos Magma, fase essa que se prolonga até hoje. Deixando Kobaïa em pousio, Vander e as suas hostes debruçam-se agora sobre questões existenciais. Segundo tomo de uma trilogia terminada em 2009, Köhntarkösz conta a história de um faraó egípcio que teria alcançado a chave para os segredos do Universo e da imortalidade e do arqueólogo moderno que as tenta desvendar. Como é normal nos Magma, o enredo é cabeludo, mas a música é devastadora. Köhntarkösz (Part I & II) são duas das melhores criações da banda, impressionantes e penetrantes mesmo sem fazer uso dos cânticos repetitivos e hipnóticos do grande Mekanïk Destruktïw Kommandöh. Coltrane Sündïa é um raro momento de paz nas erupções sónicas do colectivo, mas constitui uma sublime elegia a John Coltrane.
As edições dos Magma escassearam a partir de 1976 e estagnaram durante 20 anos a partir de 1984. O regresso fez-se em 2004 com K.A. (Kohntarkosz Anteria), disco que recupera magistralmente o Zeuhl em pleno século XXI. K.A. funciona como prólogo a Köhntarkösz e é composto por 3 extensas e densas peças. Incrivelmente, há americanos evangelizados pelos Magma e esta crítica surpreendente da revista online Pitchfork define como ninguém o que se passa no disco....
A trilogia termina em 2009 com Ëmëhntëhtt-Ré, álbum que mantém a mesma forma do seu antecessor e que gravita em redor da essência dos Magma dos anos 70. Mesmo sendo Vander e a esposa Stella os membros que restam da formação original, a sonoridade que comporta os elementos clássicos do colectivo está presente por inteiro. Funëhrarïum Kahnt é gótico à moda dos Magma e as quatro partes de Ëmëhntëhtt-Ré recuperam a tríade cântico operático - música clássica do século XX - jazz de fusão na qual assenta o som único e desafiante dos franceses.
Não é fácil gostar dos Magma, tal como não é fácil entendê-los. É um grupo bizarro, que desassossega. Que tanto canta o fim do mundo, como a busca da luz e da espiritualidade. A sua sonoridade é a de um planeta em rebuliço, alienado da sua identidade. E não deixa de ser curioso que o globo pareça estar em muito piores condições actualmente, que quando Christian Vander teve a sua "visão". Seria profecia? Certo é que não há bandas nos dias de hoje a traçar o retrato fiel e negro do mundo, ou pelo menos o que ele merecia. Talvez os Radiohead, que estão de volta com mais um disco para nos assombrar. Mas esses estão demasiado encafuados no seu próprio útero misantropo para se preocuparem com activismos... Os Magma podem muito bem ser (ainda) o grupo a dar como exemplo a seguir quando se diz que a música de hoje em dia é demasiado tépida, narcísica e esquecível. Cópia de cópia de cópia de cópia...
Terminemos então com um agradável espaço de consulta do legado de Christian Vander. No site 7th Records é possível encontrar vídeos e temas dos Magma, assim como entrevistas e artigos de imprensa. Agora e sempre, nas palavras de um dos poucos bateristas-líder da história da música (e um dos melhores), à la recherche de la musique suprême. Ei-lo em acção, no misto de paixão e técnica que sempre o têm caracterizado, num excerto de K.A. III...