21 de outubro de 2011

Santa Aliança

Foram as estradas do minimalismo que ali os levaram. John Cale, músico clássico transformado pela electricidade e visceralidade do rock e Terry Riley, músico clássico infectado pelo jazz livre e pelos sons do Oriente, encontraram-se num vértice em 1970. Aí lançaram a primeira pedra na fundação de Church of Anthrax, disco cooperativo que apenas viria a luz do dia passado um ano. E a pedra basilar de Church of Anthrax é a música minimal. Tanto Cale como Riley eram dois dos mais proeminentes seguidores desta corrente, professando ensinamentos derivativos das suas experiências com John Cage ou o fundamental Theatre of Eternal Music, em que militavam igualmente nomes como Tony Conrad ou La Monte Young.
Após ter sido despedido dos Velvet Underground, John Cale iniciou uma frutuosa carreira a solo, iniciada em 1969 com o excelente e estranhamente acessível Vintage Violence. Terry Riley trazia na bagagem os recentes e imprescindíveis A Rainbow in a Curved Air e In C, duas obras-primas da música de vanguarda dos anos sessenta. A miscelânea de ideias dos dois homens origina um disco que parece ser rock composto por músicos clássicos, bem como música clássica tocada como se fosse rock. O regime minimalista é a única coisa que não arreda pé de Church of Anthrax. Assim como a toada progressista das peças, futuristas na forma, suspensas no tempo em que se desenrolam.
O disco abre com o tema-título, que se ergue em rasgos desiguais de Hammond e saxofone, contrastando com a cadência repetitiva e quase obsessiva do ritmo. À medida que os minutos passam, a intensidade aumenta, numa espiral arrasadora, semelhante ao voo de um insecto confinado a um espaço diminuto. Uma placidez estática instala-se com a chegada do belo The Hall of Mirrors in the Palace at Versailles. Piano e saxofone degladiam-se introspectivamente, mas nunca de costas voltadas. A música parece eterna, sentindo-se a aproximação conceptual às ragas indianas. E o amplo salão de espelhos do Palácio de Versalhes materializa-se perante nós, interminável e majestoso, num magnífico chiaroscuro musical.
The Soul of Patrick Lee constitui o momento mais diletante do álbum. A única canção, vocalizada por um misterioso Adam Miller, cujo timbre é, em muito, idêntico ao de John Cale. Ficará para sempre a dúvida se este Adam Miller não é mais que o próprio Cale em registo aveludado, ou um desconhecido escolhido pela similariedade na voz. A canção, essa, destoa do que vem para trás e do que se seguirá. É um curto interlúdio vocal, no que geralmente costuma ser instrumental. Uma bela melodia, contemplativa e melancólica, que tresanda ao Cale da primeira fase por todos os lados. O disco retoma o seu curso normal com Ides of March, um longo e veemente exercício minimal, tão cerebral como apelativo ao movimento. O feeling jazzístico transborda livremente, tornando esta a peça onde a improvisação é raínha e senhora. The Protegè, quinto e último tema, é, por sua vez, aquele onde o rock mais se ingere. Guitarra, baixo e bateria servem de suporte para um piano destemido e gingão, que nos retira de idílios meditativos e nos devolve às ruas.
Um dos charmes de Church of Anthrax acaba por ser a procura de sintonia, que ora se alcança, ora se esfuma, entre duas almas pouco gémeas mas muito inspiradas. Algures entre o erudito e o vernáculo, é um disco sem falhas, ilustrativo de facetas menos exploradas de dois músicos cujo talento e influência são sobejamente conhecidos.