28 de janeiro de 2012

O Canterbury

Pode ser apenas uma cidade (bem bonita, por sinal) do sudeste britânico, mas reuniu em tempos (involuntariamente ou não) uma certa vanguarda musical que ainda hoje predispõe bem. Ficarão para a eternidade associados a Canterbury nomes como os Soft Machine, Caravan, Gong ou Hatfield and The North. Outros, como os Matching Mole, foram pontos de paragem na viagem por esta suculenta sonoridade. A sua vida foi curta, mas selou um clássico do rock progressivo dos anos 70 em Inglaterra.
Acabado de editar o seu primeiro álbum a solo, o exploratório End of an Ear, e ainda a despertar do sonho diurno que foi a primeira encarnação dos Soft Machine, Robert Wyatt acolheu no seu regaço três membros da nata das natas do tal som de Canterbury. Eram eles o teclista David Sinclair (dos Caravan), o guitarrista Phil Miller (dos Delivery) e um excelente músico de estúdio chamado Bill MacCormick, especializado no baixo. Wyatt, como sempre, tomou conta da bateria e emprestou o timbre único da sua voz.  O nome do projecto, que foi igualmente o título do seu primeiro álbum, era uma variação estilística das palavras Machine Molle, a tradução para francês de Soft Machine.
1972 foi o ano da estreia. Uma estreia auspiciosa, que floriu como uma rosa, mas que logo murchou. O quarteto toca com ganas, interage por instinto, comunica por osmose. Os recursos estilísticos são típicos dos arquétipos de Canterbury: Elasticidade interpretativa, inventividade rock, criatividade jazz e a mescla única de melodia e complexidade para o topping de um disco belo e bizarro.
Quem resiste a O Caroline resiste a tudo. E não tem alma. De todas as sublimes criações com o cunho de Robert Wyatt, esta é uma das mais admiráveis. Uma canção de amor e de perda, inusitadamente luminosa, como se o objecto de desejo continuasse a viver em nós depois de ter partido e o elo de ligação persistisse. Provavelmente teríamos um fabuloso compêndio de canções de amor light se o álbum prosseguisse nesta toada, mas não estava na mente desta gente dar descanso ao ouvinte. Instant Pussy instala-se, com felino langor e o embalo oceânico da voz de Wyatt. Abre a porta para o magnífico Signed Curtain, canção com cabeça, tronco e membros, mas em que todos trocaram de posição. A letra é surreal, a música um rebuçado.
Part of the Dance tira-nos em definitivo da zona de conforto, presenteando uma longa jam de jazz e rock entrelaçados pelos cabelos. A expedição adensa-se em Dedicated to Hugh, But You Weren't Listening . Beer as in Braindeer, cuja progressão aventureira apenas encontra descanso na clareira rock com coda sibilante de Instant Kitten. Entre a aridez e a melancolia, o mellotron de Immediate Curtain encerra o pano.
O fugaz agrupamento editaria no mesmo ano mais um disco antes da dissolução: Matching Mole's Little Red Record, uma espécie de sucedâneo do primeiro registo, largamente instrumental, bom companheiro, mas nunca arrebatador. Meses depois, Robert Wyatt sofreria um acidente que acabaria com a sua vida enquanto baterista. Os Matching Mole arderam de uma vez, mas o infortúnio deu ao mundo um dos mais geniais e peculiares escritores de canções dos últimos 40 anos.