27 de dezembro de 2013

Electrochoque


Dois exactos meses passaram desde que o mundo e a música perderam Lou Reed. É difícil afastar o sentimento de negação. Foi a maior perda de 2013, o desaparecimento de um artista irreverente, descomprometido e esclarecido até ao fim. Influente como poucos conseguiram e numa constante alimentação e fuga da sua própria lenda.
Já quase tudo foi dito desde a morte do músico norte-americano, porque todos temos sempre algo para dizer quando perdemos um herói, um modelo, um ídolo. As elegias a Reed, visionário fundador dos Velvet Underground; Reed, anjo caído num mar de drogas e álcool nos anos 70; Reed, ressuscitado criativamente no final dos anos 80... Cada disco, cada nicho, cada alto e baixo da sua vida merece ser avivado e escrutinado, porque é feito da matéria que compõe as lendas.
Lou Reed foi o verdadeiro patriarca do rock sofisticado, à frente do seu tempo. Sem ele não haveria David Bowie, Ian Curtis ou Kevin Shields. Poetizou as drogas, sacralizou o álcool, encafuou as ruas de Nova Iorque nos nossos quartos e electrificou-nos as vidas. Tudo aquilo que os nossos pais não queriam que soubéssemos mas que existe e não pode ser escondido. Revelado algures entre o romantismo e o escárnio, a raiva e o sarcasmo de uma voz que contava enquanto cantava.
Cada um tem algo para dizer quando perde um ídolo. Eu não sou excepção. Agora a bruma da morte começa a dissipar-se e o consumo exacerbado da obra, provocado por uma euforia triste, ganha um critério mais selectivo. Ao fim de anos de culto, é Berlin o disco que mais me marcou. O mal amado Berlin, cuja fraca recepção aquando da primeira edição, em 1973, levou Reed a um desprezo pelo corporativismo musical cujo acme foi atingido com o terrorismo sónico de Metal Machine Music.
Uma vez mais, a clássica resiliência reediana venceu, e, 35 anos depois da edição original, Berlin foi alvo de merecida aclamação ao longo de uma série de concertos comemorativos. A celebração foi imortalizada em filme por Julian Schnabel e capta na perfeição o êxtase eléctrico, a poesia urbana e a musculatura rítmica que brotam do melhor Lou Reed ao vivo.
No fim sobra o vazio, o luto perpétuo. Fica pouco no mundo quando alguém que nos ajudava a suportá-lo e a fugir dele se desvanece. Restam os passeios pelo lado selvagem, os subterrâneos de veludo, a magia e a perda, os dias perfeitos...