27 de dezembro de 2015

O Lado Negro da Folk

First Utterance é o primeiro álbum dos ingleses Comus, nome que remete de imediato para o Deus grego, filho de Dióniso e representativo dos prazeres excessivos. Editado em 1971, o disco constitui um dos marcos primordiais nos flirts da folk com o rock progressivo que então despontava.
Esta primeira declaração de intentos é um misto de bucolismo e negrume, que oscila entre melodias pastorais mas complexas e um lirismo sombrio. O produto final é um disco hermético e desafiante, com tanto de sedutor como de assustador, mas que acaba por ser gratificante e envolvente quando as defesas do ouvinte se quebram.
First Utterance assemelha-se à banda sonora de um ritual pagão, uma cerimónia crua e improvisada, em que os instrumentos fluem ao sabor das emoções, entre o subtil e o febril, e as vocalizações se projectam entre o murmúrio e o grito mais animalesco. Estas são divididas entre homem e mulher - Roger Wootton e Bobbie Watson - e a sonoridade é arcaica, não no sentido antigo do termo, mas no sentido de algo sem tempo definido. Parece ser música que brota da terra, das pedras, da floresta. Conforta e repele na sua entrega por lapidar e nos atavismos que manifesta.
Os temas de First Utterance são, maioritariamente, extensos na sua duração. Propagam-se como um fogo em lenta combustão mas chispando constantes centelhas. Drip Drip e o encantatório e predominantemente instrumental The Herald são monumentos de embriaguez quase dionisíaca, danças nocturnas nos bosques cujas coreografias são tão belas como diabólicas.
Song to Comus e Diana (o primeiro e único single do grupo) apresentam-se como exercícios quase psicadélicos na imagética, mas mergulhados nas trevas e possuídos por qualquer espírito ancestral, vibrante e delirante. Não será de todo descabido afirmar que estes temas (especialmente o segundo) franquearam de sobremaneira as portas para o movimento dark folk surgido na Europa anos mais tarde e influenciaram a estética de projectos como os Sol Invictus ou os Current 93. Merece igualmente destaque All The Color of Darkness, canção apenas disponível na reedição do disco e que o brinda com um ocaso escarlate e melancólico, um culminar perfeito para toda a estranheza musical que a precedeu.
Na actualidade, First Utterance é um disco tão anacrónico como fascinante. Transporta-nos ao tempo em que as possibilidades musicais eram tão inocentes como infinitas e a mais louca das criatividades se manifestava sem receios nem preconceitos.