3 de julho de 2010

A Marca Amarela III

Merzbow é o mais conhecido dos aliases adoptados pelo japonês Masami Akita. O Anjo Negro do noise é detentor de uma discografia que ronda os 250 títulos, só em álbuns de originais. No activo desde a recta final dos anos 70, é tarefa árdua apontar uma obra que se assuma como definitiva na carreira do artista. Talvez 1930, datado de 1998, seja um disco a reter como exemplo da abrasiva expressão de Merzbow. Nele conjugam-se os elementos mais ambientais, experimentais e puramente ruidosos que traçam as linhas da sua geometria musical.
Não há nada de Masami Akita que seja fácil de ouvir. Não há nada de bonito nas suas criações. Isto não significa, necessariamente, que não exista nelas nada de belo. O conceito de beleza é elevadamente subjectivo nos discos de Merzbow. Ela pode surgir no silêncio que acalma as suas investidas mais impiedosas. Pode surgir no abandono que o som transmite quando desistimos de tentar interpretá-lo. Pode até ser intrínseca à própria música, cuja abstracção nos deixa à mercê das nossas pulsões mais primárias, agarrando-nos a alma pelas entranhas e confrontando-nos com a vertigem mais profunda do nosso Ser.
1930 é composto por 5 temas de puro ruído branco, cegante e flagelante. A ambiência geral faz-nos sentir como se fôssemos agarrados por uma pinça e colocados na dimensão da estática que se encontra entre duas estações de rádio. Um autêntico trabalho de bondage cerebral que quase faz sangrar os ouvidos de quem não estiver previamente alertado. Extensas e catárticas peças como o tema título ou Degradation of Tapes funcionam como chicotadas de som, uma inundação de ruído primário que repele tanto como compele. Ao cair nestas espirais de som, a música deixa de ser um prazer para se tornar em algo que provoca, que desafia e que catalisa reacções físicas que podem raiar a dor. À chegada do quinto tema, de bom tom intitulado Iron, Glass, Blocks and White Lights, só há duas coisas a discernir: este é o melhor tema do álbum, com as suas injecções de electrónica com odor a éter e ecos de música concreta, ou então o pesadelo ainda não se desvaneceu.
Nos minutos imediatos à audição deste disco, os ouvidos continuarão a pulsar como se a estática libertada ainda circulasse dentro de nós à procura de uma saída. O efeito pode causar inquietação e confusão, mas acabará por se desvanecer em breve. Outro efeito, a longo prazo, pode ser o de nunca mais voltar a este disco, ou o de guardá-lo num sítio recôndito, só nosso conhecido, onde saibamos que ele está, mas não o vejamos. Pode ser necessário para futuras expedições a dimensões sonoras de terrível beleza cujo portal poucos se atrevem a atravessar.