17 de dezembro de 2014

Celtic Soul

A música conjurada durante a primeira década da carreira de Van Morrison deveu tanto à poesia e ao misticismo como à mistura de folk, jazz e blues que lhe deu corpo. Após uma sucessão de álbuns imaculados e celebrados desde então como clássicos intemporais (Astral Weeks, Moondance, Tupelo Honey), o Leão de Belfast descansou. Os rigores da estrada e a montanha-russa de uma vida amorosa conturbada levaram-no a um retiro na sua amada e inspiradora Irlanda. Corria o ano de 1974 quando as musas da Ilha Esmeralda convergiram para Morrison e lhe sussurraram a essência de Veedon Fleece, uma das suas melhores e mais profundas criações, apesar de discretamente menosprezada.
Veedon Fleece é poesia pura. A súmula perfeita da alma ardente de Van Morrison, desfiada em regime introspectivo. A paixão e a entrega características do músico irlandês continuam omnipresentes, mas o registo enaltece uma sensibilidade despojada e os temas parecem envolvidos numa aura de beleza mística, idealista e ensopada em romantismo.
Fair Play inicia o lento encantamento, com um piano a gotejar e um ritmo circular que sustenta o canto arrebatado de Morrison. Como nas melhores canções do músico, complexidade e melodia chocam e repelem-se, com as emoções em constante intensidade. Linden Arden Stole the Highlights e Who Was That Masked Man são curtas canções cheias de alma. Estilhaços tão solenes quanto belos e que parecem fruto dos lampejos de inspiração que deve ser logo materializada ou perdida para sempre.
Streets of Arklow envolve-nos na sua atmosfera brumosa, acentuada pela flauta vincadamente celta e dilacerada por golpes orquestrais. Bulbs e Cul de Sac são os temas mais directos do álbum, bebendo avidamente da fonte dos blues, mas animados pelos adornos de um espírito mais irlandês que americano. Depois deles, é cedido o lugar às criações mais etéreas e sentimentais do disco: Comfort You é alma à flor da pele, confissão de desejo de união carnal e espiritual; Come Here My Love é uma das mais despojadas e tocantes canções de amor de Van Morrison e - porque não dizê-lo? - dos últimos 50 anos. A prova que basta uma voz e uma guitarra acústica para criar magia.
Country Fair fecha o disco em toada bucólica e apaziguadora, mas saturada de imagens criadas mentalmente em torno de verões campestres. O que significa exactamente Veedon Fleece provavelmente não é para ser conhecido. Ou não significará mesmo nada. Talvez a busca por uma espécie de Santo Graal poético, amoroso e mitológico que existe em cada um de nós. O melhor tema do álbum e a sua peça central, You don't Pull no Punches, but You don't Push the River, aponta para esta jornada interior e convida à deambulação pelos nossos labirintos particulares. A sua estrutura exploratória e a letra críptica trazem à tona o Van Morrison mais esotérico e experimental.
Após a conclusão de Veedon Fleece, Van Morrison iniciou um hiato de 3 anos na sua carreira musical. Quem sabe terá sido cansaço ou falta de inspiração. Mas seria bom acreditar que foi sensatez, deixando aos comuns mortais uma obra que exige tempo para ser assimilada mas que se torna fluída como o ar à medida que penetra nos recantos de cada alma.