25 de fevereiro de 2017

Paz e Ruído

No dia 13 de Agosto de 1969 em Paris, o pianista Dave Burrell reuniu-se com alguma da fina flor do jazz da época para registar duas composições da sua autoria. Os seus companheiros de aventura foram Archie Shepp (saxofone tenor), Arthur Jones (saxofone alto), Clifford Thornton (corneta), Grachan Moncur III (trombone), Alan Silva (contrabaixo) e Sunny Murray (bateria). O resultado é uma das obras mais extremas - senão a mais extrema - do jazz improvisado.
Ainda hoje é quase impossível resistir ao choque perante a audição dos primeiros segundos de Echo, a primeira das duas peças que compõem o disco com o mesmo título. Uma amálgama sonora desmorona-se subitamente sobre o ouvinte, numa cacofonia em que todos os instrumentos irrompem num turbilhão sem tréguas. Como se d' A Cavalgada das Valquírias em versão free jazz se tratasse. De acordo com Burrell, o princípio que rege este tema assenta em duas notas amplificadas e repetidas até à exaustão. Segundo o pianista, esta seria uma forma dos músicos descobrirem um grande número de coisas acerca dessas duas notas, bem como deles próprios. Certo é que, se os primeiros momentos do tema parecem querer repelir o ouvinte, com o passar dos minutos a música torna-se um monolito denso e entorpecente. Um redemoinho incessante, de onde irrompem gritos isolados dos vários instrumentos por entre a espiral que os afoga. Tremenda, intensa e imprópria para cardíacos, Echo é uma peça que exige uma aproximação cuidadosa e uma disponibilidade sem preconceitos por parte de quem busca os seus tormentos/encantos.
A segunda composição do disco, Peace, principia de forma mais plácida que a sua antecessora, mas não menos incisiva. Uma dissonante exploração de solfejo desagua num exercício de puro e abandónico improviso. Nas palavras de Dave Burrell, este tema explora a politonalidade, via acordes e arpejos, como um trampolim para alcançar a serenidade. Poucas vezes o jazz foi tão avant-garde como aqui e muitas vezes o jazz dos anos vindouros emulou a sua atmosfera esquizofrénica. A inquieta tranquilidade de Peace convida a meditações despertas e abstracções concretas. Um oxímoro musical, bizarramente gratificante.
Echo acaba por ser um produto típico da era dourada do free jazz. Contudo, poucas vezes alguém conseguiu ir tão longe nos seus intentos como Dave Burrell e seus co-conspiradores neste hiperactivo borrão sonoro. Continua a ser difícil de ouvir. Continua a não ser para todos. Continua a ser lendário.