20 de setembro de 2009

Kosmische Kosmetik VIII

Em sentido lato, A Meditation Mass, álbum de 1974 dos obscuros Yatha Sidhra, pode ser considerado como um tema que se espraia ao longo de 40 minutos. Aliás, pode ser considerado como a única peça que este colectivo alguma vez gerou. Dividido em quatro fragmentos, A Meditation Mass é um dos melhores exemplos da kosmische musik, todo ele assente num contínuo transe hipnótico, introspectivo e dolente, criado propositadamente para deambulações mentais e para o relaxamento físico. Construído na totalidade em torno de instrumentos orgânicos e acústicos, esta poderosa pérola possui o condão de elevar o espírito para uma beatitude quase sobrenatural, graças à mestria com que os músicos se interceptam e se interligam nesse comum objectivo.
Part 1, a génese, emerge lentamente de um eco aquoso, intra-uterino, para se ordenar num contínuo magnífico de guitarra gentilmente distorcida, percurssão ritualística e flauta mágica. Um estratégico e divinal moog imiscui a levitante tonalidade cósmica no tema, que circula e lateja sem sair do mesmo sítio. A caminho do fim, a voz de Rolf Fichter acrescenta uma aura mística, nitidamente hindu, acentuando ao extremo o que já estava a ser um mergulho na espiritualidade oriental. Com o contínuo eco da guitarra a preencher a peça, e sob improvisos de xilofone e flauta, a primeira fase da meditação funde-se a Part 2. Breve mas intensa, esta segunda parte enreda-nos numa teia de baixo minimal e circular, flauta pastoral, e num, algo surpreendente mas hospitaleiro, volte face jazzístico de piano e bateria. A cadência volta ao início na peça subsequente, obviamente intitulada Part 3. Mais do mesmo, mas que sublime que é este mesmo! Aqui, a guitarra deixa de ser envergonhada e inicia uma deambulação improvisada, num tapede voador de pendor jazzístico, doseado pelo psicadelismo mais experimental. A fechar, retornam as tonalidades mais bucólicas da flauta e o subtil instrumentalismo que se abre como um mantra, mas a olhar para dentro, a fazer esquecer o mundo exterior.
A génese que viu a luz na primeira parte de A Meditation Mass reencontra-se com ela própria para encerrar o álbum, em Part 4. Regressam as ambiências orientais que se fundem com a própria folk alemã, resultando numa atmosfera única, etérea, astral e beatífica. Discos como este são como pomada Hirudoid para a alma. São impregnados de música que não força para agradar, mas que agrada porque as vibrações que emana são puras e plenas de liberdade. Retomam um elo de ligação com a natureza e a espiritualidade humanas que aparenta ser actualmente recalcado, mas que é, na sua essência, inquebrável.

14 de setembro de 2009

Contos & Prosas II


Acendeu o 27º ou o 28º Marlboro da noite. Olhou a massa humana em volta e o copo meio-vazio (ou meio-cheio?) que segurava na mão. Rodando-o lentamente, pensou que o que lhe apetecia mesmo era um moscatel roxo e não aquela mistura de vodka barata e refrigerante de limão que lhe escorregava garganta abaixo, maquinalmente. Mas não, reconsiderou, não iria fazer misturas. À sua frente, a turba saltitante formava uma ondulação trôpega na pista de dança. A música era frenética, robótica, massuda. Obnubilante mas obnóxia, de tão forçada. Ele desejou que fosse novamente 1981. Ou, melhor ainda, 2003. Do primeiro só tinha uma vaga ideia, do segundo detinha a convicção que tinha sido o melhor ano da sua vida. Em ambos, a música era a mesma, revista e actualizada. Em ambos foi livre.
Sentiu-se estranhamente incomodado pela invasão destes pensamentos. Mais ainda por dar consigo a apanhar estilhaços de oportunidades desfeitas e sonhos perdidos numa noite como esta, num lugar como este. Percorreu com o olhar a área em seu redor. Viu corpos suados, corpos despidos, corpos colados, cérebros expandidos. Viu olhares cruzarem-se com o seu e trespassarem-no como se não existisse. Viu rostos deformados por luzes intrusivas. Viu mulheres, jovens e belas, que o ignoravam e outras que o viam também. Não viu rostos conhecidos, nem farrapos de presenças de outrora. Esteve muito tempo longe? Esteve muito tempo ocupado em mudar? Era ele que estava irreconhecível? Ou era este sítio, cujas paredes pareciam agora contrair-se como um útero intumescido para o expelir?
O tempo esvai-se, escoa como o suor que transborda da pista de dança e acaba por se imiscuir nas águas do rio. Ele sobe as escadas que dão acesso ao andar de cima e dirige-se à varanda. Lá está o rio, hibernando no negrume. A música tornou-se perceptível, quase que apostaria que eram os Fischerspooner, ou, num lampejo de irracionalidade, os Suicide. Será que ainda se ouvem por aqui? Bafejada pela fresca brisa da noite, a sua mente navega em águas passadas, que não movem moínhos, mas o transportam para doces memórias. Revive um final de tarde com Maria, em que o ar entrava pelas enormes vidraças abertas e cortinas de organza turquesa prolongavam e derramavam o céu de Verão sobre eles. Lembra-se que ela pediu chá branco e ele, por óbvia insegurança no campo das tisanas, pediu chá preto. Lembra-se do suave bailado dos cabelos dela, de como cobriam e descobriam os seus olhos de amêndoa e as pequenas sardas do seu rosto. Ali ficaram a ver o sol afundar-se, ele a falar com uma eloquência que desconhecia, ela a sorrir perante o mistério das suas palavras. Voltaram para casa de combóio e deram as mãos. Nunca se beijariam.
Noutra noite, naquele exacto local, acendera um cigarro a Marta e dissera-lhe que a amava. Marta murchou como uma flor, murmurando que ele era bom demais para ela. Ele retorquira, "Devolve-me então as minhas asas de anjo para voar para longe de ti...". Com ternura e um sorriso triste, ela acariciou-lhe o rosto e voltou para o dédalo de corpos em fúria. E ele ficou a olhar as águas negras e os seus olhos também se inundaram e também ele ficou nas trevas. Agora sentia-se velho, um espantalho empoleirado numa cruz, sem pernas, logo, sem pegadas que anunciassem o seu rasto. Sentia que não tinha história, que já não sentia na pele a presença física de toda a gente importante que lhe tinha passado pela vida. Não sabia se a escolha tinha sido dele. "As coisas podiam ter sido diferentes..."
De repente, uma palmada nas costas fá-lo voltar-se. "Já pensávamos que tinhas fugido" - disse Miguel. "Onde é que te meteste? Ouve lá, estamos de saída para o Op Art. Ainda vens?"
Em lento ressurgimento do seu torpor, ele balbucia: "As coisas podiam ter sido diferentes..."
Miguel ergue as sobrancelhas e riposta: "O que estás para aí a dizer? Vá, vamos para o Op Art, que ainda devemos apanhar os Booka Shade."
"Estou a dizer que as coisas podiam ter sido diferentes. Podia estar noutro lado. Não necessariamente aqui."
Miguel denota alguma impaciência: "Mas onde querias tu estar? Nós já estamos fartos do Lux e vamos ao Op Art. Vens ou não?"
Ele olha para o relógio, que marca 04:33. Pousa o copo meio-cheio (ou meio-vazio?) no balcão, ajeita a gola da camisa e diz: "Claro. Vamos ao Op Art."