30 de novembro de 2008

...Vintage Plus

Provavelmente, Kim Fowley já fez tudo o que havia para fazer. Ou talvez não. O homem que cria e produz música desde finais dos anos 50, passou por todas as ondas, géneros e modas desde então. Produtor, compositor, artista, editor, relações públicas, designer de imagem, ou apenas figura de corpo presente, Fowley participou num sem-número de êxitos discográficos, mantendo-se, mesmo assim, praticamente desconhecido fora do circuito de culto do meio musical. Entre outros feitos lendários, consta que terá sido ele a mostrar pela primeira vez a John Lennon e a Paul McCartney Pet Sounds dos Beach Boys (e toda a gente sabe o que aconteceu a seguir...), foi ele que produziu uma das primeiras canções dos Soft Machine, que descobriu o mítico guitarrista Ritchie Blackmore, que apresentou ao mundo as Runaways e que até foi convidado pelo egocêntrico Frank Zappa para integrar os seus Mothers Of Invention. Como nota de rodapé, afirmou que Boyd Rice era o novo Jesus Cristo, o que é intrigante até para os seus parâmetros... De qualquer forma, este pesadíssimo Curriculum Vitae nunca o afastou de onde mais se sente à vontade: a rua, de onde brotam as raízes das mudanças e fenómenos musicais que realmente interessam. Kim Fowley tem a bonita idade de 69 anos. Continua a mover-se onde sempre se moveu. E a surpreender. A sua música não é fácil. O seu imaginário, hermético. No campo do incatalogável, talvez lhe pudéssemos chamar o David Lynch do rock'n'roll. E ele também faz filmes, como exemplifica o recente Pink Cement. Ora apreciem Mr. Fowley em todo o seu inusitado e surreal esplendor:




Há mais, como que a provar que o termo freak não foi inventado por acaso...





Kim Fowley tem um site: http://www.kimfowley.net/. Por estes dias, o mesmo abre com uma pequena película / pérola acerca de um final diferente nas últimas eleições norte-americanas e que é simplesmente hilariante. Só para mentes abertas e sem preconceitos, como tudo o que rodeia a arte deste homem, aliás...


Vintage pode ser algo raro, algo que não se produz mais. Pode ser algo que definiu uma época. Pode ser igualmente a capacidade que um vinho tem de envelhecer em garrafa ganhando com isso qualidades. Kim Fowley é vintage, Luiz Pacheco já o foi em vida, continuará certamente a sê-lo no legado que deixou. Envelhecer assim não é sinónimo de decadência. É fazer da decadência obra de arte e demonstrar que uma vela sozinha numa imensa escuridão pode brilhar mais intensamente que mil néons vazios e repetitivos...

Vintage...

É impossível não associar o envelhecimento à decadência, a uma degradação involuntária quer física, quer cognitiva. Saber envelhecer é uma arte, assim como saber envelhecer na arte. Se tornar-se mais velho é tornar-se mais sábio, mais prudente ou mais sensato, pode ser também um realçar dos traços de carácter mais vincados, para o melhor e para o pior.

Luiz Pacheco faleceu em Janeiro de 2008. Pode afirmar-se com uma grande dose de certeza que viveu a vida mais rocambolesca e tragicómica de todos os escritores portugueses do século XX. Nascido no seio de uma família burguesa, termina os seus dias num lar de idosos no Montijo. Pelo meio, passou pela vida como um indivíduo alto, escanzelado, calvo, usando óculos com lentes muito grossas devido a uma forte miopia e, posteriormente, cataratas, cuja cirurgia o amedrontava, vestindo roupas usadas (por vezes andrajosas e abaixo ou acima do seu tamanho), hipersensível ao álcool (o que lhe valeu a fama de bêbado incorrigível), hipocondríaco julgando-se sempre à beira da morte (devido à asma e a um coração fraco) e um acintoso conversador, sempre rebelde e, por vezes demasiado, irreverente. Foi lançado há pouco tempo o livro O Crocodilo que Voa, que reúne, sob a coordenação de João Pedro George, uma série de entrevistas a várias publicações que Luiz Pacheco deu desde 1992. Obra obrigatória para conhecer a biografia desde autor e, particularmente, o seu discurso único, muitas vezes colorido e corrosivo, mas sempre lúcido. Alguns textos de Pacheco, com destaque para o imortal e desafiador O Libertino Passeia por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor encontram-se aqui, zona que possui igualmente links para excertos de um documentário que passou na 2, pouco antes da sua morte e que vale muito a pena ver.

Há em cada um de nós uma pulsão de vida e uma pulsão de morte; um desejo de sobrevivência e de auto-aniquilação. Por vezes, há quem se sinta mais vivo na falha que no sucesso, na carestia que na opulência. Quase como um futebolista que prefere rematar para o lado perante uma baliza vazia...

29 de novembro de 2008

Contos & Prosas


Havia já algum tempo em que acordava e o primeiro pensamento que me invadia era a morte. Naquela manhã em particular, esse pensamento perseguia-me e assolava-me, deixando-me num limbo entre tomar o pequeno-almoço ou ficar na cama até padecer de inanição; entre o barbear-me ou aproveitar o facto para golpear-me no pescoço um pouco mais profundamente e ficar a olhar-me no espelho até os olhos perderem a cor a as pernas perderem as forças. O primeiro pensamento depressa se desvaneceu, pelo tempo desperdiçado e as escaras que o meu corpo podia vir a contrair. O mesmo aconteceu ao segundo, pelo excessivo derramamento de sangue que tal acto implicaria no chão impecavelmente limpo da casa de banho. Eu não gosto de dar trabalho a ninguém, muito menos à minha esposa, e idealizava uma forma muito mais clássica e romântica de morrer. Uma garrafa de absinto combinada com uma caixa de Rohypnol, talvez... ou, quiçá, cortar os pulsos numa banheira enquanto me esvaía bebendo umas taças de Don Perignon ao som dos Requiems de Mozart e depois de Ligeti no meu iPod...
Com o passar do tempo e com o transtorno da bicha na portagem da Vasco da Gama, a ideia recorrente desvaneceu-se graciosamente. No rádio do carro soava Brian Eno e, entre o torpor do trânsito e o cinzento da manhã, deixava-me embalar por sons que não me faziam sentir vivo nem morto, apenas suspenso... E pensei que seria maravilhoso a vida real clivar-se por uns momentos e deixar-me ser livre. Livre para estar só.
O telefonema tinha ocorrido 3 dias antes. Uma voz sóbria, de um indivíduo que aparentava ter uns 50 anos, observava ter recebido o meu currículo (“Curriculum”, como indicou...) e pedia a minha comparência numa entrevista. Era hoje. O meu emprego satisfaz-me e realiza-me tanto como o de 20% dos portugueses (25%, talvez, contando com o empregado de mesa do “Café Real”, que tem a motivação extra de partilhar a sua cama de solteiro com a filha de 22 anos do patrão e o Sr. Alberto da Casa de Alterne “O Cravo Negro”, porteiro que leva as meninas a casa em noites de tempestade e goza de alguns favores das mesmas por essa atenção), logo, e pensando no salário, aceitei sem hesitações.
A manhã no emprego, com as habituais críticas destrutivas do chefe e as vozes monocórdicas dos colegas, fez-me odiá-lo mais um pouco e a morte voltou para me assombrar o pensamento. Cheguei a pensar no foco de discórdia e confusão que provocaria na equipa o facto de me enforcar na casa de banho com o fio do rato do meu computador (por falar nisso, este rato está tão perro que tem que ser limpo...). Se calhar pediriam aumentos... Ou culpariam a última derrota do Benfica... Mas isso não seria belo e é o belo o que mais me preocupa no fim. A maioria das pessoas gosta de um final feliz. Nos filmes, nas peças de teatro, nas novelas da TVI... Eu preocupo-me com o meu final feliz. Uma morte feliz. E bela. Tão bela que só podia ter sido inflingida por quem era dono da sua antítese, da sua vida.
Aproveitei a hora de almoço para me escapulir. A entrevista era ali perto, na Duque d’Ávila. Estava nervoso. Tinha bebido uns copos de Porca de Murça ao almoço para relaxar, mas agora o medo imperava. O hálito a tinto duriense preocupava-me, assim como as pupilas dilatadas. Como hoje era um dia especial e trajava fato e gravata, encaminhei-me para a Versailles. Levava já na ideia uma bica dupla, uma água Castello, uns cigarros para sorver concentração.
Eram 2 e meia da tarde. Três pessoas espraivam-se pelas mesas do solene recinto. Uma senhora idosa, com ar de quem passava as tardes ali, segurando na mão esquerda um cigarro com boquilha e na direita uma revista cor-de-rosa; um homem que aparentava a minha idade, fitando o vazio com um café à sua frente, gravata roxa, que paranoicamente imaginei ser mais um convocado para a Minha entrevista de emprego; um jovem barbudo, cabeça baixa, semi-oculta por uma garrafa de água lisa, lendo avidamente. Adivinhei-o estudante, ou simpatizante do Bloco de Esquerda. Descartei a última hipótese, pois, passados momentos, levantou-se para sair e vislumbrei um livro de Paul Auster na sua mão direita.
Os espelhos seguiram os meus passos até uma das mesas do canto. O empregado serviu-me uma bica dupla que traguei com prazer enquanto lia avidamente uma e outra vez umas páginas representativas da empresa que me aguardava dali a uma hora. Repetidamente soavam-me nos ouvidos as expectativas da minha mulher (“Vai tudo correr bem”), da minha mãe (“Tu és capaz”), do meu amigo Miguel (“É agora ou nunca”). A morte espreitou por entre os meus pensamentos, mas estava ocupado demais para ela...
Ao princípio não reparei no vulto que se sentou na mesa oposta, de frente para mim. Até pensei que fosse um truque dos espelhos, mas ao olhar para a sombra foi o meu rosto que vi. Descortinei um movimento de braços a libertarem-se de um pesado casaco e olhei furtuitamente. Uma mulher de cabelos negros e lábios excessivamente pintados olhava ao redor, em busca de alguém que a servisse. Retomei a leitura e notei, com satisfação, que o indivíduo da gravata roxa se dirigia para a saída. “Menos um” – pensei, apercebendo-me imediatamente do ridículo da minha constatação.
Momentos depois, alguém surge de pé ao meu lado. Era ela. Era impossível não reparar nos lábios redondos e escarlates.
“Posso usar o seu isqueiro?” – Perguntou.
A abordagem causou-me um certo incómodo, pois estava embrenhado na leitura. E mais estranheza me causou, pois ela segurava um cigarro aceso entre os dedos.
“Para quê?” – Respondi, com uma certa rispidez.
“Para queimar o que você está a ler. Não deve ser agradável, pois fá-lo suar.”
Levei a mão à testa e ela voltou encharcada. Esbocei um sorriso esquálido pela tensão que começava a apoderar-se de mim com a proximidade da entrevista.
“O que estou a ler é muito importante. Muito mesmo.” – Disse eu, num misto de desdém e frieza. “Está a estudar. Vai ter um exame...” – Observou ela.
Pensei para comigo o que teria esta mulher a ver com isso. Um pêndulo soou. Ou seria imaginação minha? Sem saber bem porquê, senti que eram 3 da tarde. Faltava meia-hora para o aguardado momento. E as folhas de papel continuavam nas minhas mãos, não pela ordem que as arrumara primordialmente. E aquela estranha mantinha-se de pé ao meu lado, olhando-me como se fosse o último homem em Lisboa numa tarde outonal de quinta-feira. Estragava-me o estratagema, arruinava-me a concentração. Apetecia-me mandá-la desaparecer, que me deixasse sozinho na minha ansiedade insondável.
“Sente-se...” – Murmurei.
“...se quiser, logicamente.”
Como se fosse uma deixa num diálogo há muito ensaiado, ela assim o fez. Cruzou os braços em cima da mesa e o branco do atoalhado rivalizou com o relevo alvo do seu busto, insinuante no decote que parecia apontar para mim. Debruçou-se mais na minha direcção e olhou para os papéis que segurava, esboçando um meio sorriso inquisitivo.
“Não me diga que é mediador de seguros?”
“Não me diga que é puta?” – Apeteceu-me responder de rompante.
“Estou a tentar vir a ser. Isto é, pelo menos até você chegar.” – Acabei por dizer, forçando a ironia.
“Até eu chegar? Quer dizer que pode já não vir a ser por minha causa?”
Todo o espaço ao meu redor pareceu implodir com laivos de surrealismo. Será que ao fim de tanto tempo à espera desta oportunidade, a minha auto-confiança iria esboroar-se por causa de uma desconhecida que decidiu gozar comigo só porque eu bebia bicas duplas? Ou porque suava em bica? Ou porque poderia ser um seu potencial cliente, quiçá o primeiro do dia? Logo eu, que tinha comprado o meu fato preto num outlet e os sapatos na Zara?
“Caso não tenha reparado, a sua presença causou-me um certo incómodo. Estava a tentar estudar, pois tenho uma entrevista daqui a pouco, e você veio interromper-me.”
“E não gostou? Se não, porquê convidar-me a sentar?”
Aos poucos, a tipa tirava-me do sério. E pior ainda, tirava-me o tempo que restava. Eram agora 3 e um quarto. Daqui a 15 minutos, estaria a ser entrevistado, ou a aguardar ansiosamente num sofá de pele enquanto ia treinando sucessivamente a melhor forma de dizer “Boa tarde, o meu nome é Vasco Pinto.”
“Por mera cordialidade” – respondi.
“Agora que fiz a minha parte, pago a minha despesa, pago também a sua, e vou retirar-me”.
“Tem mesmo que ir? Passe a tarde comigo.” – afirmou ela.
Não consegui evitar rir desta vez. E cheguei à conclusão de que ela não era puta, apenas maluquinha. Debrucei-me sobre ela, olhei-a fundo nos olhos castanhos, densos mas límpidos, e respondi:
“Porquê eu?”
“Quem é que lhe ofereceu essa gravata?” – Perguntou ela.
Depois desta resposta/pergunta, tudo era possível. Parecia ter-se instalado uma folie a deux entre nós e eu não sabia como parar o carrossel. Olhei o relógio. Faltavam 10 minutos para a hora combinada.
“Foi a minha esposa, nos meus anos. Se quiser comprar, vendo barato”. – Respondi eu, levantando-me e tirando umas moedas do bolso para pagar a despesa.
“Acredita nas coincidências, no acaso, em momentos irrepetíveis da nossa existência?”
Estava à espera de tudo hoje, menos de esoterismo nas Avenidas Novas.
“Acredito em tudo o que você quiser, desde que me deixe ir embora. A sua despesa está paga.” – Respondi, pegando na pasta de couro que repousava ao meu lado.
“Hoje de manhã quando acordei senti-me tão só, tão morta... Como nunca me tinha sentido... Vesti a minha roupa mais sofisticada, calcei os meus sapatos mais finos, vesti o meu casaco comprado em Manhattan e saí para a rua. Ninguém reparou em mim. E eu queria que reparassem. Que os homens reparassem. Em como ainda posso ser bonita. Em como o meu cabelo ainda pode dançar ao sol. Em como os meus olhos ainda guardam música. Há muito tempo que não amo, que só tenho a companhia de espelhos côncavos, salas vazias e velas fantasmagóricas. Nada me parece real, nem eu... E então no táxi, a caminho daqui, pintei os meus lábios do vermelho mais vivo que consegui encontrar. E disse para comigo mesma que era hoje que ia encontrar um corpo que se colasse ao meu, uma chama que me devastasse como a um bosque impenetrável. E esse corpo, esse homem, seria o primeiro que encontrasse que tivesse vestido uma peça de roupa vermelha. Quero fazer amor consigo até me sentir viva, e depois nunca mais o quero ver. Salve-me... Já não aguento mais estar morta no mundo dos vivos...”
Voltei a sentar-me. Olhei para baixo e a gravata vermelha que trajava aparentou-se com uma língua que pendia, flamejante. O tempo escoava como areia por entre os meus dedos. A razão não estava a ser, de todo, razoável.
“Devia ter trazido a gravata cinzenta... Se calhar tinha passado mais despercebido...” – pensei, abulicamente.
Ela pegou-me na mão.
“Venha comigo... Vamos para a minha casa...”
Já sei o que isto era. Uma vez, quando era criança, a minha professora primária classificou uma cópia minha com um rotundo “Mau”. E disse-me que nunca seria ninguém na vida. Aqui está a consumação da profecia. A praga da velha senhora professora Odete chegava ao seu culminar. Estava à beira de conseguir o emprego mais estável e promissor da minha vida, e uma mulher que eu ainda nem sabia o nome, de lábios encarnados e decote (ou deveria chamar-lhe Dédalo?) acentuado, pedia-me sexo sofregamente.
Mas não, não era isso! Era, com pompa e circunstância, a anunciação da morte! Tanto tempo que esperei por ela, tanto tempo a procurá-la e ela, matreira mas inorexável, como nos contos e lendas antigos, chegava para me reclamar. Não sob a forma de um ente qualquer, inominável e disforme, de hábito negro e foice na mão descarnada, mas sob a forma da tentação, do inescapável. Era o Diabo que me vinha buscar. Ia para o Inferno, ainda por cima. Eu bem sabia que não devia ter bebido água benta daquela vez em que, quando era criança, já não aguentava a sede durante um jogo de bola estival no adro da Igreja.
Esta mulher tinha vindo para me levar. Era a morte que, disforme e nebulosa, me ocupava o espírito nas últimas horas da noite e nas primeiras da manhã. E eu, que tanto tinha ansiado por ela, que tanto a desejava e romantizava, via-a surgir num corpo feminino. Era óbvio. E como iria ela ceifar-me? Antes de abandonar por completo tudo o que era real ao meu redor e deixar-me levar por aquelas mãos macias que me arrastavam da escuridão do café para a tarde chuvosa, só consegui perguntar:
“Minha senhora, tem preservativos?”

Kosmische Kosmetik II

Motorik: Motor skill: 2 por 2. Em sucessivas e livres depurações é possível sintetizar a alma musical de Michael Rother. É possivel sintetizá-la, mas nunca contextualizá-la. O guitarrista e teclista co-fundador de colossos musicais como Neu! ou Harmonia, gigantes da inovação musical alemã dos anos 70 e que ainda hoje são refrescantes como da primeira vez que se fizeram escutar, é um músico eclético e ímpar. O álbum Sterntaler, segunda obra a solo datada de 1978, prova-o inequivocamente. Produzido pelo mestre Conrad Plank, aqui se encontram as paisagens e os patchworks que o definem. Rítmos maquinais, como se avançássemos por uma interminável autobahn, ladeada de arvoredo / ladeada de indústria, melodias hipnóticas e uma permanente atmosfera de fuga. Ao real, aos outros, ao nosso lado vulgar...
O disco começa como um prolongamento do mais emblemático dos Neu!. A batida mecânica que dita o ritmo a forçar-nos a entrar na viagem e a guitarra hesitante a abrir caminho, até que um refrão sem voz, feito de um riff magnânimo dá o mote para o que todo o álbum nos oferece: música que é alegre e triste ao mesmo tempo. Que pode ser ouvida como viagem interior nos confins de um quarto escuro, ou a avançar determinadamente por uma estrada inundada de luz. É assim Sonnenrad. Segue-se Blauer Regen, composição esmagada pelas guitarras, suaves mas melancólicas, austeras no minimalismo, mas sempre emotivas. Stromlinien movimenta-nos novamente. Mais uma jornada dentro da nossa mente, melodicamente irrepreensível, que parece permitir-nos olhar a paisagem que se espraia perante nós apenas uma vez, pois é preciso continuar, é preciso que nos movimentemos. É preciso avançarmos em direcção a algo. Sempre. Até ao fim. Eis que chega Sterntaler, peça feita de um deslumbramento quase infantil, pejada de electrónica que quase se respira como uma brisa outonal e cuja melodia é deveras encantatória. É música feita descoberta, um regresso ao despojamento em que o sentir se sobrepõe ao pensar. É impossível definir Fontana di Luna recorrendo a outro termo que não seja o que o próprio título encerra. Um xilofone lunar, uma atmosfera reconfortante, quase um regresso ao útero... mas com um coração que pulsa inexoravelmente. Orchestrion encerra a edição original do álbum, colocando uma vez mais o ritmo no horizonte, como se corressemos em direcção ao Sol mesmo sabendo que não o podemos tocar. Seguem-se 3 faixas na reedição do disco, datada de 1993: Lichter von Cairo, Patagonia Horizon e Südseewellen. Não sendo totalmente descaracterizadas da edição original de Sterntaler, apresentam-se como um complemento maioritariamente electrónico e de cariz ambiental às composições mais sensoriais e emotivas do original. Ideal para quem queira prolongar a viagem onírica ou meditativamente...

5 de novembro de 2008

I Hope They Can


This is our time, to put our people back to work and open doors of opportunity for our kids; to restore prosperity and promote the cause of peace; to reclaim the American dream and reaffirm that fundamental truth, that, out of many, we are one; that while we breathe, we hope. And where we are met with cynicism and doubts and those who tell us that we can't, we will respond with that timeless creed that sums up the spirit of a people: Yes, we can.


Este é, indubitavelmente, um dia histórico. Faço votos que estas palavras do primeiro discurso de Barack Obama como Presidente dos Estados Unidos ecoem pelo futuro e por todo o Mundo e, principalmente, que tenha vencido a tão ansiada mudança. O meu Eu céptico, pela primeira vez há muito tempo, sente um rasgo de ESPERANÇA...

2 de novembro de 2008

Kosmische Kosmetik

O primeiro album de Joachim Ehrig, artisticamente conhecido como Eroc, foi lançado em 1975. Misto de guitarras e electrónica, esta obra apresenta momentos sublimes e ricos em textura e melodia. Após uma breve introdução, chega Kleine Eva, peça avassaladoramente bela na sua simplicidade e minimalismo e que, à medida que se vai revelando, nos pode transportar cada vez para mais longe ou fazer-nos retornar a um ambiente in utero. Uma autêntica miríade hipnótica de sons que funciona como uma canção de embalar cósmica e convida à meditação. Músicas como esta poderiam durar para sempre... O tom prossegue com Des Zauberers Traum, que parece suspender-nos no espaço e no tempo e faz-nos sentir como serpentes à mercê de um qualquer encantador. O encantamento quebra-se, contudo, com a chegada de Die Musik Vom "Oldberg", em que Mozart parece encarnar num sintetizador dos anos 70 e nos agarra num breve e repentino vaudeville electrónico. Surge em seguida Chaotic Reaction, interlúdio preenchido por tambores africanos frenéticos, colagens sonoras e um orgão jazzístico que irá desembocar na guitarra refrescante e planante que preenche a belíssima Norderland. Segue-se o experimentalismo de Horrorgoll, pleno de ambientes sombrios, sobreposições electrónicas e vozes sampladas, que nos confronta pela primeira vez com o sonho mau que podemos ter mesmo adormecendo no paraíso. Sternchen, faixa onde a guitarra impera novamente, parece voltar a transportar-nos para um mundo distante, fazendo-nos levitar para depois nos mergulhar num mar de reverb. Segue-se Teenage Love '69, cujo título diz tudo. Uma guitarra ensolarada e sentida provoca reminiscências de um amor há muito vivido, do mistério da descoberta de outros lábios e de outra pele, da nostalgia da perda da inocência. Talvez o mais teutonicamente parecido com saudade... E o sentimento de nostalgia prossegue com Abendfrieden, mais uma peça de música tão poderosa quanto frágil, breve mas penetrante. Ostergloingg parece tentar remendar memórias de um Verão há muito passado, soando a música feita com instrumentos quebrados e o disco chega ao fim com Andromeda, despedida feita sem preparação prévia e atabalhoada como são quase todas. Soa a partida, mas também ao princípio de algo. Algo que parece brilhar...

Poema para S. III


Se
Numa noite em que a Lua não brilhe
Te sentires triste
Não chores
Eu estarei contigo
Para secar qualquer lágrima com um beijo
Para te abraçar até que a glória da manhã nos invada

Se
Um dia ao olhares o espelho
Sentires que o tempo sulcou o teu rosto
Não o quebres
Eu estarei contigo
Para te dizer o quanto és linda
E que te amarei para toda a eternidade

Se
Numa noite em que o silêncio pese
Te sentires só
Não sofras
Eu estarei contigo
A tua cabeça no meu ombro
A minha mão nos teus cabelos
A encher-te de mil cuidados

Se
Num dia de Inverno
O gelo entrar no teu coração
Não tremas
Eu estarei contigo
Inventarei fogo para ti
Rasgarei a minha pele
E cobrir-te-ei com ela para te dar calor

Dawkins

Esta é, seguramente, a melhor peça ensaística que li este ano. Do mesmo autor, já tinha lido e apreciado bastante O Gene Egoísta, mas A Desilusão de Deus surge como uma obra sóbria, lúcida, acutilante e até bem-humorada na forma como aborda a polémica (ou talvez não?) questão dos malefícios da religião. Evolucionista e ateu convicto e militante, Richard Dawkins afirma pretender que todos os leitores da sua obra abandonem as suas religiões a favor do ateísmo. O objectivo afigura-se difícil, mas este livro é escolha obrigatória para quem se interessa por religião, para quem se interessa por ciência e para quem realmente PENSA. Aqui fica uma apresentação onde Dawkins aborda os principais fundamentos da sua teoria. Quem espera encontrar Satanás em pessoa, talvez se surpreenda ao encontrar um gentleman simpático, bem-disposto e carregadíssimo de RAZÃO...