28 de janeiro de 2013

Velho Testamento


Para as gerações mais novas, Tim Buckley fica muitas vezes confinado ao estatuto de pai de Jeff Buckley. O filho, tal como o pai, malogrado prematuramente, deixou-nos Grace, obra-prima que deixava antever glórias maiores mas nunca cumpridas. Um disco que se tornou marcante na existência musical de muito boa gente. O legado de Tim é bastante mais extenso, eclético e exploratório. Começou como bardo folk rock no seu primeiro álbum, adicionando temperos psicadélicos à sua música em registos como Happy Sad e Blue Afternoon. Um progressivo interesse pelo jazz e pela música de vanguarda desenhou o esqueleto de Lorca e Starsailor, as suas obras mais experimentais. E os seus últimos discos voltaram-se para territórios em que a nunca abandonada folk foi exaltada pela soul e pelo funk. Esta derradeira fase é a menos interessante da carreira do músico, se bem que Greetings From L.A. seja um dos seus registos mais celebrados.
Tim Buckley viveu uma existência de progressivos excessos. Por ironia do destino, escapou ao Clube dos 27, mas a morte levou-o aos 28 anos, calando uma das mais belas e impressionantes vozes que o mundo conheceu.
My Fleeting House é o documento visual mais completo dedicado ao músico norte-americano. Feito de interpretações ao vivo de temas que marcaram a sua história e da pontual participação de colaboradores (caso do guitarrista Lee Underwood, presença constante durante toda a carreira de Tim), este documentário de 2007 é um tesouro de arquivos que ajudaram a construir a lenda. As rendições brilhantes de clássicos como Song To The Siren, Dolphins ou Morning Glory enfatizam o génio e a voz única do cantor, uma voz que tanto cantava poesia como era ela própria um instrumento a juntar aos demais, uma entidade abstracta que encantava mesmo sendo ininteligível.
Se a memória de Jeff Buckley continua muito viva (basta ver a quantidade de doppelgängers de Grace que continuam a ser editados), a de Tim é cíclica, nunca saindo dos escalões do culto. Um génio que deu vida a outro génio, ambos torturados, ambos levados demasiado cedo. Mais que um pai, um genitor de arte.

4 de janeiro de 2013

Remédio Santo

Os Cure sempre resultaram melhor movendo-se por entre as sombras que expostos à luz. Artesã de canções pop enormes e intemporais, a banda de Crawley caracterizou-se igualmente pela bipolaridade. Pela alternância entre rigor negro e surrealismo colorido, entre rarefacções góticas e baforadas de ar fresco. À desolação hardcore de Pornography seguiu-se a pop mergulhada em psicadelismo de The Top. Ao caleidoscópio inconsistente de Wild Mood Swings seguiu-se a neblina monolítica de Bloodflowers. E, entalado entre duas obras de extrema variedade criativa e alguns tiros ao lado (Kiss Me Kiss Me Kiss Me e Wish) encontra-se o opus maximus do grupo: Disintegration.
Rezam as crónicas que o líder Robert Smith se encontrava mergulhado em águas depressivas quando o disco veio à tona. Indefinições artísticas, envelhecimento, incompreensão, eis alguns dos fantasmas que Smith invocou para a sua concepção. A desintegração emocional provocada pela confrontação com uma realidade sombria, contrária às expectativas.
Disintegration não é um disco para ouvir de ânimo leve, muito menos com os ouvidos. É algo pesadamente sentimental, que se incrusta no coração como a criatura de Alien. A música é, invariavelmente, arrastada, escura, aquosa e desavergonhadamente romântica. Insistentemente sublime. Os temas são longos e expansivos, com pontuais excepções, como os celebrados e eternos Lovesong e Lullaby, duas das mais perfeitas e irresistíveis criações dos Cure. Mas é como um todo, de uma ponta à outra, que esta obra de arte deve ser consumida. Do prelúdio à tempestade em tons de psicadelismo cinza de Plainsong à melancolia resignada e crepuscular de Untitled. O fim, a ideia de extinção, estão sempre presentes, mais ou menos metafóricos, mas sempre dilacerantes (Pictures of You, Disintegration, Closedown). Prayers For Rain e o monumental The Same Deep Water As You são momentos magistrais de profunda introspecção, tão atmosféricos como intensos. E a depressão torna-se doce no embalo oceânico de música tão onírica.
Se Disintegration não fosse um disco dos Cure, provavelmente não teria tido o sucesso massivo que conseguiu. Sucesso que deu azo a uma reedição titânica, composta por quatro discos, em 2010. Mais que merecido e ideal para quem não vive sem esta música, da mais bela e triste alguma vez feita. Um milagre sonoro para melancólicos praticantes.