24 de novembro de 2010

Embuste Galáctico

O agrupamento alemão conhecido como Cosmic Jokers editou cinco álbuns em 1974, sem nunca realmente ter existido. Esta história, incongruente e insólita, merece sempre ser contada.
Em 1973, o ex-patrão da editora Öhr, Rolf-Ulrich Kaiser, decidiu congregar a ínclita geração da Kosmische Musik para uma série de sessões de estúdio. Eram eles os Kosmische Kuriere, o poderoso combo que emprestou o seu génio aos discos míticos de Walter Wegmüller, Sergius Golowin e à colaboração entre os Ash Ra Tempel e Timothy Leary. Composta, entre outras, por luminárias como Klaus Schulze e Manuel Göttsching, esta unidade reuniu-se para uma série de jam sessions espaciais e alucinantes, desconhecendo que estava a gravar para a posteridade algumas das peças mais fora de órbita que o rock alguma vez conheceu.
Rezam as crónicas que Rolf-Ulrich Kaiser aliciou os músicos para o estúdio oferecendo-lhes alucinogéneos gratuitos em troca de improvisos inspirados. Sendo os ácidos motor de arranque para as musas de muitos dos músicos desta era, os mesmos não se fizeram rogados. Após a conclusão do festim, o produtor Dieter Derks tratou de transformar o caos em ordem e a música foi lançada em disco. Meses depois, o guitarrista Manuel Göttsching decidiu ir a uma discoteca de Berlim para ouvir as novidades. Ao ouvir um som novo a transbordar das colunas, perguntou o que era. Ficou a saber que aquela guitarra bluesy, spacey, freaky, que estava a ouvir, era ele mesmo e a sua nova banda: The Cosmic Jokers. E a peixeirada estalou.

Para além do extravagante Kaiser, a usurpação musical teve o conluio da sua não menos colorida namorada, Gille Lettman. A senhora auto-intitulava-se artisticamente Sternenmädchen, ou Dama das Estrelas. Deu a voz e a cara no último disco da pseudo-banda, Gilles Zeitschiff, construído a partir de gravações pré-feitas e muito provavelmente o primeiro álbum de remisturas da história. E o resto sucedeu-se em catadupa: Processos em tribunal, os discos retirados do circuito e Kaiser e a luz dos seus olhos a fugirem da Alemanha. Felizmente, as gravações foram conservadas e podemos ainda apreciar a fabulosa, inovadora e única sonoridade dos Cosmic Jokers em toda a sua plenitude.

No que realmente interessa, ou seja, a música, os Cosmic Jokers deixaram um dos legados mais incríveis e extasiantes do rock alemão de setentas. Cada disco, mas especialmente os três primeiros, são obras-primas do psicadelismo cósmico e trippy (como já foi dito, o quinto álbum é um disco de remisturas, sendo o quarto uma espécie de sampler de vários actos que convergem na banda que nunca existiu). São discos quase hardcore na abordagem despudorada feita à música sob a influência de alucinogéneos. Guitarras lânguidas, que parecem projectar a aura dos blues no vácuo do espaço sideral, teclados faiscantes que cortam o negro como raios luminosos, bateria em constante elipse e pontuais vozes femininas que murmuram como sereias no Mar da Tranquilidade.

Galactic Joke, Cosmic Joy, Kinder des Alls, Galactic Supermarket... Momentos de absoluta rêverie, que invadem e conquistam a mente, deixando o ouvinte num estado de semi-torpor, interrompido por despertares electrónicos e batidas meteóricas. A lei da gravidade não impera aqui, o que reina é um transe contínuo e total, um carrossel imparável que gira a anos-luz deste mundo. É o som de buracos negros, quasares e nebulosas.
Verdade ou mito, a história dos Cosmic Jokers é a história de músicos geniais e inventivos, quebrando barreiras, ultrapassando fronteiras e tornando o próprio som uma contínua experiência lisérgica, detentora do poder de alterar consciências. Se o cérebro tivesse um ponto G, esta música titilá-lo-ia com pétalas e vibrações de seda.

Expo 70

O objecto voador identificado como Expo 70 é uma one man band veiculada por Justin Wright, californiano amante de cavalgadas cósmicas. Em rotação desde 2003, o projecto tem concebido gravações em catadupa, carregando já o peso de mais de 12 álbuns lançados, muitos deles em edição limitada e feitura artesanal. O segredo é simples, a estética complexa. Reside sobretudo na criação de longas peças instrumentais em improviso, perpétuos drones que descendem em linha directa do space rock ou da primeira e mais hermética vaga da kosmische musik. A música é sempre meditativa, minimalista, transcendental. Materializa-se do nada e evapora-se sem sabermos qual é o fim. Podemos atirar nomes, como quem lança cartas num truque de ilusionismo: Klaus Schulze, Kluster, Tangerine Dream, Hawkwind, Brian Eno, Sunn O))), Pink Floyd... Expo 70 é tão somente mais uma designação a juntar a esta metafísica congregação.
Os títulos e a imagética também não iludem. Infinite Macrocosm, Galaxy of Misticism ou Journey Through Astral Projection são discos que prometem o que cumprem: Longos minutos de abandono e hipnose sonora, para mentes disponíveis que procurem vaguear sem destino. As capas, apelativas simbioses de desenho e fotografia, de real e de imaginário, remetem-nos imediatamente para o grafismo garrido e psicadélico das edições da Brain, Ohr ou Sky na longínqua mas imortal década de 70. A quase totalidade do design é da autoria de Justin Wright, nitidamente um artista que depura no seu tempo o melhor de outro tempo. Tudo para seguir com maior detalhe em http://www.exposeventy.com/.
Um último parágrafo para destacar o mais recente (e soberbo!) lançamento deste projecto: Where Does Your Mind Go?. A avaliar pelo som que lá está guardado, para todo o lado e para lado nenhum em simultâneo. O álbum é constituído por quatro longos temas, quatro trajectos cósmicos e planantes, em que a noção do tempo é deliciosamente perdida. Podemos ouvir 10 minutos de uma peça e ter a sensação de que ela ainda agora começou... A música paira, como névoa, esticando e encolhendo os seus limites, convidando-nos tanto à abstracção como a esgueirarmo-nos para o portal que ela entreabre subliminarmente. A escolha é do ouvinte. Eu prefiro a segunda hipótese, bastando apenas seguir o conselho que dá título ao primeiro tema: Close Your Eyes and Effortly Drift Away...

9 de novembro de 2010

The Blue Nile Waltz

Em quase 30 anos de existência, a obra dos escoceses Blue Nile resume-se a quatro álbuns de estúdio. Os longos interregnos entre os lançamentos deixam intuir, para além da postura descontraída, uma banda mais preocupada com intenções artísticas que comerciais. E é certo que todos eles revelam preocupação com os detalhes, fazendo do trio de Glasgow autênticos mestres das possibilidades sonoras e técnicas do estúdio de gravação. Filhos da primeira geração do compact disc, os Blue Nile usaram e abusaram do digital nos primeiros discos, mas conseguiram sempre fugir à obesa e saturada produção que infectou os anos 80. O seu som é maduro, contemplativo, quase cinemático. É o som das grandes cidades à noite, imensas e solitárias, artificialmente luminosas mas sempre mergulhadas na escuridão. Vai beber ao jazz e à soul, sem deixar de ser pop alternativa para gente crescida e cansada de descargas hormonais eléctricas e descontroladas.

O primeiro longa-duração de Paul Buchanan e seus pares data de 1984 e intitula-se A Walk Across the Rooftops. Bateria é coisa que não existe por estas paragens. Os ritmos sintetizados são arrastados ou hesitantes. Somente nos dois singles extraídos do disco as coisas aceleram ligeiramente. De ambos, Tinseltown in the Rain é nitidamente o mais conseguido, um excelente pedaço de sofisticação pop, ao mesmo tempo emocionalmente exposto. O seu companheiro de 45 rotações, Stay, não é tão memorável, valendo pela sempre bela e sentida voz de Buchanan. O tema-título é um excelente exemplo de exploração do recente som digital da época. Uma escultura de estúdio, tecnicamente perfeita, mas arejada e penetrante em cada novo som que inventa. From Rags to Riches experimenta sons alienantes e que, opondo-se ao conceito de canção, acabam por tornar o tema mais misterioso e cativante. Mas os tesouros deste disco estão guardados nos temas mais lentos, que calha serem os três últimos. Heatwave e Automobile Noise são retratos perfeitos de solidão urbana, cinzentos blocos sonoros, de agridoce melancolia e contida lamentação. O ponto alto do disco é, definitivamente, Easter Parade. À mercê de um piano que soa como pingos de chuva, é uma monumental e triste canção, com Paul Buchanan mergulhado num esparso e poético solilóquio. Um momento de lindíssima solenidade.

Cinco anos volvidos, os Blue Nile regressam à suave carga com Hats. E este segundo álbum é, verdadeiramente, de se lhe tirar o chapéu. Estamos perante um discreto colosso, mas que é um dos melhores discos da década de 80. Mais atmosférico e denso que o seu antecessor, é perspicaz que uma livre descrição no YouTube o defina como o melhor disco para conduzir pela cidade à noite. Apesar de encaixar parcialmente na leitura da música, este rótulo é mais que redutor, pois Hats é, acima de tudo um disco para preencher a noite. Até muito tarde. Até que a solidão não doa. Até que a insónia cante vitória.
Hats ouve-se como um filme em widescreen que capta ruas nocturnas, molhadas de chuva, em que o asfalto reflecte néons azuis e vermelhos e em que automóveis se sucedem em câmara lenta. Uma noite anónima, que nos abre os braços com mil possibilidades de a atravessar, mas que, quando o abraço se fecha, apenas deixa resquícios de vazio. Não vale a pena apontar altos e baixos, pois todas as canções são clássicos distintos e sofisticados, vestidos a rigor para uma noite romântica cujo par é uma incógnita e pode até ser ninguém. Over the Hillside, Seven A.M., Saturday Night, projectam-nos para os solitários e nocturnos quadros urbanos de Edward Hopper, como Nighthawks, New York Movie ou Automat. Os dois singles, Headlights on the Parade e o fabuloso The Downtown Lights são melódicos e acessíveis sem perder o toque artístico e a elegância que percorre o álbum. Na melancolia escura e arrastada de Let's Go Out Tonight e From a Late Night Train somos engolidos pela noite, que nos gela o coração e nos arranha os ossos. Trazem-me à ideia a primeira quadra do poema O Sentimento de um Ocidental de Cesário Verde: Nas nossas ruas ao anoitecer/Há tal soturnidade, há tal melancolia/Que as sombras, a maresia, o Tejo, a melancolia/ Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Se Paul Buchanan lesse estas estrofes, aprovaria certamente. A sua sublime e emotiva prestação vocal é uma das mais sofridas e doridas que já ouvi. Sempre no limite da contenção, sem trair o gentleman ferido mas fleumático que narra estes épicos de solidão, romantismo e abandono. Hats é um disco enorme, que deve ser resgatado do esquecimento a que parece votado nos últimos anos.




Sete anos depois, Peace at Last apresenta-nos uns Blue Nile totalmente transfigurados. Longe das alquimias de estúdio, o álbum é maioritariamente acústico, com fortes influências country, gospel e soul. Happiness e Tomorrow Morning poderiam ser baladas de Bruce Springsteen da fase The River... Depois temos temas como Sentimental Man, Family Life ou God Bless You Kid, em que Paul Buchanan soa torturado como sempre, mas que ruminam as delícias da vida doméstica. É cruel dizê-lo, mas as melhores canções surgem em vivências de crise. Para os Blue Nile isto não é excepção. Estas odes de quem finalmente encontrou a paz são belas e bem arranjadas, mas demasiado mornas perante o fogo e o gelo de Hats.
Mais oito anos foram necessários para a banda dar à luz o seu quarto rebento. High de seu nome, é um disco de brando ardor, pleno de canções nocturnas e frágeis, mas sempre sofisticadas, como só os Blue Nile sabem fazer, apresentando-se como o real e digníssimo sucessor de Hats. O estilo e o bom gosto pululam por toda a obra, com arquitecturas electrónicas e acústicas em perfeito convívio. De Days of our Lives a Stay Close, passando por I Would Never, Because of Toledo ou Soul Boy, High será, talvez, um dos melhores discos de canções de 2004 que ninguém ouviu. Mais fica. Quem descobrir os Blue Nile agora, percebe que não perdeu nada. Toda a música foi preservada no âmbar que ultrapassa o tempo.

6 de novembro de 2010

Jazz Trip

Pelo que se ouve no começo, bem poderia ser uma composição de Albert Ayler ou Anthony Braxton. Mas a súbita e impiedosa invasão electrónica coloca-nos num limbo onde é estranho e intrigante permanecer. Esta coisa chama-se Triptik 2, espantosa primeira faixa do único álbum do francês Jean Guérin. Guérin costumava ser baterista de jazz nos finais dos anos 60. Free jazz para ser mais preciso. Como se a audácia e o experimentalismo dessa escola não lhe bastassem, o músico decidiu temperar o seu estilo com fortes injecções electroacústicas (Stockhausen e Xenakis perseguem-no com o olhar...) e adicionar-lhe ainda fortes pitadas de musique concréte.
Tacet, disco de 1971, é uma pérola na obscuridade, um dos mais surreais e originais discos de jazz do século XX. A base assenta nos alicerces usuais do género: bateria, trompete, saxofone e contrabaixo. Mas a intrusão poderosíssima da electrónica primitiva e a utilização da voz (neste caso a da senhora Françoise Achard) como uma interjeição instrumental a juntar às demais, colocam Tacet num plano mais elevado. No plano da música incatalogável.
Será jazz o que se ouve em Maochat? Será música clássica contemporânea o que se ouve em Ça va Lecomte? É tudo isto e ao mesmo tempo não é nada. O jazz empalidece até à transfiguração gerada pelas máquinas, a atonal estrutura das composições é mantida em lume brando por sopros esqueléticos de trompete ou cambaleantes swings de contrabaixo. Na Itália, os Dedalus esculpiam pedra similar. Tal como a electrónica abstracta dos alemães Kluster, que aqui parece encontrar uma alma gémea. Permitimos a entrada a Interminable Hommage a Zaza e a voz que nos sopra aos ouvidos parece tão inumana (em linguagem sensitiva e não no sentido filosófico de Lyotard) como a bizarra e estilhaçada instrumentação parece lisérgica. O melhor é deixado para o fim. Gaub 71 resume exemplarmente a trip à qual acedemos e da qual é difícil despertar. Nebuloso e centrífugo, leva o jazz (se é que se pode chamar a isto jazz) a mares nunca dantes navegados.
Depois desta experiência extrema, Jean Guérin nunca mais voltou. Tacet foi a banda-sonora de um esquecido fime de autor (Bof, de Claude Faraldo), mas o seu arrojo e ambição artística mantém-no até à data como banda-sonora para a mente. Um dos discos mais estranhos, vanguardistas e imprevisíveis que ouvi até hoje, em qualquer estilo. Continua a ser fundamental para o entendimento de como as linguagens electrónicas mudaram o rumo da música do século XX, radicalizando até o que parecia imutável. Uma lição e uma cartilha para os experimentalistas da actualidade.

4 de novembro de 2010

Kosmische Kosmetik XVIII

Nascido em Praga, mas tornado suíço, Sergius Golowin foi um dos nomes maiores da contra-cultura germanófila. Operando quase sempre na sombra, mas extraordinariamente influente nas mentes mais livre-pensadoras dos anos 60 e 70, o denominado Timothy Leary germânico foi personagem-chave na implementação e defesa da cultura jovem na Suíça e na Alemanha. Escritor por essência e investigador de temas esotéricos e enraízados no folclore teutónico, não tardou que Golowin fosse adoptado pela emergente vaga do rock cósmico e psicadélico nesses territórios. Essa associação acabou por gerar um fruto, que se tornou numa das obras de culto mais lendárias, mas pouco divulgadas, do krautrock: Lord Krishna von Goloka. Construído em 1973 e tendo como principais obreiros os membros dos Cosmic Couriers (congeminados pelo cérebro dominante do produtor Ralf-Ulrich Kaiser), Lord Krishna von Goloka é um disco que funciona como uma experiência religiosa, quase mística. Uma missa psicadélica e pagã, em que a música espacial serve na perfeição as declamações mântricas de Golowin. Segundo é apregoado, o guru vivia nos Alpes e tinha três mulheres, pelo que as musas parecem estar reunidas para uma forte dose de inspiração...
Três temas compõem o álbum. Der Reigen abre o portal para esta dimensão paralela, mergulhando-nos desde logo num mantra ritualístico e hipnótico. Os teclados ecoam em suspenso, circulares e penetrantes, até que surge Golowin, a sua voz em transe imperturbável, ecoando poesia cósmica. Flauta e guitarra acústica embalam-lhe as palavras até meio da viagem, altura em que o domínio folk é destronado pela invasão de uma percurssão primitiva e tribal, iluminada pelo piano cadente e cristalino de Klaus Schulze. Uma peça verdadeiramente do outro mundo! Die Weisse Alm parece espraiar-se ao longo dos Alpes, a melodia acústica e angelical a penetrar os ouvidos como de ar puro das montanhas se tratasse. E Golowin evoca a Edelweiss, a bela flor alpina, símbolo de pureza. Assim, toda a canção exala essa pureza e simplicidade, irradiando luz a cada movimento. Um hino à união entre a natureza e o divino, que convida a escapar para longe da asfixia urbana, rumo à meditação e à paz interior.
O improviso astral regressa com redobrada força em Die Hoch-Zeit. A congregação orgiástica dos instrumentos varia entre a aridez e a opulência, com destaque para as ondas planantes de mellotron e para os espasmos libertadores da percurssão, uma espécie de tambores do Punjab ecoantes e distorcidos. E não é preciso saber alemão para entender a mensagem, pois ela é universal.
Lord Krishna von Goloka assemelha-se, em menor dimensão, a outra obra concebida pela fina flor do krautrock: o monumental e soberbo Tarot de Walter Wegmüller, mais um helvético. Mas enquanto este oscila entre a iluminação e o oculto, o sagrado e o profano, Sergius Golowin revela uma experiência mística total. Um toque germânico dos deuses do firmamento a oriente.

Luzes Sombrias

O primeiro disco de Richard & Linda Thompson é o melhor de uma obra extraordinariamente consistente. Uma verdadeira obra-prima e um dos melhores álbuns de folk rock de sempre. É um disco tão belo quanto doloroso de ouvir. E o segredo da sua magia cortante como o frio de uma noite de Inverno reside na convergência entre beleza e dor.
Richard Thompson, um dos grandes guitarristas da história da música britânica, já não fazia parte dos seminais Fairport Convention. Linda, a futura esposa, era uma cantora de estúdio que ele abraçou sentimental e musicalmente. O primogénito fruto artístico da colaboração, I Want to See the Bright Lights Tonight, datado de 1973, é um disco praticamente intocável, comovente até para um coração empedrenido, espiritual até para um físico quântico.
Não há um tema que desponte acima dos seus pares. Persiste apenas a teimosia da perfeição. Richard dá voz a temas mais vincadamente tradicionais, como o sonho de fuga à opressão de When I Get to the Border e We Sing Hallelujah. A Linda e à sua forte e expressiva voz ficam entregues baladas lindíssimas como Withered and Died ou a solidão desesperada de Has He Got a Friend for Me. Favoritos pessoais, que toldam grandemente o discernimento, são a marcha lenta intitulada The Calvary Cross e o austero e sombrio tema final, The Great Valerio.
Sobra a grandeza dos restantes. E persevera a poesia em todos. Se a música prende pela melancolia, as palavras apertam ainda mais o nó com os seus relatos de vencidos da vida, amores impossíveis, fantasias proletárias e falsas esperanças. E basta aceder ao soturno The End of the Rainbow para ficar refém de um refrão que parece resumir a intencionalidade das letras do disco: Life seems so rosy in the cradle / But I'll be a friend, I'll tell you what's in store / There's nothing at the end of the rainbow / There's nothing to grow up for any more. Enfim, um tema apropriado ao Portugal de 2010...
Mais cinco álbuns sucederam a este. Viria a bizarra conversão do casal ao islamismo no excelente Pour Down Like Silver. E viria Shoot Out the Lights, a última estação antes do divórcio deste casamento que nunca poderia ser apenas musical. E foi este último o disco que mais se aproximou do estatuto de obra-prima alcançado por I Want to See the Bright Lights Tonight. Mais uma prova da grande arte que tanto brota do nascimento como da morte do amor.

Blues Attack

Reza a lenda que Jon Spencer cresceu quase sem acesso à música na casa onde vivia. Que as únicas sonoridades que permeavam as paredes eram de velhos discos de blues e programas de rock'n'roll debitados pelas rádios locais de New Hampshire. Isto tem um fundo de verdade tão consistente como qualquer rumor, mas é romântico imaginar que o futuro líder dos radicalmente ruidosos Pussy Galore e membro honorário da banda da esposa, os Boss Hog, angariou a crueza da sua música a partir dessas primárias sonoridades.
Em boa hora temos assistido, durante o corrente ano, às reedições da obra da Jon Spencer Blues Explosion, o mais vistoso projecto do norte-americano. Tem a peculiariedade de ser um trio sem baixista e com uso consistente de theremin. Apresenta música embebida no petróleo dos blues e do rock'n'roll e incendiada pela chama do punk e do noise, libertando a energia básica das primeiras e mantendo-se igualmente vanguardista e experimental. Álbuns de genial e provocante delírio associados a electricidade demoníaca como Orange, Now I Got Worry ou Acme, têm sido revistos e expandidos, para gáudio dos adeptos deste colectivo subversivo. Quem não conhece, está mais que na hora de deslizar para este pântano infestado e assombrado igualmente por Gun Club, Cramps, Dead Moon ou White Stripes. Ah, quem me dera ver estes rapazes a abrilhantar uma gala dos Ídolos ou um programa de Júlio Isidro com a serenidade e presença dos grandes artistas. Mais ou menos assim: