19 de outubro de 2013

Sortido Pop Art


Pode ter sido considerado o primeiro evento multimédia de sempre, ou a primeira rave party de que há memória, mas o Exploding Plastic Inevitable foi muito mais que isso. Foi a génese da promíscua mas salutar relação entre as artes do cinema, da música e da performance.
Perde-se na bruma do tempo o que realmente aconteceu nesta série de eventos organizados por Andy Warhol durante os anos de 1966 e 1967. As próprias filmagens existentes resumem-se a uma curta metragem realizada por Ronald Nameth. Mas o que se assiste nesses escassos minutos é um claro vislumbre da envergadura dos actos e da ruptura com as normas vigentes. Nunca se tinha feito nada assim e muitas foram as pálidas imitações que se seguiram, sem todavia conseguir a chama mística de projectar Kiss ou Whips sobre o rock abrasivo dos Velvet Underground. Nem capturar Nico na plenitude da sua beleza esfíngica. Ou as danças transgressoras de Gerard Malanga e Mary Woronov.
Imaginam-se os eflúvios de dança, substâncias e celebridades arrastadas para e pelo Exploding Plastic Inevitable. Imagina-se a atmosfera de assistir ao advento de uma nova era, sem compromissos, de total e desafiante liberdade pessoal e artística. E é impossível não associar Camões a Warhol, citando que melhor é experimentá-lo que julgá-lo, mas julgue-o quem não pode experimentá-lo. Até porque escasseia a quantidade e a qualidade de happenings sucedâneos no presente. Eis a reportagem possível.

                             

O Piano Infinito

Deixando de lado a forma e insistindo no conteúdo, The Well-Tuned Piano contém alguma da música mais estranhamente bela e cativante criada por La Monte Young. O próprio compositor norte-americano, tido por muitos como o patriarca do Minimalismo, considera-a a sua obra-prima. Mas considera-a igualmente inacabada, sendo que tem vindo a sofrer acrescentos e remendos desde 1964 até aos nossos dias.
Uma performance de The Well-Tuned Piano pode durar entre cinco e seis horas. Sendo uma peça essencialmente improvisada, não possui uma estrutura rígida, exigindo apenas ao executante uma sucessão de secções e sub-secções pré-definidas. O resultado é um mergulho num mundo de sons maioritariamente hipnóticos, que varia entre ruminações lentas e idílicas e espirais intensas e repetitivas.
Tal como o título da peça intui, a afinação do piano é a base da sua interpretação. Mantida secreta durante quase três décadas, foi apenas revelada em 1991, permitindo que a composição passasse a ser executada por outros que não o seu autor. É esta forma alternativa de afinar um piano que provoca a catadupa de sons estranhos mas igualmente familiares que envolvem o ouvinte. As cordas ecoam espectralmente e transmutam-se em reverberação. Vislumbra-se uma osmose entre o formalismo da música clássica ocidental e as texturas simples e monofónicas da música oriental, especialmente da Índia.
Haja tempo e disponibilidade para a absorver e The Well-Tuned Piano tornar-se-à uma experiência recompensadora. Uma peça-chave não só do Minimalismo e dos drones caracteristicamente explorados por La Monte Young, mas de toda a música vanguardista do século XX. Nunca um piano foi tratado assim.

18 de outubro de 2013

Psicadelismo Outonal

Numa altura em que se celebra o regresso dos Mazzy Star com a expectável qualidade melancólica de Seasons of Your Day, é interessante resgatar da obscuridade o primeiro projecto de David Roback, cara-metade artística de Hope Sandoval. Surgidos da fornada de bandas de Los Angeles dos anos 80 que ficaram eternamente vinculadas ao movimento Paisley Underground, os Rain Parade recuperaram um certo psicadelismo, assente numa insustentável leveza associada a doces tons de cinzento.
O colectivo californiano editou o seu primeiro álbum em 1983. De nome Emergency Third Rail Power Trip, é uma pérola semi-desconhecida, um artefacto de culto mas suavemente apaixonante. Como toda a tendência do género Paisley Underground, é um disco revivalista e pouco ligado aos cânones da sua época. As guitarras byrdsianas, as vozes lânguidas e arrastadas e um instinto melódico a la Big Star não deixam margem para dúvidas quanto às influências da banda que David Roback liderava com o seu irmão Steve. Mas corre nas veias desta gente uma soturnidade latente, sem sintomas explícitos, que usa óculos escuros num solarengo dia de Verão sem os tirar quando a noite cai. 
Indo directo ao assunto, nada como nomear a esmagadora Carolyn's Song. É a melhor canção do álbum e uma das melhores dos anos 80 (transcende-os, de facto). Uma balada dolente e dorida, com espasmos de bateria e apertos de electricidade no coração. O projecto melancólico de 1º escalão This Mortal Coil apresentaria a sua versão anos depois, em Blood, mantendo a beleza triste mas nunca o desgosto sonolento do original.
Nada chega aos calcanhares deste momento em Emergency Third Rail Power Trip, mas há motivos de sobra para a sedução e rendição aos encantos dos restantes 9 temas que o formam. Tais como a nuvem em dia de sol de What She's Done To Your Mind, a sonhadora e envolvente Kaleidoscope ou a levitação psicadélica de This Can't Be Today. Talking In My Sleep parece antecipar os Stone Roses (rapazes com influências similares, porém mais luminosos), Look At Merri ginga com tímida sensualidade e o álbum termina com um rock de garagem quase puro intitulado Look Both Ways.
Emergency Third Rail Power Trip foi reeditado em 1992, acompanhado do segundo registo da banda, o igualmente interessante e refinado mini-LP Explosions In the Glass Palace. E é esta a edição que vale a pena ter, sobretudo por You're My Friend, single de 1985 e um dos seus temas mais imediatos e melhor desenhados. É certo que nesta altura David Roback já sabia bem o que fazia e os Rain Parade são tão importantes e consistentes como tudo o que se seguiu no seu percurso musical.

2 de outubro de 2013

Like a Rolling Stone


Já lhe chamaram o Santo Graal das biografias de estrelas do rock e com toda a legitimidade. Mais que um livro, Life é uma revelação. A biografia para esmagar todas as biografias. Pela frontalidade, crueza e sinceridade. Como se Keith Richards fosse trancado connosco numa sala vazia, apenas com um volume de Marlboro e uma garrafa de Jack Daniel's e desfiasse intimamente o seu rosário de memórias.
É um solilóquio que não deixa nada por dizer, nenhum mito por esboroar, nenhum rumor por confirmar. O lendário guitarrista dos Rolling Stones aplaca-nos a curiosidade acerca da sua vida preenchida de música e excessos. A vida que o levou da infância pobre na cidadezinha de Dartford no pós-2ª Guerra Mundial à aclamação universal como guitarrista da maior banda de rock'n'roll do mundo.
O resto é o que se espera de Keef:  A avalanche de drogas, a fuga que propiciam, o combustível narcótico que delas advém e a desconstrução do seu romantismo; o sexo com mulheres que nunca pensou vir a ter; julgamentos de vária ordem; tiros, facas e carros a acelerar pela noite americana; a verdade sobre Brian Jones; a reputação de Mick Jagger estraçalhada. E, mais que tudo, um enorme fuck you à autoridade e às normas estabelecidas lançado por um homem que viu e viveu mais do que qualquer um de nós alguma vez sonhou. Um homem que, apesar da carapaça durona e o epíteto de excessivo e decadente demonstra, não raras vezes ao longo do livro, uma sensibilidade enorme e cavalheiresca.
Nenhuma descrição faz plena justiça ao que se encontra por entre as páginas de Life. Os pormenores sumarentos e as revelações surpreendentes só fazem sentido relatados pelas palavras de Keith e pela pena do seu co-autor, o jornalista James Fox. Dizer que esta obra é imprescindível para qualquer verdadeiro amante do rock torna-se, assim, redundante.