30 de novembro de 2009

Modas Outono - Inverno

Bill Fay é um dos mais obscuros, esquivos e geniais singer-songwriters dos princípios de 70 em Inglaterra. Algures entre o protesto cortante de Bob Dylan e a melancolia contida e elegante de Nick Drake, Fay comunga da voz pouco depurada mas expressiva do primeiro e do cinzentismo outonal e algo lúgubre que povoa as melodias do segundo. Em dois álbuns de referência, Bill Fay e Time of the Last Persecution, o cantor conquistou a matéria que faz os cultos e as lendas, ou seja, pouquíssimos discos vendidos e uma devoção considerável entre a intelligentsia mais atenta aos recantos poeirentos do passado provinda das gerações vindouras.
Os dois primeiros álbuns de originais, lançados, respectivamente, em 1970 e 1971, valem acima de tudo pelas fortíssimas composições individuais. Canções frágeis, de base folk, mas adornadas a espaços por uma solenidade e uma grandiosidade orquestral avassaladora, o que acentua ainda mais a fragilidade dos seus alicerces.
Bill Fay é uma obra-prima de canções outonais e chuvosas, por vezes circunspectas, feitas de tristeza resignada, de amores escorregadios e existências marginais. São 13 os temas que a compõem, todos uniformes na mestria da composição e na carga emotiva da entrega. Bill Fay soa como um Bob Dylan a quem emprestaram a orquestra de Scott Walker por alturas do magistral Scott 4. The Sun is Bored começa como uma nuvem a cobrir o Sol, até ribombar como um trovão e terminar com as palavras And the sun goes down / Never to rise again. Sing Us One Of Your Songs, May é uma belíssima elegia a mais uma jovem e incógnita vida perdida na guerra. A mesma temática prossegue na amargurada Gentle Willy, onde a visão das batalhas e da morte persegue inexoravelmente a sua figura central. Methane River é um hino à luta contra a adversidade, de poema simples que a melodia exacerbada torna comovente. Em peças de pouco mais de 2 minutos, Bill Fay consegue ser o mais expressivo dos trovadores, imerso em melodias lindíssimas e espectrais, inesquecíveis para os espíritos mais dados ao romantismo. The Room, Goodnight Stan, Cannons Plain, são pequenos monstros, absurdos no tamanho da sua intensidade e beleza. Be Not So Fearful tem sido alvo de cover várias vezes por uma das mais respeitáveis bandas americanas da actualidade, os Wilco, o que prova que este grande homem só influencia pela positiva. Esta primeira obra termina na mesma toada fatidicamente bela com Down to the Bridge, canção para ver um riacho a passar em dia de Inverno, sob ponte de pedra...
Time of the Last Persecution, o segundo álbum, é invadido, suavemente, por investidas eléctricas e alguns floreados blues-rock. Nesta toada, a abertura feita com Omega Day é deliciosa. Contudo, o disco não se deixa vislumbrar como uma peça mais luminosa que o seu antecessor. A prova surge logo na claustrofobia triste do segundo tema, o dorido Don’t Let My Marigolds Die. ’Til The Christ Come Back e Plan D são canções de redenção após a tentação ou a imersão no pecado. A canção de protesto mostra os caninos aguçados subtil mas magistralmente em Pictures of Adolf Again e Come a Day. Isto sem esquecer o penumbrento mas quase messiânico tema-título e o final impregnado de doce melancolia de Let All The Other Teddies Know.
Para além destes dois álbuns, Bill Fay lançou somente um single. Lançado em 1967 e constituído pelos duplos lados A Some Good Advice e Screams In The Ears, é uma belíssima porta de entrada a este génio ostracizado da música britânica. Um terceiro álbum, Tomorrow Tomorrow & Tomorrow, foi gravado em finais de 1970 mas somente lançado em 2005 pela mão de outro fã, desta feita David Tibet, testa de ferro dos apocalípticos Current 93. Sobra ainda a compilação de raridades From The Bottom Of An Old Grandfather Clock, editada em 2004. Tudo material altamente aconselhável deste sombrio e fugidío baladeiro inglês. Mas nada como as duas primeiras obras para apreender a experiência em pleno e, na mais feliz das circunstâncias, ficar viciado nela.
P.S.: Dada a parca informação existente acerca do bardo, vale a pena dar uma espreitadela ao único site que lhe é inteiramente dedicado. http://www.billfay.co.uk/ contém uma biografia decente, assim como a discografia e as letras completas.


21 de novembro de 2009

Alva Soul

A Strange Arrangement impregnou novamente a minha ímpia alma de soul. Já não me lembro há quanto tempo isto não acontecia, provavelmente desde que Jamie Lidell cantou mais alto. O álbum deste ano de Raphael Saadiq é também um ardor constante. Mas aqui canta-se melhor e as convenções são brilhantemente revolvidas. Não me canso desta voz. Não me canso destas canções quentes e lânguidas. Discos como este são um raio de sol permanente, uma prova que a (boa) música não tem cor ou idade. Podia ser um álbum de um monstro sagrado como Marvin Gaye, Otis Redding ou Al Green, algo gravado na Motown dos anos 60 ou 70. Na realidade, foi feito por um indivíduo branco do Michigan com um ar meio nerd chamado Mayer Hawthorne, que calha ter um vozeirão superlativo. É uma obra intemporal, transbordando excelentes canções, casualmente editada em 2009 e, desde já, uma das marcas discográficas do ano. Magnífica e contagiante, que é somente o que interessa. Não há muito mais a dizer, senão deixar a música penetrar cada poro, fechar os olhos e deixar a alma à mercê desta deliciosa cascata sonora. Definitivamente para ouvir numa companhia muito desejada. Acredito que derreta icebergs e faça milagres...

20 de novembro de 2009

Agridoce Sul

Os Housemartins trazem-me deliciosas memórias de infância. De tempos sem responsabilidade e horários / prazos para cumprir. Algo que só atingirei novamente se conseguir uma reforma que pague um bom Lar ou o seu sucedâneo moderno denominado Residência Assistida. Tal como o tempo, que avança inexoravelmente, assim esta simpática banda de Hull presenciou a sua desagregação. Este desmembramento levou a que o quasi desconhecido baixista Norman Cook se tornasse a maior estrela do fugaz movimento Big Beat sob o pseudónimo Fatboy Slim e que o quasi líder da banda Paul Heaton se afirmasse como um dos maiores compositores da pop britânica das últimas duas décadas. Em conjunto com o sobrevivente Dave Hemingway, este último formou os Beautiful South, um cocktail musical em que a doçura disfarça o álcool inerente e em que as melodias açucaradas disfarçam igualmente a amargura latente.
Ao mencionar os Beautiful South, é mais que provável que, por arrasto, venham a lume clássicos cantaroláveis como A Little Time, Perfect 10, Rotterdam (or Anywhere) ou Old Red Eyes is Back. Aos mais atentos, surgirá nitidamente a distinção flagrante entre a doçura da música e o azedume das palavras. É este contraste agridoce que transforma os Beautiful South numa banda potencialmente incomodativa, daquelas que choram por detrás da máscara de palhaço. Paul Heaton não é, nem nunca será, Elvis Costello e, nem por sombras, pretende sentar-se no trono desfeito de Ian Curtis. No entanto, a sua (distinta e sincera) voz toca pela triste plausibilidade das histórias que conta. São histórias que, ao mesmo tempo, nos pertencem tanto como aos personagens que as povoam. Ninguém aqui sai defraudado da realidade, por mais afastado que se considere dela. Alcoolismo, desemprego ou divórcio são temáticas na ordem do dia, sempre entregues na mais polida das formas, como se a resignação fosse a única arma possível e a doçura a prova que isenta a culpa de se ter nascido para este destino. Se não, escutem-se temas como Especially For You, Pockets, Window Shopping For Blinds, I May Be Ugly ou a belíssima versão de Everybody's Talking de Harry Nilsson na voz de Jacqui Abbott.
Na melhor tradição britânica, o sentimento auto-depreciativo sempre povoou a literatura e, na sua quota parte, a música. A crítica social idem. Mas, enquanto singer-songwriters como Ray Davies nos fazem pensar ainda bem que não sou como eles, Paul Heaton faz-nos desejar espero que isto não me aconteça a mim. Salva-se uma ou outra canção de amor, simples mas pungente como as demais. Dumb é um magnífico exemplo. Prettiest Eyes é outro. Este último, no entanto, bastante especial. Nos meus tempos de faculdade, havia um minúsculo contingente acerrimamente adepto desta banda. Inseguros e cínicos em relação ao futuro que os esperava. Esta cantiga homenageia-os directamente, assim como a cidade que muito aprecia estes ingleses e que, pelos vistos, estes ingleses apreciam muito...

17 de novembro de 2009

The Boys Next Cave

Antes do regurgitante negrume gótico dos Birthday Party e muito antes da redenção pelo Espírito Santo de Nick Cave e consequente evangelização dos Bad Seeds, irromperam fugazmente os Boys Next Door. A primeira banda de Nicholas Edward Cave foi formada em meados dos anos 70, em conjunto com o ubíquo companheiro de grande parte da sua carreira, Mick Harvey, começando por ser uma banda de covers Glam e New Wave. A sua identidade própria apenas se afirmou e vincou em finais dessa década, muito em parte devido à entrada do carismático e suavemente cadavérico Rowland S. Howard e da sua distinta guitarra. O apogeu deu-se em 1979, com a edição do único álbum do grupo, o monolítico Door, Door. À primeira audição parece estarmos perante um mascar e cuspir de influências, dos Stooges aos Roxy Music, dos New York Dolls aos Television; um disco de colegiais sempre a rasgar, feito de urgência adolescente, ritmos frenéticos e melodias contagiantes. Mas há muito que diferencia os Boys Next Door de serem arrepiantemente etiquetados como os Green Day da sua época. Em primeiro lugar, a voz de Nick Cave a dar os primeiros mas seguros passos em direcção ao fundo da caverna, as suas letras já pejadas de uma paranóia insinuante e de uma angústia juvenil, mas, a espaços, dilacerante. Em segundo lugar, a guitarra de Howard, que preenche os temas de uma palpável mas subtil sofisticação que, na sua ausência, seria pálida e magra. Os trejeitos verlainianos de After a Fashion e a alta tensão de Somebody's Watching Me ou The Nightwatchman são pontos a reter. I Mistake Myself é humoradamente tétrica, fria mas ainda longe do ambiente de câmara frigorífica de alguns temas dos futuros Birthday Party. The Voice e, em particular, Friends of My World, são mini-épicos de escassos minutos, punk na intenção, solenes na entrega. Curiosamente, o tema que mais se aproxima da estética de Nick Cave actualmente (re)conhecida, foi escrito por Howard, encerra o álbum e intitula-se Shivers. É uma daquelas peças que deveria ser obrigatória por lei em qualquer quarto de adolescente que sofreu o seu primeiro desgosto de amor e está à beira de tomar uma caixa de Rohypnol regada a Super Bock. Ainda hoje perdura como uma balada magistral, perfeitamente construída, em que a guitarra difusa como uma dor indecifrável consegue mesmo arrepiar a espinha.
Toda a gente sabe, ou deveria saber, o que aconteceu a seguir na vida destes rapazes. Nada do que aqui está seria repetido. As coisas tornaram-se progressivamente mais negras, Cave tocou o fundo do abismo com uma agulha no braço, retornou como prova palpável da salvação de Jesus Cristo e, na actualidade, é um dos melhores escritores de canções que o mundo já conheceu. Algumas das mais curiosas, directas e improváveis estão neste disco. Um artefacto nostálgico a estimar.