29 de junho de 2010

Jazz Club

Os apreciadores da série britânica The Fast Show, deverão recordar-se do momento dedicado ao jazz intitulado, apropriadamente, Jazz Club. Nele, satirizava-se impiedosamente o estilo musical, o seu milieu, o seu jargão e todos os tiques a ele associados. Sempre inteligentes, na veia da melhor e, ao mesmo tempo, mais hermética comédia britânica, estes pequenos sketches conseguiam ser povoados de excelentes músicos que aparentavam quase divertir-se mais que o espectador. Para almas que amam o jazz, mas que se deixam subverter por um magnífico trabalho de humor, eis alguns momentos transcendentes de Jazz Club. Acho que até o circunspecto Evan Parker deve rir com isto...

26 de junho de 2010

Estival Surreal

Para começar o Verão com alegria, nada melhor que fazê-lo com Beck. Meio apagado (ou ostracizado?) ultimamente, convém não esquecer que o senhor é dono de um dos percursos mais geniais, criativos e estimulantes dos últimos 20 anos. Impecável e verdadeiramente original a forma como sempre associou a qualidade da música aos elementos visuais. Deadweight, tema da banda-sonora do esquecível filme A Life Less Ordinary, é um excelente retrato do surrealismo cénico que Beck consegue transmitir às suas composições. Notável também a rotação que teve na MTV, o que não deixa de ser estranho para um homem que, anos antes, escreveu um tema chamado MTV Makes Me Want to Smoke Crack...

A Marca Amarela II

Os Boris nunca deixam pistas. Do que ficou para trás ou do que há-de vir. O trio nipónico é uma constante incógnita em termos criativos, oscilando entre influências tão desunidas como os Sleep e Nick Drake. E são os fundadores do Stoner Metal e o crepuscular escultor da folk britânica que convivem, sem se encontrarem, em Akuma No Uta, álbum de 2003.
Akuma No Uta principia com uma introdução: 10 minutos de um drone fantasmático e esmagador que parece convidar para um banquete todos os minimalistas nova-iorquinos dos anos 60 e em que Dylan Carson dos Earth é o criador da ementa. Uma guitarra afinada em tom baixo choca com o uivo penetrante de outra, como placas tectónicas a conjurarem um sismo. E eis que a terra treme em seguida, no ataque furioso de Ibitsu. Um misto de Detroit dos finais de 60 com a vertigem asfixiante dos Motörhead, este tema devia ter escrito por cima a sigla handle with care. O espancamento sónico continua, felizmente, com Furi. E até parece que os Stooges apareceram em sonhos aos Boris e lhes indicaram como ser agressivos e conseguir criar grooves obnubilantes em simultâneo.
A coisa muda de figura ao quarto tema. Naki Kyoku é um épico, de início brando e contemplativo, palidamente belo. Mas a anorexia logo dá lugar a um ritmo farto, que nos agita e contamina. Ficamos à mercê de um desvario eléctrico, de contornos setentistas, mas mais cavernoso que progressivo, mais dissonante que sinfónico. E é pena acabar tão depressa. Ano Onna no Onryou continua a acelerar sem destino, trazendo reminiscências de travessias em alta velocidade pelas estradas poeirentas dos Kyuss e Akuma No Uta justifica o nome - A Canção do Diabo. As palavras são dispensáveis no que é um assalto deliciosamente malévolo de guitarras em desbunda e ritmos a bombear adrenalina. Uma verdadeira valsa com a cornífera entidade.
Após esta injecção de rock tão abrasivo e denso quanto experimental e minimal, não se olha da mesma maneira para três japoneses esqueléticos e guedelhudos. Olha-se para três enormes músicos, obreiros de mais uma experiência a reter. E onde aparece Nick Drake no meio deste furacão eléctrico? Quem conhece o magnífico Bryter Layter tem somente de passar os olhos pela capa que o esconde...

25 de junho de 2010

Astral Connections

Em dia de Portugal - Brasil, urge em mim o sentimento de referenciar o blog do meu amigo carioca A. Moreira. Há muito (infelizmente) arredado destas lides, o espaço que este astrónomo/melómano criou não vale pelos poucos (mas irreverentes) posts, mas sim pelas brilhantes conexões com outras paragens cibernautas. Vale a pena descer pelo lado esquerdo do monitor e seguir a extraordinária e, em grande medida, fascinante, enciclopédia de sítios seleccionados. Um autêntico festim, onde o Planeta é rei e o Universo é reino. E tudo está interligado. É imperetrível parar para abastecimento e reflexão na estação espacial sita em http://astralconnections.blogspot.com/.

22 de junho de 2010

Mondo Bizarre

Mike Patton é dono de uma elasticidade vocal que faz dele o candidato favorito a cantor mais versátil da actualidade. Desde os tempos dos Faith no More, passando pelos Mr. Bungle, Peeping Tom e mais de uma dezena de side projects e colaborações, a voz do norte-americano tem sido o sangue, o suor e as lágrimas de muitos discos. Em termos de carreira a solo, Patton possui somente dois trabalhos em nome próprio, ambos editados pela Tzadik. O primeiro, Adult Themes for Voice, data de 1996 e é puro experimentalismo do primeiro ao último acorde (aqui faz mais sentido dizer grito ou suspiro); o segundo, Pranzo Oltranzista, foi editado no ano seguinte e, apesar de desafiante e radical também não é disco para colocar em baile de finalistas. A menos que os colegas sejam aduladores de Luigi Nono ou do John Zorn mais terrorista.
Agora, em 2010, Mike Patton oferece às massas a sua terceira obra a solo. Tendo em conta as anteriores, poderíamos intuir que a travadinha lhe deu de vez. O disco, intitulado Mondo Cane, vê a luz no seguimento de uma série de concertos Europa fora em que Patton interpretou canções populares italianas dos anos 50 e 60, acompanhado de grande orquestra a condizer. Mas, para quem já deu voz a uma dedicatória a um carro chamada Caralho Voador, encantou com a versão de I Started a Joke dos Bee Gees (ambas nos Faith No More) e fez uma banda-sonora para um livro de BD em que cada tema corresponde a uma página do mesmo (Suspended Animation dos Fântomas), isto é apenas o percurso (i)lógico de um magnífico, descomprometido e tentacular artista.
Mike Patton não é desconhecedor da cultura italiana (foi casado durante anos com uma transalpina). Neste sentido, a escolha dos temas é tão precisa quanto variada e a interpretação é levada a cabo in italiano perfetto. O que faz diferir Mondo Cane de um simples disco de covers é a versatilidade e o toque muito próprio que o cantor lhes confere. Pegando em melodias charmosas, românticas e até mais sombrias, de roupagem predominantemente jazzística e easy listening, Patton consegue sempre infectá-las com o seu talento experimental e desconstrutivista. Ore d' Amore é uma canção belíssima, que o croon do californiano torna ainda mais intensamente dramática; o mesmo se passa com Il Cielo in una Stanza. Num crescendo tremendo, Patton chega ao refrão a carregar impiedosamente nos erres, como que a fazer pequenas maldades a uma melodia irresistível. São estas pequenas malícias e subversões que estimulam cada tema e que não tornam o disco uma espécie de Tony de Matos para a Geração Facebook. Che Notte! é música para casanovas de fato branco e brilhantina em diabruras pela noite, mas que transporta para o imaginário dos cartoons. Urlo Negro vem lembrar que o homem ainda é dotado da capacidade de soltar uns belos urros metaleiros e relembra o demencial e magistral California dos Mr. Bungle. Senza Fine é um slow que se dança a altas horas da noite e soltado com voz sibilina, intoxicada, que parece escarnecer do amor tanto como desejá-lo com urgência.
Mike Patton gerou um disco magnífico, de romantismo distorcido, caricatural até. A voz reina, livre e assombrosa, por entre a catadupa de arranjos. Pode trazer reminiscências de um passeio sob o luar pela elegância esparsa da Piazza Navona ou pela luz alva que irradia da Fontana di Trevi. Mas a polaroid que se tira do momento é transgredida por cores garridas e a Lua observa com um sorriso vampiresco...


19 de junho de 2010

Hipnagogias

Quem, como é o meu caso, anda pela casa dos trinta, terá, certamente, recordações vívidas e saudosas dos anos 80. É muito provável que se lembre do campeonato do mundo de futebol de Espanha, em 1982, que será sempre melhor que todos os que se seguiram; da série Verão Azul; de Margaret Thatcher e do cubo de Rubik; do italo-disco e outros case studies musicais barricados nesse nicho temporal. Quem anda hoje pela casa dos vinte terá somente remotas e primárias reminiscências dessa década. Memórias arcaicas, visões distorcidas, pouco coerentes e nada abrangentes.
Decorreram já uns bons meses desde que a (im)popular revista Wire lançou um artigo onde se debruçava sobre um novo e estranho fenómeno musical. Baptizou-o de Hypnagogic Pop. O rótulo vale o que vale, mas faz algum sentido. A hipnagogia é um estado de consciência alterado, que ocorre na transição entre a vigília física dita normal e o sono natural. Durante a permanência neste limbo, a mente humana é capaz de apreender informação, mas nunca no seu todo. O som específico de uma palavra numa frase, o eco isolado do fragmento de uma melodia, será isso que ficará registado. A memória fará o resto anulando a maior parte desses dados na sua base. Mas o que acontece se esses dados insistirem em permanecer? Aí tornar-se-ão parte de nós, transformando-se igualmente em recordações, mas imperfeitas, inacabadas, pois o cérebro não as captou em total estado de vigília.
São estes fragmentos evocativos que constróem o cerne da pop hipnagógica. Peças soltas, melodias amputadas, o todo diferente da soma das partes. Música composta a partir de samples sensoriais, captados isoladamente com 2 ou 3 anos de idade, sem se perceber o que eram na realidade. Neste sentido, êxitos orelhudos e demodé dos anos 80, passam a ser fonte de inspiração para criações artísticas. Como se o resquício de memória da primeira infância ficasse completo sendo actualizado à luz da realidade de agora. Como se recuperassem memórias de memórias. Nomes como James Ferraro (e seus desdobramentos criativos), Nite Jewel, Gary War ou Pocahaunted editam gravações em cassette e lançam sucessivas obras em CD-R. Peças urgentes ou arrastadas, estáticas e oníricas, são injectadas com partículas de qualquer êxito esquecido do Verão de 1984. O que era foleiro passa a ser inspirador. Bizarro, surreal, mas que compele estranhamente à escuta e que acaba por revelar capacidades alucinogéneas e confontar-nos com as nossas próprias memórias. Outros actos, como o belíssimo projecto Oneohtrix Point Never, Emeralds ou Ducktails centram-se em atmosferas mais ambientais, referências à electrónica alemã mais cósmica e até reabilitações futuristas da maldita New Age. Em todos está samplada a memória, o que foi filtrado antes de adormecer e ficou para sempre acordado neles, bom ou mau.
Para além da alucinação auditiva, os praticantes desta retro futurista sonoridade têm levado a cabo surreais criações visuais, especialmente no YouTube, muitas delas fascinantes. Tal como o som, também as imagens que povoam os vídeos são oníricas, espicaçando o inconsciente de cores garridas e através de formas sem conteúdo. Quase que se poderia falar numa recriação psicadélica dos anos 80, expressão que tem tanto de contraditório como de potencialidade. No caso a seguir, veja-se como Daniel Lopatin (timoneiro do projecto Oneohtrix Point Never) consegue induzir a evocação hipnagógica, bastando para isso samplar um brevíssimo excerto de Lady in Red de Chris de Burgh, associando-o a qualquer efeito televisivo state of the art gravado em Betamax há 25 anos. Os comentários de quem assistiu dizem tudo...

A Marca Amarela

Hypnotic Underworld constitui, até à data, o pináculo artístico dos japoneses Ghost. Monumento da mais recente corrente derivada do psicadelismo, este disco de 2004 é uma simbiose magistral entre o Japão antigo e o Japão moderno. A folk, enevoada e arcana, evocativa de mistérios antigos, cruza-se com a electricidade das guitarras e os estímulos rítmicos. Pelo meio, cirandam mellotrons, harpas, flautas e theremins. O todo é belo, um ponto indefinido no tempo, uma trip pelos milenares matagais nipónicos.
O disco principia na bruma, densa e húmida. 15 minutos de música fumarenta, suspensa e circular, perdida num labirinto escuro e opressivo de folhagens densas e troncos retorcidos. God Took a Picture of His Illness on This Ground, assim se chama a primeira das quatro partes que compõem Hypnotic Underground. Somos como que guiados por uma lúgubre paisagem, que não cativa pela beleza, mas que nos compele a desbravá-la, a ver até onde nos leva. O caos ordena-se em Escaped and Lost Down in Medina, segunda parte do processo de hipnose. Poderosíssimo tema, assenta numa espiral de baixo estonteante, por onde curvas e contracurvas, um saxofone tenta equilibrar-se. A primeira noção de ritmo acaba por surgir, transformando o tema num groove ritualístico que se propaga como fogo. Sucede-lhe Aramaic Barbarous Dawn, curto tema descendente em linha directa do rock progressivo mais vigoroso dos anos 70. A guitarra e a bateria pregam-nos à parede e estreia-se a voz de Masaki Batoh, grave e distante. Leave the World! encerra o subterrâneo hipnótico com um estertor rítmico hardcore de poucos segundos.
A luz derrama-se magistralmente com a cálida e genial versão de Hazy Paradise, original dos holandeses Earth & Fire. Sem dúvida um tema lindíssimo e um convite ao abandono nos seus doces braços, é abençoado pela guitarra feérica do prodigioso Michio Kurihara. Kiseichukan Nite retorna às entranhas do Japão e é temperada levemente a flauta e percussão em surdina. A improbabilidade de uma harpa céltica apimenta de estranheza o tema, mas confere-lhe ainda mais misticismo. A plácida flauta da entrada meditativa e melancólica de Piper não prevê o assalto eléctrico que a invade. Tal como nuvens carregadas que chocam e culminam em relâmpagos, assim é esta canção, um dos temas mais fortes do disco, novamente assaltado pela guitarra de Kurihara.
O passeio por este jardim das delícias oriental prossegue nos 10 minutos de Ganagmanag - jam instrumental, usurpadora, com retoques de jazz sobre a máscara psicadélica. Feed e Holy High são mais duas peças de altíssimo nível, conjugando com mestria sapientes devaneios progressivos a estruturas mais vanguardistas mas sempre tonais e melódicas. A fechar, uma versão altamente personalizada e praticamente irreconhecível de Dominoes, do bardo enlouquecido Syd Barrett, que passa o testemunho a Celebration for the Gray Days. A bruma penetra novamente, o órgão insistente aumenta o dramatismo, uma voz ressoa nas profundezas e a bateria impõe uma autoridade cansada. Lentamente, tudo é engolido, sobrando o silêncio e farrapos da magnífica teia de sons que ficou para trás. Hypnotic Underworld encerra a mensagem de um disco de luto. Luto pela natureza que desaparece, luto pelas tradições ancestrais que se perdem a cada dia que passa, luto pela espiritualidade que o homem moderno abdicou de ter. Por isso e pela excelência criativa, é um dos grandes discos do rock alternativo japonês dos últimos 10 anos.

18 de junho de 2010

Kosmische Kosmetik XIII

É curioso constatar que o primeiro álbum de um dos maiores vultos da música electrónica não contenha electrónica nenhuma. Este oxímoro faz de Irrlicht a obra mais incaracterística de Klaus Schulze, mas torna-a um monolito de beleza desolada.
O nome completo deste álbum de estreia é Irrlicht: Quadrophonische Symphonie für Orchester und E-Maschinen. Trocado por miúdos, o que Schulze construiu foi um conjunto de peças longas e estáticas, moldadas a partir de um órgão eléctrico preparado e de gravações ensaiadas e distorcidas de uma grande orquestra sinfónica. Ao fazer o som regurgitado da miscelânea transbordar pelos poros de um amplificador danificado, resulta um latente, hipnótico e obsessivo eco fantasmagórico dividido em três Movimentos (Satz).
O primeiro, Satz: Ebene, inicia com um gemido de violinos distantes e trémulos, sucessivamente desfeito pelo lento (e pejado de sombras ominosas) órgão amplificado. O tema faz ressoar Ligeti e, mais actualmente, evoca Gorecki, dois compositores aos quais o macabro e o trágico não são desconhecidos. A estática e sombria sonoridade tanto nos pode levitar para remotas paragens cósmicas como nos pode fazer planar sobre as ruínas da bombardeada e desoladora Dresden.
O segundo andamento da sinfonia, Satz: Gewitter, inflecte flagrantemente por territórios da música concreta, tendo como semelhanças com a electrónica somente os laivos reminiscentes dos primeiros experimentos de Stockhausen neste campo. É o momento mais breve do álbum e também o mais pulsante, aquele onde mais se sente o expelir de energia de Irrlicht (alemão para fogo-fátuo).
A terceira e última parte intitula-se Satz: Exil Sils Maria. Trata-se, sem dúvida, de uma das peças mais espectrais e mentalmente penetrantes da kosmische musik. Autêntica viagem ao lado oculto da Lua, este tema só consegue ser rivalizado na sua lenta e densa dança sideral pelas quatro partes do enorme Zeit dos Tangerine Dream. É um drone de 20 minutos que não é deste mundo, ou que, pelo menos tenta não ser. E consegue-o na perfeição. Um facto curioso é que Sils Maria era a localidade suiça onde Nietzsche passava a maioria dos Verões. Especulando um pouco, podemos traçar um paralelismo entre esta peça e Also sprach Zarathustra do conterrâneo de Schulze, Richard Strauss. Para além da referência ao filósofo, há que lembrar que esta última é o tema fulcral de 2001: A Space Odyssey de Stanley Kubrick, filme em que a música de Klaus Schulze se sentiria, igualmente, como peixe na água...
Na reedição de 2005 do álbum, foi acoplada uma quarta faixa, denominada Dungeon. Fora do contexto do álbum que o acolhe, o tema, longo e vagaroso, aparenta já similitudes electrónicas com o que Schulze viria a fazer em breve, neste caso, no mais expansivo Cyborg.
Pedra basilar na afirmação de Klaus Schulze como artista a solo, Irrlicht é um marco na criatividade do músico, que conseguiu, com poucos meios mas muito engenho, criar uma obra à frente do seu tempo. Ainda hoje, 38 anos passados desde o seu lançamento, é uma escuta nada convencional e capaz de pôr em órbita mesmo o ouvinte que tenha os pés bem assentes na Terra.