27 de março de 2011

Um Americano em Londres



Joe Boyd é um nome que permanece algo desconhecido da maioria, mas que constituiu um elemento de enorme importância no desenvolvimento musical dos anos 60. Este produtor americano, que trocou Boston por Londres em meados dessa década, tornou-se influente e agitador, privou de perto com os grandes nomes da época e assistiu in loco a episódios marcantes dessa era dourada da cultura popular.
Em White Bicycles - Making Music in the 1960's é narrada, de forma autobiográfica, essa aventura. Boyd, catalisador e produtor de nomes honoráveis como Pink Floyd, Nick Drake, Incredible String Band ou Fairport Convention, demonstra ter sido uma espécie de John Peel da época: um homem que nunca criou música, mas que nunca disso precisou para se afirmar como um dos porta-estandartes da revolução sónica dos sixties. O seu toque de classe fez-se sentir em várias correntes, notando-se sobretudo no rock psicadélico que despontava na altura e nas novas tendências da folk. Uma consistente súmula da sua dedicação à música (e ao cinema, a outra das suas paixões) está disponível em http://www.joeboyd.co.uk/.
White Bicycles colhe, assim, o fruto dessas memórias. É uma obra fascinante, que recupera factos nunca antes revelados e que propicia um acutilante, renovado e - não raras vezes - bem-humorado insight de anos irrepetíveis. Um livro obrigatório para melómanos sem constrangimentos de tempo, escrito pela pena de alguém que soube manter-se lúcido no centro da loucura para poder contar a história.

Future Past


O revivalismo electrónico não mostra indícios de parar. Surgem cada vez mais regularmente projectos que desenterram e devolvem à vida sintetizadores mumificados e sonoridades arcaicas. Um dos mais recentes e interessantes chama-se Giant Claw e é o produto solitário de Keith Rankin, membro honorário da excelente webzine Tiny Mix Tapes. Algures entre as paisagens cibernéticas dos Oneohtrix Point Never e as densas florestas electrónicas dos primeiros Cluster, o recentemente editado Midnight Murder é um solilóquio sintético que tanto nos transporta para jogos de computador dos anos 80 (Big Heat) como nos revolve o cérebro com melodias multicoloridas e infantis (Midnight Chew). Especial destaque para a serenidade minimal transformada em sobressalto de Parallax Border e para a cavalgada espacial de I Know I'm Like a Ghost. Ambos assentariam que nem uma luva nos filmes que Stanley Kubrick nunca fez. Visualmente, o projecto Giant Claw revela-se igualmente interessante na sua miscelânea retro-futurista, que floresce exemplarmente neste tema - e lembra Philip Glass em modo sci-fi...


Alegrem-se agora os amantes da kosmische musik! Rejubilem os tiffosi da electrónica vintage! Em pleno ano 2011 chega um disco capaz de esmagar e enternecer os adeptos da velha escola dos anos 70 e princípios de 80. Chama-se Primitive Neural Pathways e é a mais recente criação de Steve Moore, americano responsável pelo disco revival dos Lovelock e por 50% dos igualmente dançáveis - mas sombrios - Zombi.
Steve Moore tem o poder de assinar um álbum condenado a ser alvo de perseguição e abdução. Um jardim das delícias espacial e sedutor, assente em vórtices melódicos e pulsantes e pleno de ambiências voadoras não-identificadas. Claro que o nome Oneohtrix Point Never vem à baila (Daniel Lopatin é o principal culpado pelo resgate destes eflúvios), mas a influência notória vem de Edgar Froese e dos Tangerine Dream. As reminiscências do melhor Jean-Michel Jarre, antes das namoradas top model e dos espectáculos de luz mais caros que o PIB lusitano (ou seja, dos tempos de Oxygène), são igualmente notórias.
É essa súmula da mais épica e meditativa electrónica europeia que faz de Primitive Neural Pathways um objecto tão belo e especial. Ao contrário do supracitado projecto Giant Claw, Steve Moore capta o sentido melódico em detrimento das abstracções. Daí a latente semelhança com o Jarre de 1976 ou com os Tangerine Dream mais acessíveis de Force Majeure ou Hyperborea. Peças como Orogenous Zones e C Beams remetem para a sensibilidade melódica do francês; o tema-título, Feel the Difference e 248 Years levam-nos às travessias cósmicas dos alemães. Aliás, se os Tangerine Dream lançassem um disco assim neste momento, seria considerado um milagre. E tudo é cozinhado na contemporaneidade, fazendo do álbum um genuíno produto de 2011. Um dos grandes discos de electrónica dos últimos tempos, muito graças ao espírito intemporal que o consome, Primitive Neural Pathways possui o condão de nos retirar deste mundo durante mais de meia-hora. Pode não parecer assim tanto, mas vale muito a pena ser passageiro desta odisseia.

Os dois álbuns acima dissecados não foram lançados em formatos convencionais. Midnight Murder foi apenas editado em cassette e Primitive Neural Pathways em vinil. Mas os seus criadores foram uns mãos-largas: Keith Rankin disponibiliza todas as gravações do projecto Giant Claw neste local. O disco de Steve Moore pode ser escutado, na íntegra, aqui. Não deixa de ser curioso que duas das obras mais retro-futuristas do ano sejam lançadas em formatos retro-elitistas. Uma provável reacção ao facto da música ser cada vez menos uma arte e cada vez mais um produto...

Garage Days II

Os Monks são uma das bandas mais lendárias e proeminentes do chamado Garage Rock. Com apenas um álbum na sua cartilha, datado de 1966, espalharam culto e influência. O punk não teria acontecido sem eles e os ritmos mecanizados do krautrock também lhes devem a sua quota-parte. Tudo começou na Alemanha em meados dos anos 60, quando cinco militares americanos aí em serviço trocaram as espingardas pelas guitarras. Os cabelos foram cortados ao melhor estilo monástico, batinas começaram a ser envergadas e muitas vezes o quinteto tocava com cordas à volta do pescoço. A música era manifestamente anti-bélica, mas o som era rude e a entrega electrizante. Em Black Monk Time, o seu único testemunho, os Monks deram o seu contributo para a mudança da face do rock. Tornaram-na mais feia e agressiva, crua e desmaquilhada. 
Black Monk Time é um disco imparável. Nem as canções de amor acalmam a intensidade constante. A banda parece tocar música com o sentimento de quem disputa uma batalha. Rigorosos e concisos, os Monks mostram ser uma máquina precisa de tocar rock'n'roll. O que não significa que não haja espaço para emoções. Elas estão à flor da pele, febris e directas e deixam-nos sem fôlego enquanto os monges se entregam à penitência do ritmo. Monk Time é das melhores aberturas de sempre de um disco. Um ataque relâmpago, surpreendente e panfletário. O que lhe sucede é um conjunto variado de experiências roqueiras como nunca se tinha ouvido e que soam poderosíssimas ainda hoje. Todos os membros da banda cantam, a bateria nunca se liberta de um transe endemoniado e o órgão de igreja que assalta os temas é tudo menos litúrgico. Há ainda um banjo eléctrico que arranha melodias de barba rija.
A fúria dos Monks encerra 12 temas em menos de meia-hora. Black Monk Time tem sido alvo de reedições ao longo dos anos, mas nenhum dos extras por elas oferecidos chega ao nível da primeira dúzia. Assim, deixem marchar sobre vós os fantásticos Shut Up I Hate You. E deixem-se evangelizar pela espiral frenética de Higgle-Dy-Piggle-Dy e Blast Off! No fim, não há como perguntar onde está a energia das bandas de hoje em dia. Onde está a fúria? Se rock em português significa pedra, então Black Monk Time é a sua pedra filosofal. Para mais informações, é favor visitar o Mosteiro...

15 de março de 2011

Kosmische Kosmetik XXI

A essência dos Popol Vuh e a existência de Florian Fricke cruzam-se e facilmente se confundem. A relação é simbiótica. O lendário músico alemão, pioneiro da electrónica, raiou muitas vezes a genialidade nas suas criações. Hosianna Mantra foi um desses momentos, uma obra que rompe drasticamente com o transe electrónico e as fortes vibrações étnicas dos dois primeiros álbuns do projecto.
Fricke sempre cultivou uma aura mística. Um véu de eremita, reclusivo, raramente exposto às luzes da ribalta. A sua arte reflectiu-o na perfeição. Constantemente transcendental e convidando incessantemente à meditação e ao misticismo, a música dos Popol Vuh sente-se como uma experiência religiosa. E o que se espera de um homem devoto em simultâneo do cristianismo e do hinduísmo revela-se esplendorosamente nesse disco de 1972. O mesmo divide-se em duas partes distintas: Hosianna Mantra e Das V. Büch Mose. Na primeira, domina o espaço e a música flui e respira. Os sons apontam para Oriente, esparsos e solenemente belos, evocando rituais de paz e contemplação. Na segunda, sobrevém um rigor mais clássico, mas igualmente meditativo e beatífico - música de câmara para a alma. O gigantesco Moog que dominava os dois primeiros álbuns dos Popol Vuh, Affenstünde e In den Gärten Pharaos, dá lugar a instrumentos orgânicos, como o piano, o violino e uma tambura indiana. Trechos de guitarra eléctrica etérea e flutuante adornam a fabulosa Kyrie; um oboé cristalino eleva ainda mais a perfeição de Abschied. A voz celestial da coreana Djong Yun é uma luz dispersa pelo disco, mas particularmente no majestoso tema-título, tira-nos o peso do corpo. É também impossível não mencionar a magnífica Maria (Ave Maria), composição apenas dada a conhecer na reedição do álbum em CD, mas que condensa a intencionalidade do álbum: ser um elo de ligação espiritual e místico entre Ocidente e Oriente, assente na mescla de instrumentos e estilos musicais de ambas as culturas.
Florian Fricke não esgotou a sua prodigiosa criatividade precocemente nesta obra-prima. Continuou a tocar-nos com o misticismo e a estranha beleza da sua música até deixar este mundo em 2001. Hosianna Mantra é apenas o ponto de passagem mais delicado, harmonioso e sublime da giesta dos Popol Vuh. E pode muito bem ser o disco mais belo da música alemã dos anos 70...

13 de março de 2011

Garage Days

Há algo de puro e libertador no rock de garagem dos anos 60. Algo de genuíno, virginal até. Antecâmara do punk, caminho de cabras para o psicadelismo, muito do Garage Rock continua a soar tão fresco hoje como há quatro décadas atrás. Tudo graças a artistas e obras que primavam pela irreverência e pelo imediatismo, por jogarem mais com o coração que com a cabeça. O som era crú e primário. Não elaborava as emoções, entregava-as em bruto. Como se o caldeirão efeverescente e hormonalmente instável de uma mente adolescente fosse traduzido musicalmente.
São óbvias as referências dos blues e da forma como eles foram tratados pelos Rolling Stones no primeiro álbum - homónimo - dos Electric Prunes. A música é carnal e sensitiva. No entanto, há algo de transcendente e profano que transforma esta obra primogénita num dos embriões do psicadelismo. I Had Too Much Too To Dream (Last Night) e Get Me To The World On Time são dois clássicos intocáveis, duas das melhores canções dos sixties. A primeira é um clássico absoluto, a placenta do psicadelismo, omnipresente nas compilações do género e absolutamente genial, com uma fuzz guitar a zunir e outra a ecoar como violinos atrás da urgência da voz. A segunda é um exercício pulsante e intenso, um rush emergente e contagiante, de guitarras picadas, voz em lunático crescendo e ritmo sudoríparo.
Construído a propos destes colossais singles, The Electric Prunes apresenta muito mais que complementos às suas duas referências. Destaca-se, aliás, por ser um álbum bastante eclético e que percorre paisagens sonoras variadas, do típico rock de garagem de Try Me on For Size e Are You Lovin' Me More (But Enjoying It Less) ao vaudeville de About a Quarter to Nine e ao psicadelismo polvilhado de jazz do excelente Train For Tomorrow. Sold to the Highest Bidder acelera as guitarras até parecermos estar perante um adulterado agrupamento folclórico grego e não ficaria deslocado num disco dos Beirut ou A Hawk and a Hacksaw. A balada Onie merece idêntico destaque e constitui o momento mais delicado do disco, um sentido monumento ao amor na fase do Clearasil.
Após uma carreira algo errática, os Electric Prunes ainda perduram, essencialmente como banda de concertos, mas este primeiro assomo de 1967 é a sua criação de referência. Um disco que parece ter bebido da fonte da eterna juventude e ideal para satisfazer jovens de espírito.

7 de março de 2011

Cidade Global Alfa Menos


Lisboa é uma cidade fértil em homenagens e louvores. São incontáveis as canções, os poemas, os quadros e os livros que a exaltaram séculos a fio. Vitor Manuel Adrião, historiador, filósofo e estudioso do esoterismo oferece-nos agora uma das visões mais desconhecidas da velha Olisipo. Uma história alternativa, que desvenda os seus mistérios ocultos e mostra segredos em locais que, à primeira vista, parece não terem nada a esconder.
Adrião é um dos mais prestigiados mestres no campo da mitologia tradicional portuguesa. É autor de obras de culto como História Oculta de Portugal ou a enciclopédica descrição da fantástica Quinta da Regaleira - A Mansão Filosofal de Sintra. O gosto pelo hermetismo e a sabedoria acumulada são imensos, como se pode constatar pelos escritos editados. A cidade capital tinha sido já motivo de narração esotérica ha uns anos, no livro Lisboa Secreta - Capital do Quinto Império. Agora, Lisboa Insólita e Secreta apresenta-se como um guia. Um guia diferente, que convida à descoberta dos segredos mais recônditos da cidade e à decifração de enigmas que permanecem fechados aos olhos de quem não é iniciado nestas matérias. Símbolos ocultos, mensagens templárias e arquitecturas cabalísticas são algumas das muitas curiosidades apresentadas nestas páginas. A mesma assume-se igualmente como guia iniciático de uma cidade que, em tempos, chegou a ser projectada como capital espiritual do Velho Mundo.
Os mais cépticos poderão olhar para esta obra com uma ponta de ironia, como um encaixe financeiro esotérico. Mas acredito que os alfacinhas (e todos os que amam Lisboa) se sentirão tentados a pegar neste livro e descobrir uma imensidão de coisas novas em ruas tantas vezes percorridas, em edifícios tantas vezes visitados. Mito ou realidade, edições como esta contribuem em muito para a auto-estima de uma nação deprimida. Para o enraizamento do que está a ser descurado. Quiçá para relembrar que existiu um ideal chamado de Quinto Império...

5 de março de 2011

Kosmische Kosmetik XX

É fácil afirmar que os La Düsseldorf são o filho bastardo e comercial dos Neu!. Após a ruptura do seminal colectivo alemão, o mentor Klaus Dinger apontou os mísseis para um projecto assente na mesma base, porém mais acessível às massas e menos vagueante no conteúdo. Em 1976, com o estandarte do krautrock a começar a ser erguido bem alto pela intelligentsia formada por gente como como David Bowie ou Brian Eno, o trio La Düsseldorf edita um dos álbuns mais bem sucedidos e admirados do género. O verdadeiro disco que espraia a sua influência pelas gerações vindouras e que ajuda à arquitectura do sustento musical de muitos bafejados pela sua inspiração.
La Düsseldorf é uma obra tão cativante quanto visionária. Cruza o típico ritmo motorik dos Neu! e dos Harmonia com um imediatismo visceral quase punk e intuições dançantes que o tornam um objecto ainda mais sedutor. Às vagas sonâmbulas e abstractas dos dois projectos supracitados, os La Düsseldorf respondem com música igualmente expansiva, mas encaixada em padrões mais clássicos e massajantes. As guitarras são mais atrevidas e outra novidade é a voz. Está presente em três dos temas e é lida em letras tão minimais como inescrutáveis. São apenas quatro na totalidade, os ditos temas, mas todos eles podem ser entendidos como históricos. O único instrumental, o sumptuoso Silver Cloud, é a conjugação da frieza com a ambiência que embala o corpo e levanta o ânimo. Típicas atmosferas germânicas, rigorosas mas deliciosas de ouvir.
O lado A do disco ergue-se na perfeição com Düsseldorf e La Düsseldorf. A fixação pela cidade é inquestionável. A primeira homenagem sabe ao prazer do reencontro. A música é extraordinariamente melodiosa, provoca-nos fisicamente, impele-nos a acompanhar o seu trajecto. E tem a bonita duração de 13 minutos. O equivalente krautrock ao sexo tântrico... A segunda começa com cânticos futebolísticos (provavelmente dedicados ao Fortuna Düsseldorf, que conseguiu alguns brilharetes nos anos 70) e constitui um dos momentos mais assumidamente punk da música alemã da época. Enérgica e espontânea, antecipa muitas coisas já em trabalho de parto na Inglaterra e influenciará outras tantas no futuro. O álbum termina em grande com o épico pulsar de Time. Um início em surdina, que se expande em meditativas mutações, da monotonia ao escapismo, até ao alívio da explosão final - e ao retomar do segundo zero.
Mais que um derivativo dos Neu!, os La Düsseldorf apresentam-se ao mundo em 1976 com uma linguagem renovada. Menos fechada na concha hermética da Arte e na seriedade da experimentação, mais aberta às possibilidades da fusão e da exibição. La Düsseldorf é um dos discos mais influentes e perenes da segunda metade dos anos 70 e é tarefa simples defini-lo numa só palavra: Essencial.