31 de dezembro de 2015

2015: A Soundtrack



Em 2015, Ian "Lemmy" Kilmister passou, definitivamente, ao estatuto de imortal. Perante isso, pouco mais há a assinalar. O Sport Lisboa e Benfica foi campeão pela 34ª vez. E maldito terrorismo. Os discos que alimentaram a minha existência foram muitos e seguem-se os que vieram para ficar.


1 - Julia Holter - Have You in My Wilderness

2 - Jamie XX - In Colour

3 - Sufjan Stevens - Carrie & Lowell

4 - Kendrick Lamar - To Pimp a Butterfly

5 - Grimes - Art Angels

6 - Father John Misty - I Love You, Honeybear

7 - Jim O'Rourke - Simple Songs

8 - Courtney Bartnett - Sometimes I Sit and Think, and Sometimes I Just Sit

9 - Björk - Vulnicura

10 - Kamasi Washington - The Epic

11 - New Order - Music Complete

12 - Jlin - Dark Energy

13 - Holly Herndon - Platform

14 - Matana Roberts - Coin Coin Chapter Three: River Run Thee

15 - Kurt Vile - B'lieve I'm Goin Down

16 - Tame Impala - Currents

17 - Oneohtrix Point Never - Garden of Delete

18 - Natalie Prass - Natalie Prass

19 - Beach House - Depression Cherry

20 - Deerhunter - Fading Frontier

21 - Panda Bear - Panda Bear Meets the Grim Reaper

22 - Blur - The Magic Whip

23 - Joanna Newsom - Divers

24 - Miguel - Wildheart

25 - Low - Ones and Sixes

26 - Wilco - Star Wars

27 - Floating Points - Elaenia

28 - Sleaford Mods - Key Markets

29 - Benjamin Clementine - At Least For Now

30 - Donnie Trumpet & The Social Experiment - Surf

31 - James Ferraro - Skid Row

32 - Unknown Mortal Orchestra - Multi-Love

33 - Future - DS2

34 - Sleater-Kinney - No Cities to Love

35 - Arca - Mutant

36 - John Grant - Grey Tickles, Black Pressure

37 - Mbongwana Star - From Kinshasa

38 - Drake - If You're Reading This It's Too Late

39 - Tobias Jesso Jr. - Goon

40 - Viet Cong - Viet Cong

41 - Jenny Hval - Apocalypse, Girl

42 - Vince Staples - Summertime '06

43 - FFS - FFS

44 - Deafheaven - New Bermuda

45 - Ryley Walker - Primrose Green

46 - Destroyer - Poison Season

47 - Bill Fay - Who is the Sender?

48 - Matthew E White - First Blood

49 - Alabama Shakes - Sound & Color

50 - Bob Dylan - Shadows in the Night


Dieta Mediterrânica XII

Uma agulha num palheiro. Ou uma pérola numa ostra. Eis dois aforismos que definem o encontro com Integrati...Disintegrati na actualidade. O único álbum (conhecido) do italiano Franco Leprino é uma jóia rara de encontrar e, definitivamente, a preservar.
Produto nascido em 1977, fase já decrépita da electrónica de simpatias progressivas, esta magnífica obra desafia não só a fecunda prole oriunda de terras transalpinas nessa década, como se impõe com recatada majestade.
Terão sido, provavelmente, a época do seu lançamento - contra-corrente com as tendências panfletadas -, ou a cordata assertividade dos sons que guarda, as barreiras maiores para o reconhecimento universal deste disco. Porém, Integrati...Disintegrati sobreviveu incólume à passagem de três décadas e conserva uma aura genuinamente refrescante e fascinante, fruto, especialmente, da peculiar mistura de instrumentos que lhe dão alma.
Franco Leprino é, acima de tudo, um músico clássico. A guitarra acústica serve de leito às suas composições. E é ela que, singularmente, toma o papel de charneira neste disco e nas duas partes que o constituem. A primeira é um exercício que brota de uma suspensão quase cósmica, uterina, e se torna telúrica com a invasão suave e acalentadora dos dedilhados e a minimal mas sublime melodia das teclas sintetizadas. Mais tarde surgirá um piano e um choro pueril, que darão lugar a nova elevação sideral, desta feita dominada pela electrónica state of the art da época, nomeadamente os quase omnipresentes Moog e VCS 3. E ainda há espaço para uma coda, feita de teclas, oboé e cordas, num conjunto de tal forma envolvente cuja resposta não pode ser outra que a rendição à sua pulsante perfeição.
Mais abstracto, o segundo tema do álbum envereda por territórios mais experimentais, denotando que Leprino é um estudioso atento da música contemporânea, podendo elevar a fasquia do belo ao atonal e do melódico ao dissonante. Se a primeira parte da obra pode ser entendida como a integração, pela forma como os sons se conjugam para formar um todo coerente e sedutor, aqui chega a desintegração, uma contaminação pelo caos, um sonho que cede lugar ao realismo. Fragmentada e complexa, esta segunda parte apresenta-se mais escura e cerebral, mas com a porta para a sedução melódica sempre entreaberta. Ouça-se o interlúdio de guitarra acústica e flauta que soam a raio de sol que desponta por entre nuvens negras, para dar lugar a um mosaico electroacústico que culmina com o planante final do disco.
Integrati...Disintegrati acaba por ser uma ponte solidamente construída entre o clássico e o moderno, engenhosamente desenhada e nectárea como o favo de mel que ostenta na capa. Uma verdadeira obra de arte em termos de composição e estética e que merece bem mais que o culto obscuro que lhe tem sido devotado.

27 de dezembro de 2015

O Lado Negro da Folk

First Utterance é o primeiro álbum dos ingleses Comus, nome que remete de imediato para o Deus grego, filho de Dióniso e representativo dos prazeres excessivos. Editado em 1971, o disco constitui um dos marcos primordiais nos flirts da folk com o rock progressivo que então despontava.
Esta primeira declaração de intentos é um misto de bucolismo e negrume, que oscila entre melodias pastorais mas complexas e um lirismo sombrio. O produto final é um disco hermético e desafiante, com tanto de sedutor como de assustador, mas que acaba por ser gratificante e envolvente quando as defesas do ouvinte se quebram.
First Utterance assemelha-se à banda sonora de um ritual pagão, uma cerimónia crua e improvisada, em que os instrumentos fluem ao sabor das emoções, entre o subtil e o febril, e as vocalizações se projectam entre o murmúrio e o grito mais animalesco. Estas são divididas entre homem e mulher - Roger Wootton e Bobbie Watson - e a sonoridade é arcaica, não no sentido antigo do termo, mas no sentido de algo sem tempo definido. Parece ser música que brota da terra, das pedras, da floresta. Conforta e repele na sua entrega por lapidar e nos atavismos que manifesta.
Os temas de First Utterance são, maioritariamente, extensos na sua duração. Propagam-se como um fogo em lenta combustão mas chispando constantes centelhas. Drip Drip e o encantatório e predominantemente instrumental The Herald são monumentos de embriaguez quase dionisíaca, danças nocturnas nos bosques cujas coreografias são tão belas como diabólicas.
Song to Comus e Diana (o primeiro e único single do grupo) apresentam-se como exercícios quase psicadélicos na imagética, mas mergulhados nas trevas e possuídos por qualquer espírito ancestral, vibrante e delirante. Não será de todo descabido afirmar que estes temas (especialmente o segundo) franquearam de sobremaneira as portas para o movimento dark folk surgido na Europa anos mais tarde e influenciaram a estética de projectos como os Sol Invictus ou os Current 93. Merece igualmente destaque All The Color of Darkness, canção apenas disponível na reedição do disco e que o brinda com um ocaso escarlate e melancólico, um culminar perfeito para toda a estranheza musical que a precedeu.
Na actualidade, First Utterance é um disco tão anacrónico como fascinante. Transporta-nos ao tempo em que as possibilidades musicais eram tão inocentes como infinitas e a mais louca das criatividades se manifestava sem receios nem preconceitos.

26 de dezembro de 2015

Amor à Arte

Andy Warhol faleceu em 1987. Nas suas exéquias fúnebres, Lou Reed e John Cale, amargamente afastados desde o afastamento do último dos Velvet Underground há quase 20 anos, voltaram a comunicar. A inquebrável química artística entre ambos levou a uma imponderável colaboração e ao início do que seria a primeira - e última - reunião da banda que fundaram. As eternas diferenças pessoais entre ambos levaram a que nunca mais trabalhassem em conjunto depois disso.
Andy Warhol foi alcunhado Drella por Ondine, membro do séquito da sua Factory. Tal epíteto, que Warhol sempre desdenhou, era uma fusão entre Drácula e Cinderela. Reed e Cale recuperaram-no para o disco de homenagem Songs for Drella, editado em 1990.
A escolha do título não surpreende. A relação com Warhol sempre oscilou entre a cumplicidade e a acrimónia. Todavia, em última instância, o que emana desta colaboração é um conjunto de canções entre o elegíaco e o afectuoso, em que a distância e a frieza se esbatem na admiração e gratidão ao rei indestronável da pop art.
Todos os temas de  Songs for Drella são executados em dueto. Não existe secção rítmica, apenas a electricidade acutilante da guitarra de Reed, as chispas das cordas de Cale e teclados e vocalizações repartidas por ambos. A toada emotiva é constante, sendo que as letras narram episódios marcantes da vida de Warhol de forma reflexiva e despojada da pirotecnia extravagante que sempre o acompanhou.
Style It Takes, Faces and Names Forever Changed, todas cantadas por Cale, evocam a arte de Warhol e a peculiaridade da sua visão do mundo e das pessoas. Open House, Slip Away (A Warning) e It Wasn't Me, pela voz de Reed, mostram o homem por baixo da camada de superficialidade e artificialidade que tanto lhe associavam, a tentativa de assassinato da qual foi alvo e as mudanças que o tempo acarreta. O tema mais pungente do disco será, certamente, o que o encerra. Hello, It's Me é uma despedida terna, uma catarse refreada nas palavras de Lou Reed e na melodia sombria do violino de John Cale. E Songs for Drella será um disco de homenagem despojado e intimista a um ícone da extravagância e da controvérsia.    
Previamente à edição do álbum, as canções que o compõem foram alvo de gravação ao vivo na Brooklyn Academy of Music. A gravação, registada sem audiência, documenta exemplarmente o entrosamento musical entre dois gigantes tão próximos artisticamente, mas nos antípodas do entendimento pessoal.


                              

Compêndio Krautrock




Future Days, subtitulado Krautrock and the Building of Modern Germany, será, muito provavelmente, a obra mais definitiva lavrada até à data no que toca à revolução rock alemã. Exaustivo, revelador e continuamente interessante, o livro do jornalista britânico David Stubbs constitui um misto de trabalho arqueológico e paixão devota pela arte que narra.
Ao longo de quase 500 páginas, Stubbs dedica-se, sobretudo e sensatamente, aos nomes mais marcantes e seminais da vanguarda musical germânica de finais dos anos 60 e inícios dos anos 70 do século passado. Future Days acaba por ser, assim, uma obra direccionada a neófitos nesta matéria, não obstante conter episódios obscuros e sumarentos que farão as delícias dos maiores aficionados do género e que a tornam uma preciosidade incontornável.
A obra principia com uma epifania: um evento artístico e comunal, em que música, filmes e ativismo colidem e se sobrepõem, e no qual um espírito de renascimento parece brotar de cada gesto e de cada nota. Tal evento decorreu na cidade rural de Unna, oeste da Alemanha, em 1970. Stubbs relata a sua visualização de um documento de 3 horas, de acesso restrito, granjeado pela cadeia televisiva WDR. Nothing better happened in the world that night, escreve o autor, e acreditamos ele. O resto dos comuns mortais, por ora, apenas pode ter ideia do que aconteceu através de pequenos vislumbres como este:

                             

Desta epifania fazem parte os Kraftwerk (aqui na sua fase embrionária e irreconhecível perante a estética futura) e os Can (aos quais Stubbs - pertinentemente - rouba a canção que dá título ao livro). Ambos são devidamente escrutinados e homenageados com lucidez apaixonada. A eles juntam-se exercícios sempre elucidativos e fascinantes, quer do ponto de vista artístico, quer do contexto sócio-cultural de onde surgiram e se implementaram. Neu!, Tangerine Dream, Faust e outros nomes maiores do krautrock (esse epíteto que continua a predominar para revelar a estranheza e a ausência de rotulagem para a música sem convenções) dominam o grosso da obra. Porém, movimentos paralelos como a alucinose espacial dos projectos conjurados pelos Cosmic Couriers, bem como bandas menos divulgadas, como os Embryo ou os Kraan, marcam igualmente presença e reforçam o carácter enciclopédico de Future Days.
A terminar, capítulos dedicados à Neue Deutsche Welle (o equivalente alemão ao pós-punk) e reflexões sobre o presente e o futuro da música, não deixam cair o pano sobre a arte descrita nas páginas precedentes. Assumem a sua herança e a forma como um punhado de grupos alemães - saudavelmente insurrectos contra a herança cultural e os costumes vigentes na sua época - mudou e imprimiu um cunho indelével na criação musical do século XX.
Future Days acaba, igualmente, por ser uma obra que documenta a reinvenção de uma nação. Através de uma geração que renega o passado ao mesmo tempo que deseja manter a sua individualidade. A música acabou por ser apenas uma parte do curso da história. Mas não mudou somente uma nação. Mudou o mundo.

30 de novembro de 2015

Poesia para as Massas



Algures entre Songs From a Room e Songs of Love and Hate, seus segundo e terceiro álbuns, Leonard Cohen passou, de forma algo relutante, pelo festival Isle of Wight de 1970. O que, à primeira vista, poderia parecer um desastre, resultou num concerto-experiência intimista para meio milhão de pessoas. Uma noite, a todos os títulos, mágica e poética, e à qual é possível aceder desde a edição revista e aumentada de Live at the Isle of Wight, editada em 2009.
Os temas que compõem o concerto são, na sua esmagadora maioria, oriundos dos dois primeiros discos do baladeiro canadiano - Songs of Leonard Cohen e o supramencionado Songs From a Room - e incluem clássicos como Suzanne, Bird on a Wire ou Hey, There's no Way to Say Goodbye. Porém, Famous Blue Raincoat e Sing Another Song, Boys, sementes do genial Songs of Love and Hate, são igualmente lançadas sobre a turba silenciosa e atmosfera quase sacra.
Não deixa de ser um artefacto inusitado assistir a um poeta de gabardina enquanto encanta uma multidão de hippies numa noite de Verão com a solenidade hipnótica da sua voz, uma guitarra melancólica e parcos artefactos acessórios. Uma estranha forma de beleza que agora é contada em filme.


                       
leonard cohen isle of wight 1970 full complete concert from sujit phatak on Vimeo.

28 de novembro de 2015

Zénite Lunar

É impossível não chegar ao fim de Moon Blood com uma sensação de esmagamento. Especialmente para quem enceta, pela primeira vez, contacto com os Fraction.
Se existem bandas injustamente condenadas ao esquecimento, estes californianos são membros honorários do clube. Formado por trabalhadores que ensaiavam nas primeiras horas da manhã, e antes dos seus afazeres proletários, a estranheza deste quinteto acentua-se pelo facto de se assumirem como uma banda cristã. Mas que soa como se tivesse o diabo no corpo.
O que torna os Fraction apelativos é a entrega verdadeira que colocam em cada nota tocada e sílaba cantada. Uma urgência ponderada, mas igualmente ritualista. Certos arautos anunciam Moon Blood como o álbum que os Doors nunca fizeram mas que sempre almejaram, e é notória a aproximação - entre o transe e a explosão - do vocalista Jim Beach a Jim Morrison. Todavia, a ausência dos teclados floreados de Ray Manzarek e a preponderância das guitarras, regurgita ecos da escuridão dos Black Sabbath e da intensidade dos Stooges.
É tarefa complicada apontar pontos altos a uma obra tão monolítica e consistente como Moon Blood, o único longa-duração do grupo. O álbum funciona como um turíbulo que asperge incenso heavy psych a cada movimento. O ano do seu lançamento remonta a 1971, mas parece obra padroeira do stoner rock.
Se a produção reflecte os meios state of the art da época, podemos agradecer o facto dos Fraction não terem sofrido uma lapidação artificial. O som é crú e os únicos efeitos que prevalecem e intoxicam são o fuzz das guitarras, filhas pródigas do psicadelismo. Os ritmos são densos e narcóticos, acentuando o inusitado cocktail bíblico-roqueiro que evangeliza o ouvinte pela incineração.
Um enorme disco de uma enorme e perdida banda, Moon Blood ganha, actualmente, contornos de fanatismo no que concerne à sua edição original. Delícia para melómanos obsessivos (e cristãos propensos a romarias ácidas de quando em vez), o encanto hipnótico e denso de Sanc-Divided, Come Out of Her, Eye of the Hurricane, Sons Come to Birth e This Bird (Sky High) urge ser reavivado ad aeternum, pois nunca será ad nauseam. Prisms, Dawning Light e Intercessor's Blues são apêndices que completam a reedição do disco, surgida em 2010, e que não abanam, de forma alguma, os pilares que o sustentam.
Indubitavelmente um dos discos mais intensos, penetrantes e intoxicantes do rock americano pós-Woodstock, Moon Blood retém o espírito da era, mas aventura-se por labirintos sem medo de não encontrar a saída. Se a fé move montanhas, esta obscura e deslumbrante obra-prima comprova-o fervorosamente.

24 de novembro de 2015

Kosmische Kosmetik XLVIII

Jeronimo. Nem o líder do PCP (o que hoje não deixaria de vir a propósito), nem propriamente uma banda do espectro genuíno do krautrock. Talvez o epíteto de banda mais americana do rock alemão seja o que melhor defina este trio, surgido em finais dos anos 60 e criador de três obras a perseguir e capturar.
De todas, a primeira será a mais estranhamente aprazível e deliciosamente acessível. À primeira audição, é quase impossível avançar com a teoria que o rock possante e de laivos psicadélicos que se eleva, fumegante e viscoso, de Cosmic Blues, seja engenho germânico. A voz de Rainer Marz não deixa cair a máscara que revele um sotaque teutónico, assim como a sua guitarra rola e flui com gingares pélvicos. Da mesma forma, o baixo de Gunnar Schäfer e a bateria de Ringo Funk investem em sintonia como dois panzers artilhados de groove. O resultado deste combo bem oleado e atrevido é, assim, um disco de excelente rock musculado e solto, com tanto de orelhudo como de imponente.
Um primeiro vislumbre sobre a capa e os senhores hirsutos que a decoram projecta-nos para um imaginário que cruza os Blue Cheer com os Black Sabbath. Tal não será descabido, pois os Jeronimo apresentam-se com a energia dos primeiros e o peso-pesado dos segundos. Todavia, o seu psicadelismo não chega nunca a ser lisérgico e Belzebu não parece habitar estas paragens. O termo proto-metal assenta-lhes muitíssimo bem, mas as influências são bem mais abrangentes, dos Kinks mais incisivos em News, aos blues pomposos dos Cream em The Key, passando por um Bob Dylan em versão prazenteira em The Light Life Needs.
Os temas cativantes sucedem-se, tornando Cosmic Blues uma obra de coerência e consistência contagiantes. Apesar do rock ser hard, as vibrações são boas e luminosas. A melhor prova encontra-se nos dois singles do álbum, que causaram relativo impacto aquando da sua edição em 1970: Na Na Hey Hey e He Ya, canções celebratórias e convidativas a um discreto mas veemente headbanging.
A partir daqui, é só deixar que estes alemães nos ponham a mexer, com maior ou menor intensidade, através da combustão constante de So Nice To Know, Let The Sunshine In ou Never Goin' Back, temas que parecem colocar a Califórnia na Baviera.
Cosmic Blues, é, acima de tudo, um disco de feel good music. Um álbum de rock despretencioso, mas forte e extremamente lúdico, cujos 40 minutos de duração constituem uma curta mas eficaz panaceia contra dias cinzentos e outros tormentos. A acompanhar com cerveja.

22 de novembro de 2015

Folie Cosmique

A arte sonora do francês Pierre Zalkazanov evidenciou-se, obscura e remotamente, num disco de paisagens electrónicas denominado Green Ray. Tal obra, editada em 1976, permaneceu num recanto poeirento de memórias futuristas, mas merece de sobremaneira o resgate para ouvidos presentes.
O seu charme não reside na novidade ou na audácia - pouco ou nada de novo conseguimos desenterrar do filão electrónico dos idos de 70 -, mas na sedutora envolvência que reveste os três temas que o compõem.
Imagine-se um motor híbrido, criativamente posicionado entre as paisagens infinitamente estelares e estéreis de Klaus Schulze e a sónica torre em mel de Jean-Michel Jarre. Um Volkswagen com as curvas de um Citröen, eis a infraestrutura que alberga Green Ray.
É impossível não olhar esta obra como uma reacção, ou um derivado, da cena electrónica germânica da época. Todavia, ao invés de ser mais um sucedâneo de herméticas ruminações provindas do lado oculto da Lua, o primeiro disco de Zanov apresenta-se como um monolito colorido, um vitral de paisagens gélidas e inóspitas, mas de recortada e tangível beleza.
O tema-título, hipnótico e onírico, resume o condão dos sintetizadores analógicos em criar espirais dançantes de coreografia artificial. Mesmo arcaico, o som é caleidoscópico, servido em camadas que parecem desdobrar-se infinitamente, adornado por tons escuros, mas estranhamente sedutor.
Machine Desperation incorpora um rigor austero e evolui mecanicamente, num pulsar que consome tudo o que encontra na sua roldana. Não existem melodias identificáveis, ou harmonias aconchegantes, mas apenas um convite ao mergulho no vazio, embalado por braços indefinidos.
Green Ray nunca deixa de ser experimental, o que se encontra bem patente na longa e alquímica navegação que o encerra. Running Beyond a Dream revela-se como o astronauta perdido no espaço, estranho a tudo o que o rodeia, mas demasiado fascinado para temer o desconhecido. O tempo parece suspender-se e os sons ecoam como canto de sereias. Ao nível do melhor do supramencionado Schulze ou dos Tangerine Dream, esta peça constitui uma verdadeira delícia para os amantes da música que encerra nos seus domínios o espaço profundo.
Belo na sua essência e recompensador no seu transe atonal mas inebriante, Green Ray é uma estrela distante, mas intensamente brilhante, da era de ouro da música electrónica. Ouvi-lo hoje é, simultaneamente, nostálgico e desafiante. E tão recompensador como sentir saudades de um futuro que poderia ter sido idêntico ao que sonhámos.