31 de dezembro de 2009

2009: A Soundtrack



Nas horas derradeiras do conturbado e, muitas vezes, desconjuntado ano de 2009, resta-me ser arauto dos sons que mais me ajudaram a iluminá-lo e atravessá-lo. Como sempre, a lista é mais intuitiva que obsessiva e resume-se ao nicho da pop e do rock, mais ou menos alternativo, menos ou mais experimental. Muito foi ouvido e assimilado, aqui fica o que de mais essencial ficou retido e conseguiu ser inspirador...

1. Animal Collective – Merriweather Post Pavillion

2. The XX – The XX

3. Grizzly Bear – Veckatimest

4. Bill Callahan – Sometimes I Wish We Were Like An Eagle

5. Dirty Projectors – Bitte Orca

6. Fuck Buttons – Tarot Sport

7. The Flaming Lips – Embryonic

8. Fever Ray – Fever Ray

9. Girls – Album

10. Bob Dylan – Together Through Life

11. Antony & The Johnsons – The Crying Light

12. Wild Beasts – Two Dancers

13. Broadcast & The Focus Group - … Investigate Witch Cults Of The Radio Age

14. Sunn O)) – Monoliths & Dimentions

15. The Very Best – Warm Heart Of Africa

16. Neon Indian - Psychic Chasms

17. Atlas Sound – Logos

18. Yeah Yeah Yeahs - It's Blitz

19. The Antlers – Hospice

20. Micachu & The Shapes – Jewellery

21. Oneohtrix Point Never - Rifts

22. Bat For Lashes - Two Suns

23. Memory Tapes – Seek Magic

24. Richard Hawley – Truelove’s Gutter

25. Sonic Youth – The Eternal

26. Cass McCombs – Catacombs

27. Real Estate - Real Estate

28. Jim O'Rourke - The Visitor

29. Phoenix - Wolfgang Amadeus Phoenix

30. JJ – JJ nº 2

31. Alasdair Roberts – Spoils

32. Bibio - Ambivalence Avenue

33. The Low Anthem – Oh My God, Charlie Brown

34. Tinariwen - Imidiwan: Companions

35. Mayer Hawthorne – A Strange Arrangement

36. Dâm Funk - Toeachizown

37. Matias Aguayo - Ay Ay Ay

38. Emeralds - What Happened

39. Subway –Subway II

40. The Horrors - Primary Colours

41. Wilco - Wilco (The Album)

42. Espers – Espers III

43. David Sylvian - Manafon

44. The Sa-Ra Creative Partners - Nuclear Evolution: The Age Of Love

45. Ben Frost - By The Throat

46. Dinosaur Jr. - Farm

47. Iggy Pop - Preliminaires

48. Raphael Saadiq – The Way I See It

49. King Midas Sound - Waiting For You

50. Franz Ferdinand - Tonight: Franz Ferdinand

Manifesto


Toda a gente devia ter isto. Devia ser obrigatório por lei ou permitir benefícios fiscais a quem o adquire. Devia ser matéria de estudo nas escolas e ombrear com o PC Magalhães. Aqui reside a súmula da melhor música popular do século XX, honradamente revista e pomposamente melhorada. Podia ser a caixa de Pandora, mas daqui não saem maldições nem pragas, somente bálsamos. Pensava que o excelso Tomorrow Never Knows já não me conseguiria surpreender mais; A Day in the Life igualmente. Quão magnificentes soam lingotes de menor quilate mas igual valor sentimental como Blue Jay Way e Long, Long, Long nesta arca do tesouro sonicamente reconstruída! E porque nunca é demais lembrar paraísos terrenos...

19 de dezembro de 2009

Stars In The Bar Room Floor

Os Flaming Stars têm vindo a fazer, essencialmente, o mesmo álbum há 13 anos. Isto não implica que a sua música seja classificada como aborrecida ou repetitiva. O facto é que este quinteto londrino, liderado por Max Decharné, ex-membro dos nocturnos mas fogosos Gallon Drunk, tem apostado numa sonoridade que pouco ou nada se afasta da traça original. Essa traça bebe sofregamente das bandas de garagem dos anos 60 e de um imaginário noctívago, rockabilly e decadente, alimentado a álcool, tabaco e western spaghetti. Inúmeras vezes comparados aos Gun Club e aos Bad Seeds de Nick Cave, comungam dos primeiros a vertigem urbana e árida e dos segundos a visceralidade e qualidade interpretativa. Mas são acima de tudo bandas norte-americanas primordiais como os Sonics, os Artesians ou os Wailers e actos individuais icónicos como Elvis Presley ou Gene Vincent que moldam e assombram a sonoridade dos Flaming Stars.
Banda prolífera, desde o lançamento do primeiro álbum Songs From The Bar Room Floor em 1996 até Born Under a Bad Neon Sign, disco de 2006, os Flaming Stars editaram sete álbuns de originais e uma mão-cheia de singles, EP's e compilações. A consistência está presente em todos os lançamentos, sendo que Bring Me The Rest Of Alfredo Garcia será provavelmente a melhor carta de apresentação do grupo. O que fica, sobretudo, são as canções, urgentes e poderosas, penetrantes e inesquecíveis, amargas e ressacadas. Chamativas como um Cadillac dos anos 50 e espalhadas ao longo dos anos de existência da banda, são o sangue que lhe corre nas veias. Ten Feet Tall, A Hell Of A Woman, Downhill Without Brakes ou Sweet Smell Of Success são temas de fazer cair o queixo, nem que seja pelo majestoso Vox Continental que borboleteia infecciosamente ou pelos raids rítmicos do soberbo baterista Joe Whitney. The Day The Earth Caught Fire, The Last Picture Show, House Of Dreams ou Black Mask são sedutoramente escuras e palpam terreno nas sombras com dedos que parecem apreciar a travessia.
Como já foi dito, pouco ou nada mudou no estilo dos Flaming Stars desde a sua fundação. A música continua a encarnar no presente espectros do passado e as capas dos discos continuam a ser pastiches de cartazes cinematográficos dos anos 50. A atitude, essa, só pode ser apelidada de punk (por vezes dou comigo a pensar nos Stranglers dos primórdios quando os ouço...). Eternos membros da segunda divisão das bandas britânicas, parece não quererem mais que isso e também não precisam. Vestem os seus fatos e gravatas como se fossem membros da Rat Pack no coração do Soho; manda a tradição que iniciem cada álbum com um tema fervilhante e o encerrem com uma balada lacrimejante; arrancam tornados sónicos e são fiéis àquilo que fazem como se fossem a última das bandas de garage rock à face da Terra. Depois de vários anos de bulício constante, há três que se remetem ao silêncio discográfico. Pode ser que tenham terminado. Pode ser que lhes esteja a faltar combustível para arder. Seja como for, se voltarem, que seja na forma de sempre, pois não há mais ninguém como eles.

8 de dezembro de 2009

Chill-Out Folk

Em 1973, o mestre John Martyn editou aquela que será, seguramente, a sua obra de referência. A sua obra-prima. O disco recebeu o título Solid Air e, ainda hoje, a sua influência se faz sentir, especialmente pelo facto de a folk nunca ter ido tão longe como antes deste álbum. Composto originalmente por 9 canções em estado de graça, este excelso disco mantém ao longo da sua duração o mesmo tipo de ambiência, dolente, arrastada, profundamente nocturna e tocada pelas estações do frio. O clássico absoluto que abre o álbum e lhe dá título é dedicado ao mago Nick Drake, amigo pessoal de John Martyn entretanto falecido. Esta canção foi feita para ouvir em quase total ausência de luz e silêncio absoluto. A voz inebriada e fumarenta de Martyn é magistralmente acompanhada por gotas cintilantes de xilofone, enquanto um saxofone enlutado observa à distância. Segue-se a folk mais tradicional do esplêndido Over The Hill, complementada por bandolim e violino, e em que a letra foca as agruras de uma vida de excessos, temática presente na maioria das canções do disco. A penumbra regressa, em tons de vermelho-escuro, com Don't Want To Know, belíssima balada adornada por discretos mas valiosos enfeites jazzísticos, nos quais um cálido piano eléctrico é rei. I'd Rather Be The Devil cumpre a promessa. É um tema possesso, um martelar voodoo, em que John Martyn aparenta mais ser um bluesman como Howlin' Wolf ou Leadbelly que um baladeiro do Surrey. O espírito livre do jazz sente-se mais que nunca, sendo que a versão ao vivo deste original de Skip James que viria a povoar algumas reedições do álbum ganha novo fervor pela intensidade e pelo improviso. Em ambas, o tema fecha com um encantatório trabalho de guitarra que remete para paisagens mais psicadélicas.
Um contrabaixo meditabundo estende o tapete a Go Down Easy, canção trémula em que a folk e o jazz se imiscuem na perfeição. Um baixo meio funky e uma guitarra semi wah-wah encetam a travessia vincadamente ritmada e fortemente inebriada de Dreams By The Sea, até que o piano eléctrico, sonolento e às apalpadelas, põe termo à excitação.
Chega a vez de May You Never, hino à amizade e um dos temas mais belos e emblemáticos do álbum, terno e despojado, em que a guitarra, ora golpeada, ora dedilhada, e a voz sentida de John Martyn chegam e sobram para as encomendas. A bruma e as sombras envolvem-nos e trepam por nós em The Man In The Station, perfeita ode a solitários que vagueiam pelas ruas nas horas mortas da noite. O disco termina em toada mais tradicional e alegre, com a dupla The Easy Blues / Gentle Blues. A primeira mostra bem a influência de Hamish Imlach, homem da folk mais aguerrida que lançou Martyn; a segunda é um quase um breve trecho cujo intuito é colocar ponto final no disco. E fá-lo com a qualidade e o génio de tudo o que ficou para trás.
Solid Air foi considerado, com o habitual e histriónico valor acrescentado que os britânicos colocam quando formulam algumas opiniões artísticas, como o primeiro disco de trip-hop de sempre. Facto é que o influente radialista Gilles Peterson, homem mais vocacionado para danças e electrónicas, coloca amiúde o tema-título no éter. Mas isto não se aproxima da realidade, apesar de não andar totalmente fora dela. Solid Air é um álbum de ambiências extremamente carregadas, narcóticas até. Como terapêutica relaxante e entorpecente encontra pouca rivalidade. Trata-se, indubitavelmente, de um dos grandes discos britânicos do século XX, que, reedição após reedição (a última teve lugar este ano, poucos meses após a morte do seu autor) ainda mantém a traça original e não precisa de mais que os seus primeiros 9 temas para encantar e arrebatar para a eternidade.

Canterbury Delights

Apesar da magra obra que legaram, os Hatfield and The North são uma das bandas mais emblemáticas e representativas do que ficou conhecido nos inícios dos anos 70 como Canterbury Scene. Esta rotulagem, um pouco forçada e vaga como são todas, assentou numa semelhança de estilos entre diversas bandas do território inglês em epígrafe, muitas delas constituídas por elementos de outras bandas já existentes, o que confere a este estilo o estatuto de uma autêntica matrioska de individualidades. Estes estilos baseavam-se, essencialmente, em estruturas musicais intrincadas mas melódicas, em que os elementos mais acessíveis da música pop se conjugavam à complexidade mais experimental do avant-garde. Considerada muitas vezes um subgénero do rock progressivo, a onda (ou cena) de Canterbury é bem mais que isso. Daqui advém uma grande parte da ousadia e da inventividade que construiu os alicerces do rock mais arty, desafiador e incatalogável. O improviso é lema e peça-chave deste género musical, o que se nota distintamente na incorporação declarada de sequências jazzísticas e no liricismo muitas vezes absurdo e inusitado, que parece servir somente como bengala para a miríade instrumental que se estilhaça a cada momento. Música que encanta tanto como intriga, que se estranha tanto como se entranha, tem nos dois álbuns de originais dos Hatfield and The North um típico exemplo da suas artes sedutoras.
O primeiro álbum, homónimo, da banda, foi lançado em 1974, altura em que o estilo de Canterbury já tinha ultrapassado a sua fase embrionária. É uma obra rica e sofisticada, executada com a perfeição clínica dos seus calejados membros. O surrealismo e a excentricidade invadem-na a espaços, sendo que a música parece contorcer-se e amolgar-se para poder avançar pelas dobras do nosso córtex cerebral. A prova é o magistral Shaving is Boring, em que uma introdução saltitante de órgão vai sendo acometida de sucessivos estertores até se deixar levar numa corrente imparável e hipnótica da qual não apetece sair. O corte e colagem de ambiências e ritmos mais ou menos frenéticos perdura durante todo o álbum, pelo que é absolutamente normal suceder-se a uma peça suave e plena de coros femininos como Lobster in Cleavage Probe, o cataclismo em regime free-rock de Gigantic Land Crabs in Earth Takeover Bid. Como é igualmente apreensível, os títulos dos temas não apresentam grande margem para decifração. Exemplo disso é o intrigantemente denominado Big Jobs (Poo Poo Extract). Não raras vezes a capa de um álbum faz jus ao seu conteúdo, e desta feita acontece isso mesmo. O céu cujas nuvens parecem ser figuras de um fresco de Miguel Ângelo sobre a placidez cinzenta de um qualquer subúrbio britânico, demonstra bem a intrusão do surrealismo na normalidade.
O segundo álbum dos Hatfield and The North, lançado no ano seguinte e baptizado The Rotter's Club, prossegue a senda do seu antecessor, mas consegue alcançar a proeza de ser ainda mais conciso e depurado. O disco abre com uma declarada canção pop, Share It, leve à superfície, mas cuja escavação mais profunda revela um cinismo latente. Lounging There Trying principia com uma deliciosa e aquosa guitarra, que acaba por preencher magnificamente um tema outonal e sombrio, mas por onde apetece deambular bem agasalhado. Os interlúdios estranhos e vindos do nada mantém-se, como no gargantuamente denominado (Big) John Wayne Socks Psychology on the Jaw e no seu sucedâneo não menos esquizofrénico Chaos at the Greasy Spoon. O génio instala-se definitivamente ao quinto tema, uma peça contraditoriamente intitulada The Yes No Interlude. Aqui é dado livre-trânsito à improvisação, que se propaga em convulsões sobre a cadente secção rítmica. Primeiro o órgão de Dave Stewart, depois o saxofone de Jimmy Hastings, soltam chispas de sons naquele que é, provavelmente, o melhor momento do álbum. Após este bombardeamento, a toada prossegue serena e sem sobressaltos, com destaque para o excelente e jazzístico Underdub até Mumps, tema que encerra a edição original do álbum. Com 20 minutos de duração e dividida em 4 partes, a peça é o que mais se assemelha a rock progressivo em todo o espectro da obra da banda. Tocado pelo génio, a espaços, há que destacar obrigatoriamente a longa e extasiante deambulação de Lumps, mais um exemplo perfeito do motor propulsor que constituía o colectivo na posse dos seus plenos poderes. A abrir e a fechar esta última sequência do álbum, as duas partes de Your Majesty Is Like a Cream Donut, mais um título de referência a juntar ao reportório da banda. A reedição do disco em 1987 acrescentou-lhe mais 5 faixas extra. De todos os temas, há que realçar o belíssimo e sólido Halfway Between Heaven and Earth.
Pouco ou nada conhecidos fora do solo inglês, os Hatfield and The North conseguem ter a sua pequena legião de culto dentro de portas. Assim é com o escritor britânico Jonathan Coe, cujo notável romance de 2001 intitulado precisamente The Rotters' Club é uma homenagem indirecta à banda, que surge diversas vezes mencionada nas suas páginas. Mesmo não sendo a nata das natas de Canterbury (esse papel cabe a luminárias consagradas e instituídas como Robert Wyatt, Soft Machine, Caravan, ou mesmo os Gong), os Hatfield and The North constituem uma belíssima opção a juntar a este estilo musical tão único e sui generis.

7 de dezembro de 2009

Genes, Signos, Identidades

Quem Nos Faz Como Somos é uma nova iguaria literária do psiquiatra e professor universitário José Luis Pio Abreu. Nova não será o termo correcto, dado que foi editada em 2007, mas, latu sensu, é o seu mais recente livro e que sucede ao já clássico Como Tornar-se Doente Mental?.
Desta feita, o autor debruça-se sobre a extrema e, por vezes, hermética, complexidade que faz da espécie humana aquilo que ela é. Partindo do particular para o geral, dos genes para os signos, do biológico para o cultural, Pio Abreu demonstra perfeitamente que é possível escrever sobre temas científicos e filosóficos de forma clara e acessível. Através de uma prosa escorreita e, a espaços, bem-humorada, o livro conta ao leitor a história da evolução da vida do ser humano, desde a involuntária fecundação do óvulo, à voluntária escolha da sua identidade num mundo carregado de possibilidades. No final, fica perene a ideia de que, mesmo perante a multiplicidade de opções, de culturas, de religiões, de relações que constituem o mundo do Homem moderno, a sua identidade será sempre condicionada pela herança genética que transporta. É ela que o faz agir daquela forma, naquela altura, perante aquela situação. Os genes fazem-no para sobreviver, os signos também, e o Homem está condenado eternamente a perseguir a sua liberdade total. Uma obra do maior interesse e excelente como ponto de partida para futuros desbravamentos de Umberto Eco, Michel Foucault, Jean-Paul Sartre ou Daniel Dennett. Mais sobre este progressivamente influente autor aqui.

Space Ritual

The European Homepage For The NASA/ESA Hubble Space Telescope: Assim se apresenta a facção cibernauta do Velho Continente dedicada ao mega-telescópio espacial Hubble e às suas descobertas. O site é um regalo para a vista, um manancial de fotografias e vídeos do cosmos profundo captados pela microscópica potência do aparelho. É impossível não sentir o peso esmagador mas delicadamente belo destas imagens e dos mistérios que as envolvem. Mais que palavras para a descrever, a divulgação desta página deve ser feita com um convite a explorar as suas recônditas maravilhas. São autênticas viagens de alta definição pelo sistema solar, por quasares e nebulosas, luxuriosamente coloridas ou desoladamente negras. Perante o que nos surge, tanto nos podemos deixar levar pela espiral vertiginosa de nave desgovernada dos Hawkwind como pela ausência de gravidade dos intra-uterinos Ambients de Brian Eno. Para olhar demoradamente, com ou sem propostas sonoras, em http://www.spacetelescope.org/.

30 de novembro de 2009

Modas Outono - Inverno

Bill Fay é um dos mais obscuros, esquivos e geniais singer-songwriters dos princípios de 70 em Inglaterra. Algures entre o protesto cortante de Bob Dylan e a melancolia contida e elegante de Nick Drake, Fay comunga da voz pouco depurada mas expressiva do primeiro e do cinzentismo outonal e algo lúgubre que povoa as melodias do segundo. Em dois álbuns de referência, Bill Fay e Time of the Last Persecution, o cantor conquistou a matéria que faz os cultos e as lendas, ou seja, pouquíssimos discos vendidos e uma devoção considerável entre a intelligentsia mais atenta aos recantos poeirentos do passado provinda das gerações vindouras.
Os dois primeiros álbuns de originais, lançados, respectivamente, em 1970 e 1971, valem acima de tudo pelas fortíssimas composições individuais. Canções frágeis, de base folk, mas adornadas a espaços por uma solenidade e uma grandiosidade orquestral avassaladora, o que acentua ainda mais a fragilidade dos seus alicerces.
Bill Fay é uma obra-prima de canções outonais e chuvosas, por vezes circunspectas, feitas de tristeza resignada, de amores escorregadios e existências marginais. São 13 os temas que a compõem, todos uniformes na mestria da composição e na carga emotiva da entrega. Bill Fay soa como um Bob Dylan a quem emprestaram a orquestra de Scott Walker por alturas do magistral Scott 4. The Sun is Bored começa como uma nuvem a cobrir o Sol, até ribombar como um trovão e terminar com as palavras And the sun goes down / Never to rise again. Sing Us One Of Your Songs, May é uma belíssima elegia a mais uma jovem e incógnita vida perdida na guerra. A mesma temática prossegue na amargurada Gentle Willy, onde a visão das batalhas e da morte persegue inexoravelmente a sua figura central. Methane River é um hino à luta contra a adversidade, de poema simples que a melodia exacerbada torna comovente. Em peças de pouco mais de 2 minutos, Bill Fay consegue ser o mais expressivo dos trovadores, imerso em melodias lindíssimas e espectrais, inesquecíveis para os espíritos mais dados ao romantismo. The Room, Goodnight Stan, Cannons Plain, são pequenos monstros, absurdos no tamanho da sua intensidade e beleza. Be Not So Fearful tem sido alvo de cover várias vezes por uma das mais respeitáveis bandas americanas da actualidade, os Wilco, o que prova que este grande homem só influencia pela positiva. Esta primeira obra termina na mesma toada fatidicamente bela com Down to the Bridge, canção para ver um riacho a passar em dia de Inverno, sob ponte de pedra...
Time of the Last Persecution, o segundo álbum, é invadido, suavemente, por investidas eléctricas e alguns floreados blues-rock. Nesta toada, a abertura feita com Omega Day é deliciosa. Contudo, o disco não se deixa vislumbrar como uma peça mais luminosa que o seu antecessor. A prova surge logo na claustrofobia triste do segundo tema, o dorido Don’t Let My Marigolds Die. ’Til The Christ Come Back e Plan D são canções de redenção após a tentação ou a imersão no pecado. A canção de protesto mostra os caninos aguçados subtil mas magistralmente em Pictures of Adolf Again e Come a Day. Isto sem esquecer o penumbrento mas quase messiânico tema-título e o final impregnado de doce melancolia de Let All The Other Teddies Know.
Para além destes dois álbuns, Bill Fay lançou somente um single. Lançado em 1967 e constituído pelos duplos lados A Some Good Advice e Screams In The Ears, é uma belíssima porta de entrada a este génio ostracizado da música britânica. Um terceiro álbum, Tomorrow Tomorrow & Tomorrow, foi gravado em finais de 1970 mas somente lançado em 2005 pela mão de outro fã, desta feita David Tibet, testa de ferro dos apocalípticos Current 93. Sobra ainda a compilação de raridades From The Bottom Of An Old Grandfather Clock, editada em 2004. Tudo material altamente aconselhável deste sombrio e fugidío baladeiro inglês. Mas nada como as duas primeiras obras para apreender a experiência em pleno e, na mais feliz das circunstâncias, ficar viciado nela.
P.S.: Dada a parca informação existente acerca do bardo, vale a pena dar uma espreitadela ao único site que lhe é inteiramente dedicado. http://www.billfay.co.uk/ contém uma biografia decente, assim como a discografia e as letras completas.


21 de novembro de 2009

Alva Soul

A Strange Arrangement impregnou novamente a minha ímpia alma de soul. Já não me lembro há quanto tempo isto não acontecia, provavelmente desde que Jamie Lidell cantou mais alto. O álbum deste ano de Raphael Saadiq é também um ardor constante. Mas aqui canta-se melhor e as convenções são brilhantemente revolvidas. Não me canso desta voz. Não me canso destas canções quentes e lânguidas. Discos como este são um raio de sol permanente, uma prova que a (boa) música não tem cor ou idade. Podia ser um álbum de um monstro sagrado como Marvin Gaye, Otis Redding ou Al Green, algo gravado na Motown dos anos 60 ou 70. Na realidade, foi feito por um indivíduo branco do Michigan com um ar meio nerd chamado Mayer Hawthorne, que calha ter um vozeirão superlativo. É uma obra intemporal, transbordando excelentes canções, casualmente editada em 2009 e, desde já, uma das marcas discográficas do ano. Magnífica e contagiante, que é somente o que interessa. Não há muito mais a dizer, senão deixar a música penetrar cada poro, fechar os olhos e deixar a alma à mercê desta deliciosa cascata sonora. Definitivamente para ouvir numa companhia muito desejada. Acredito que derreta icebergs e faça milagres...

20 de novembro de 2009

Agridoce Sul

Os Housemartins trazem-me deliciosas memórias de infância. De tempos sem responsabilidade e horários / prazos para cumprir. Algo que só atingirei novamente se conseguir uma reforma que pague um bom Lar ou o seu sucedâneo moderno denominado Residência Assistida. Tal como o tempo, que avança inexoravelmente, assim esta simpática banda de Hull presenciou a sua desagregação. Este desmembramento levou a que o quasi desconhecido baixista Norman Cook se tornasse a maior estrela do fugaz movimento Big Beat sob o pseudónimo Fatboy Slim e que o quasi líder da banda Paul Heaton se afirmasse como um dos maiores compositores da pop britânica das últimas duas décadas. Em conjunto com o sobrevivente Dave Hemingway, este último formou os Beautiful South, um cocktail musical em que a doçura disfarça o álcool inerente e em que as melodias açucaradas disfarçam igualmente a amargura latente.
Ao mencionar os Beautiful South, é mais que provável que, por arrasto, venham a lume clássicos cantaroláveis como A Little Time, Perfect 10, Rotterdam (or Anywhere) ou Old Red Eyes is Back. Aos mais atentos, surgirá nitidamente a distinção flagrante entre a doçura da música e o azedume das palavras. É este contraste agridoce que transforma os Beautiful South numa banda potencialmente incomodativa, daquelas que choram por detrás da máscara de palhaço. Paul Heaton não é, nem nunca será, Elvis Costello e, nem por sombras, pretende sentar-se no trono desfeito de Ian Curtis. No entanto, a sua (distinta e sincera) voz toca pela triste plausibilidade das histórias que conta. São histórias que, ao mesmo tempo, nos pertencem tanto como aos personagens que as povoam. Ninguém aqui sai defraudado da realidade, por mais afastado que se considere dela. Alcoolismo, desemprego ou divórcio são temáticas na ordem do dia, sempre entregues na mais polida das formas, como se a resignação fosse a única arma possível e a doçura a prova que isenta a culpa de se ter nascido para este destino. Se não, escutem-se temas como Especially For You, Pockets, Window Shopping For Blinds, I May Be Ugly ou a belíssima versão de Everybody's Talking de Harry Nilsson na voz de Jacqui Abbott.
Na melhor tradição britânica, o sentimento auto-depreciativo sempre povoou a literatura e, na sua quota parte, a música. A crítica social idem. Mas, enquanto singer-songwriters como Ray Davies nos fazem pensar ainda bem que não sou como eles, Paul Heaton faz-nos desejar espero que isto não me aconteça a mim. Salva-se uma ou outra canção de amor, simples mas pungente como as demais. Dumb é um magnífico exemplo. Prettiest Eyes é outro. Este último, no entanto, bastante especial. Nos meus tempos de faculdade, havia um minúsculo contingente acerrimamente adepto desta banda. Inseguros e cínicos em relação ao futuro que os esperava. Esta cantiga homenageia-os directamente, assim como a cidade que muito aprecia estes ingleses e que, pelos vistos, estes ingleses apreciam muito...

17 de novembro de 2009

The Boys Next Cave

Antes do regurgitante negrume gótico dos Birthday Party e muito antes da redenção pelo Espírito Santo de Nick Cave e consequente evangelização dos Bad Seeds, irromperam fugazmente os Boys Next Door. A primeira banda de Nicholas Edward Cave foi formada em meados dos anos 70, em conjunto com o ubíquo companheiro de grande parte da sua carreira, Mick Harvey, começando por ser uma banda de covers Glam e New Wave. A sua identidade própria apenas se afirmou e vincou em finais dessa década, muito em parte devido à entrada do carismático e suavemente cadavérico Rowland S. Howard e da sua distinta guitarra. O apogeu deu-se em 1979, com a edição do único álbum do grupo, o monolítico Door, Door. À primeira audição parece estarmos perante um mascar e cuspir de influências, dos Stooges aos Roxy Music, dos New York Dolls aos Television; um disco de colegiais sempre a rasgar, feito de urgência adolescente, ritmos frenéticos e melodias contagiantes. Mas há muito que diferencia os Boys Next Door de serem arrepiantemente etiquetados como os Green Day da sua época. Em primeiro lugar, a voz de Nick Cave a dar os primeiros mas seguros passos em direcção ao fundo da caverna, as suas letras já pejadas de uma paranóia insinuante e de uma angústia juvenil, mas, a espaços, dilacerante. Em segundo lugar, a guitarra de Howard, que preenche os temas de uma palpável mas subtil sofisticação que, na sua ausência, seria pálida e magra. Os trejeitos verlainianos de After a Fashion e a alta tensão de Somebody's Watching Me ou The Nightwatchman são pontos a reter. I Mistake Myself é humoradamente tétrica, fria mas ainda longe do ambiente de câmara frigorífica de alguns temas dos futuros Birthday Party. The Voice e, em particular, Friends of My World, são mini-épicos de escassos minutos, punk na intenção, solenes na entrega. Curiosamente, o tema que mais se aproxima da estética de Nick Cave actualmente (re)conhecida, foi escrito por Howard, encerra o álbum e intitula-se Shivers. É uma daquelas peças que deveria ser obrigatória por lei em qualquer quarto de adolescente que sofreu o seu primeiro desgosto de amor e está à beira de tomar uma caixa de Rohypnol regada a Super Bock. Ainda hoje perdura como uma balada magistral, perfeitamente construída, em que a guitarra difusa como uma dor indecifrável consegue mesmo arrepiar a espinha.
Toda a gente sabe, ou deveria saber, o que aconteceu a seguir na vida destes rapazes. Nada do que aqui está seria repetido. As coisas tornaram-se progressivamente mais negras, Cave tocou o fundo do abismo com uma agulha no braço, retornou como prova palpável da salvação de Jesus Cristo e, na actualidade, é um dos melhores escritores de canções que o mundo já conheceu. Algumas das mais curiosas, directas e improváveis estão neste disco. Um artefacto nostálgico a estimar.

24 de outubro de 2009

Mr. Mojo Risin'

Desde há muito que as publicações musicais decidem acompanhar as suas edições de CD's gratuitos. Algumas não precisam, como a esmiuçante Record Collector; algumas fazem-no esporadicamente mas muito bem, como é o caso da Wire; outras fazem-no sistematicamente, como é o caso da Uncut ou da Mojo. A primeira já viu melhores dias neste campo, sendo que, há sensivelmente 8 ou 10 anos muitos adquiriam o pasquim pelo apêndice auditivo que oferecia. Infelizmente, de há uns anos a esta parte, a Uncut já não proporciona aos seus leitores a audição em primeira mão das obras que critica. Não obstante, continua a ser uma agradável revista musical, principalmente no que concerne à revisitação de bandas e discos mais antigos e na divulgação de nova e muito boa música feita em terras norte-americanas. Assim é também a Mojo, igualmente britânica, igualmente abrangente, igualmente interessada em divulgar certos artistas e determinadas obras de culto. Estas duas revistas constituem uma espécie de Bloco Central das publicações musicais, que se complementam uma à outra, mas que não exigem ser possuídas em conjunto. No entanto, e no que diz respeito a CD's ofertados ao comum melómano, a Mojo poderia ganhar aos pontos, se apresentasse amíude compilações da consistência e da qualidade que hoje decidi recuperar aqui. No relativamente recente mas igualmente remoto mês de Junho de 2003, esta revista ofereceu à borla uma das melhores compilações que alguma vez ouvi dedicada ao rock de garagem, a cena garage, surgida em meados dos anos 60, muito por culpa dos Rolling Stones e da sua aproximação branca e de fatiota aos blues. Instant Garage, como foi denominada, é uma autêntica Bíblia de referências nesta área. Ao contrário de, parafraseando o geriátrico José Saramago, ser um manual de maus costumes, esta Bíblia pura e simplesmente irrradia luz e júbilo sobre o ouvinte. Havendo quem pague (e bem) para adquirir algumas das rarídades de bandas aqui representadas, este disco grátis escancara magistralmente as portas para esta vertente musical tão rica e seminal. Muito do que se ouve nele é verdadeiramente raríssimo de encontrar, nomeadamente bandas como os Artesians ou os Brave New World, que tiveram existências curtas, resumidas a singles e a concertos dentro de portas nos seus E.U.A. natais. Pululam igualmente por aqui actos mais consagrados, mas embebidos no mesmo espírito rebelde, urgente e do it yourself, como os Modern Lovers e os Ramones, ou, em fase embrionária e crua, os Kinks e os Love.
Dos temas mais memoráveis desta colecção, realce para o genial I Had Too Much To Dream (Last Night) dos Electric Prunes, o sombrio e afectado My Daddy Walked In Darkness de Gil Bateman e o docemente doloroso Sometimes You Just Can't Win dos obscuros Mouse & The Traps. Destaque igualmente para o roufenho e primário Again & Again dos Iguanas, banda e bicho cujo baterista, James Osterberg, viria a homenagear na sua carreira a solo ao adoptar o nome Iggy Pop. De resto, que mais podemos dizer perante uma compilação que junta The Nazz (do excêntrico Todd Rundgren), MC5, Sonics e New York Dolls? Mais que um fim em si mesmo, esta colecção deve ser vista como ponto de partida para uma busca exaustiva das inúmeras bandas deste estilo, que lançou as raízes de movimentos marcantes como o punk e outros não tão marcantes como o psychobilly. A partir daqui, é provável e compreensível que se instale uma obsessiva-compulsiva febre de coleccionismo. Se houvesse uma nota a atribuir-lhe seria 18 valores. Se tivessem sido incluídos os 13th Floor Elevators e os Monks, seria justamente um disco merecedor de 20 valores. Gratuito, abrangente, enciclopédico e, acima de tudo, carregado de temas escaldantes, que mais se pode pedir? Se todas as revistas trouxessem discos assim, felizes seriam os humildes melómanos. A agarrar como se não houvesse amanhã, caso a estrela da fortuna brilhe e o encontrarem perdido por aí...


The Nazz - Open My Eyes (1968) por soulpatrol

Dieta Mediterrânica IV

É parca a informação em torno do colectivo italiano Dedalus. Originários de Turim, tiveram o seu apogeu no início dos anos 70. A isso se deve o brilhante primeiro álbum que editaram e que replica o nome da banda. Algures entre o jazz mais experimental, a electrónica mais expansiva e as paisagens de Canterbury, Dedalus é uma experiência auditiva embebida no mais audaz e livre espírito da época.
A abertura faz-se sinuosamente com Santiago, em que uma guitarra divagante se junta a um contrabaixo enérgico, cativando abruptamente e logo à partida. Uma pausa para respirar e eis que um saxofone igualmente atrevido toma o tema de assalto, conquistando-nos irremediavelmente. Defraudando as expectativas da melhor forma, este exercício de jazz rock inflecte para territórios de electrónica espacial, que se distende livremente até à fusão final em apoteose jazzística. Leda abre com chispas ecoantes de piano eléctrico, temperado por um tímido saxofone. Peça de atmosfera deliciosa e quente, introduz reminiscências dos Soft Machine das eras de Fourth e Fifth. Conn envereda pelo mais puro improviso, avançando às apalpadelas por entre a precisão rítmica de relojoeiro suíço. Segue-se C.T.6, peça complexa e magnificamente executada, segmentada em breves e caleidoscópicos trechos, que se vão sucedendo progressivamente para produzir um autêntico patchwork sonoro. Um panegírico para os sentidos. O quinto e último tema, Brilla, conclui o álbum num devaneio de jazz cósmico, progressivo, num turbilhão inescapável de alimento para a mente.
Para além dos supracitados Soft Machine, essa obra-prima do jazz de fusão que é Bitches Brew de Miles Davis surge inescapavelmente à ideia. Mas, neste disco de 1973, os Dedalus conseguem manter uma consistência de tal forma incrível, quer a nível composicional, quer a nível execucional, que nos envolve deliciosamente e nos faz esquecer tudo para além da excelência do momento.

23 de outubro de 2009

Velas na Tundra

Arrasados e, inúmeras vezes, incompreendidos pela crítica por alturas das sua primeira aparição, os Black Sabbath são, hoje, dignos e marcantes senhores na história do rock. Os inventores do heavy-metal. Os responsáveis pela sua incursão na via do ocultismo mais pedante e indulgente, mas não menos diabólico e pungente na entrega. Os seus três primeiros álbuns, Black Sabbath, Paranoid e Master of Reality são vistos actualmente como obras imprescindíveis na discografia de qualquer roqueiro bom chefe de família. Vol. 4 anda lá perto, sendo que, a partir da segunda metade dos anos 70, a banda começou a perder relevância e a ser apontada mais como referência, os seus discos mais imitados que ouvidos. A culminar, o decano Ozzy Osbourne (à parte ter elaborado dois ou três álbuns bem esgalhados) involuiu de senhor das trevas a imponderável e apalhaçada estrela de reality show.
Há 23 anos atrás, bem antes dos Sabbath voltarem (ou começarem) a ser hip fora do circuito estritamente metaleiro, um agrupamento sueco lançou um álbum de estreia em muito responsável pela sua reabilitação e fuga do esquecimento. Pesadamente intitulado Epicus Doomicus Metallicus é uma obra impregnada de riffs esmagadores, hipnóticos e arrastados na melhor tradição de Tony Iommi e de um negrume gótico, feito de melancolia opressiva e variadas temáticas esotéricas. Não é à toa que a este festim soturno foi atribuído o epíteto doom metal.
Rezam as crónicas que o disco foi produzido em condições extremas, o que se reflecte na ambiência sonora. A banda tinha por hábito ensaiar numa pequena casa, remotamente situada no alto de uma montanha. As gravações tiveram lugar num estúdio tão frio que os músicos, sem dinheiro para pagar aquecimento, usavam luvas e sobretudos enquanto tocavam. Os calafrios reflectem-se na música, especialmente na voz. Johan Langquist, cantor de serviço que abandonou a banda pouco depois da conclusão do álbum, afirmou respirar gelo enquanto cantava. A voz é, aliás, a porção mais estranha deste disco, pois Langquist é tudo menos um vocalista de rock pesado. Às vezes, até canta mesmo. Se Scott Walker, passe o hiperbólico sacrilégio, decidisse frontear uma horda metaleira em meados de 80, provavelmente soaria como algo parecido. A instrumentação, essa, é pesada como manda a lei por estas bandas, mas arrastada e penumbrenta. Solitude abre o disco do modo mais funesto possível. Uma elegia suicida, de entrada acústica e progressão negra e fatalista. A voz ecoa como se já não pertencesse a este mundo. Demon's Gate é um épico arrastamento de quase 10 minutos que relata nada mais nada menos que uma viagem ao Inferno. A hipnose em tom grave das guitarras é levada ao limite, em permanente espiral repetitiva, quebrada somente por proverbiais solos estridentes. Crystal Ball e Under the Oak são perfeitas osmoses do mais obscuro que os Black Sabbath legaram. Black Stone Wielder é um desfile de figuras encapuçadas debaixo de um céu cinzento, que verte uma melodia rica e plena do pathos que terá influenciado muito do tenebroso black metal nórdico da década de 90. No final, A Sorcerer's Pledge define-se como a peça mais ambiciosa do álbum. Bem elaborado para um grupo de tão parcos recursos, o tema começa por ser uma balada outonal, progredindo para territórios mais enérgicos que desembocam numa gélida marcha fúnebre. O tema extingue-se num estertor gótico, com a típica voz feminina em fundo.
Epicus Doomicus Metallicus, mais que óbvia homenagem aos patriarcas Black Sabbath, vale por ser um dos discos mais improváveis surgidos da área do metal. Apesar do negrume constante, é quase ingénuo nas suas intenções. A partir dele, os Candlemass tornaram-se uma banda mais convencional e apegada aos tiques e clichés do circo metaleiro. Tornaram-se, eles próprios, uma referência. Mas, ouvida no lado errado de uma noite de Inverno, ainda é provável que esta obra debutante assuste e cause alguns calafrios...

17 de outubro de 2009

Somos todos Mutantes

Mutantes, obra do biólogo evolucionista francês Armand Marie Leroi é um livro fascinante. Nele, são narradas, num misto de ensaio e rigor científico state of the art, histórias de como o ser humano é alvo de modificações. De como elas são originadas, de como se manifestam, de como os outros membros da espécie humana ditos normais têm vindo a reagir a elas ao longo dos tempos. Desde a história de uma menina, aluna num convento de freiras, que deu consigo a mudar de sexo na puberdade, a uma família cujo corpo era totalmente coberto de pêlo e que foi conservada na corte da Birmânia durante sucessivas gerações, passando pelo caso do homem que tinha uma cabeça parasitária implantada no lado direito da sua própria cabeça, este livro é um manancial de episódios incríveis, todos eles explicados pela genética e biologia molecular. Mais que relatar mutações bizarras e malformações do arco da velha, esta obra realça a importância que as modificações ocorridas na formação do ser humano possuem no desvendar do enigma da nossa própria construção. Na medida em que ninguém é igual ao seu semelhante e que o processo de criação da vida é feito de sucessos e insucessos, de heranças e erros genéticos, a premissa deste livro é afirmar que, mesmo sem manifestações visíveis, somos todos mutantes. Simplesmente magnífico!

As Fugas de Lubowitz


Manfred Sepse Lubowitz fundou os narcisicamente subordinados Manfred Mann na plenitude da Swinging London de 1963. Cedo se tornaram uma máquina de fazer êxitos sob a forma de singles derivados dos blues, em débito directo de outras bandas da City, como os Rolling Stones ou os Yardbirds. Temas directos e cantaroláveis como Do Wah Diddy Diddy, The Mighty Quinn, If You Gotta Go, Go Now ou Pretty Flamingo fizeram as delícias de muito rapaz imberbe guedelhudo e de donzelas tonitruantes no preto-e-branco da época. No entanto, provavelmente porque o estado de graça não dura para sempre, ou por não conseguir debitar mais singles gloriosos, o teclista de origem sul-africana engendrou uma forma bem mais colorida, interessante e sofisticada de mostrar a sua obra e dos seus acólitos ao mundo por volta de 1969. Após várias mudanças de line-up, eis que nascem os Manfred Mann Chapter Three. E em boa hora o fizeram, pois constituem um dos projectos mais consistentes de finais da década de 60. Bem longe da pop mais directa e engraçadinha dos inícios, este projecto põe prego a fundo no acelerador do jazz e impõe-se subrepticiamente como um dos fundadores do então embrionário rock progressivo. O seu primeiro álbum, impecavelmente intitulado Volume One, é um disco magistral. Pleno de estilo, elegância, ritmos suados e da tal sofisticação que faz com que os ingleses toquem com alma e ardor, mesmo de camisola de gola alta vestida. O genial Travelling Lady, tema que abre o álbum, principia por ser um groove nocturno comandado pelo órgão de Manfred Mann e pela voz fumarenta de Mike Hugg, até que uma secção de sopros o incendeia literalmente e o faz embarcar num idílio jazzístico, carnudo e quente, que pede cigarro atrás de cigarro. Este ambiente, de bistrot decadente, pleno de cortinas de veludo e luzes vermelhas, prossegue com Snakeskin Garter, onde o órgão insinuante e o baixo reptiliano são a base de outra canção deliciosa, embebida no jazz, que parece decorrer num tempo onde é sempre meia-noite e todas as mulheres são fatais. Imensamente contagiante, qualquer bar nocturno digno desse nome devia passar este tema, para aconchegar os corações solitários que por lá vegetam. Konekuf persiste em não nos deixar descansar, atolando-nos ainda mais na genialidade dos músicos que por aqui proliferam. Música sensual, cinemática de tão vividamente imagética, preenchida por ambiências que poderiam povoar de fleuma britânica qualquer film noir. A perfeita banda sonora nocturna, repleta de sombras intrigantes e de pecados a implorar para serem cometidos. Sometimes aclara ligeiramente as ideias, surgindo como uma bela e breve canção, em que a madrugada começa a invadir os olhos inchados e saturados de noites excessivas e a mente pede meças ao corpo por tantas horas sem dormir e orientação para onde o levar. Maliciosamente, surge o infeccioso Devil Woman e o vício retorna com força redobrada. Tema soberbamente construído, em lenta cadência felina, parece colocar uma língua feminina, intrusiva e deliciosa, na orelha do ouvinte. Não há como escapar da teia de aranha lenta e habilmente construída em torno do coração. A instrumentação é brilhante, o ambiente abrasador, imerso no jazz em lume brando e na voz distante mas sedenta. Acreditamos ser quase impossível melhorar, mas eis que chega Time para prová-lo. Mais uma brilhante canção, com uma secção de sopros irrepreensível e uma dolência soul que apetece baixar as luzes onde quer que estejamos. Há uma flauta que surge a meio do tema que serpenteia deliciosamente e aconchega de sobremaneira. E há a voz que parece debitar cada palavra de olhos entreabertos, como se nos quisesse embalar ou fazer esquecer que o mundo existe. Nova incursão pela soul surge em One Way Glass, tema de ritmo vincado e coloridos bafejos jazzísticos. Mister, You're A Better Man Than I traz o primeiro esboço assumidamente melancólico ao álbum, apresentando-se como balada fora de horas, guiada pela guitarra, com os sopros a olhar de soslaio. Ain't It Sad é uma peça solta, curta e inconsequente, um pequeno delírio dominado pelo curioso som de um apito de polícia. Tendo em conta a letra, alguém teve um comportamento menos próprio... A Study In Accuracy retoma os ambientes cinemáticos, de ruas escuras e poças de água iluminadas por candeeiros foscos. Mais Brooklyn que Whitechapel, todavia, este tema é mais um interessante exercício jazzístico, que quase parece antever o advento dos Lounge Lizards uma década mais tarde. O álbum termina com Where Am I Going, típico slow de fim de noite, quando o barman começa a limpar o balcão e se começam a varrer as beatas do chão, tema mais que apropriado para fazer cair o pano sobre esta obra mais que obrigatória. A edição em CD, datada de 1999, acrescenta diferentes versões de quatro temas do álbum. Nada que moleste, mas igualmente nada que acrescente mais à magia do que está feito.
Em 1970, surge Volume Two, derradeiro capítulo desta aventura. Nitidamente menos inspirado e entusiasmante que o seu antecessor, possui, no entanto, belíssimos momentos. A abrir, o excelente Lady Ace segue a tendência mais jazzística e solta do seu irmão mais velho. I Ain't Laughing, com a sua guitarra cristalina e a pandeireta discreta a marcar o ritmo, dá ares de psicadelismo contido, com meio sorriso a pairar-lhe no rosto. Poor Sad Sue é um blues-rock vigoroso, pintalgado a espaços por secos mas melódicos golpes de violino e cortado ao meio por golpes de free jazz que um Albert Ayler não desdenharia. Ritmos tribais africanos preenchem o magnífico mas imprevisível Jump Before You Think, cujo baixo desenha interessantes nuances e os sopros nos colocam numa incrível ambiência pré-Fela Kuti. A voz enevoada e roufenha de Mike Hugg assume preponderância no inebriante e súbito It's Good To Be Alive, canção que antecede o tema mais vincadamente progressivo dos dois álbuns, o épico Happy Being Me. Peça que se prolonga por mais de 15 minutos, é um autêntico cocktail de improvisação jazzística e melodias pop. A fechar, Virginia retoma o percurso fronteiriço entre o blues-rock e o jazz, que atinge o seu acme no órgão flamejante de Manfred Mann, para vir a ser quebrado no final pelo piano delicado e esparso do seu comparsa Mike Hugg. O final perfeito para a dupla responsável pela criação das únicas duas obras desta encarnação, que valem sempre a pena retirar do baú. A primeira, por ser um clássico. A segunda, por ser um bom complemento.

15 de outubro de 2009

Kosmische Kosmetik X

Edge Of Time, do colectivo internacional Dom é um enigma constante. Um perpétuo origami mental que forma diferentes e estranhas figuras a cada audição. Tal como as múltiplas origens da banda (um alemão, um polaco e dois húngaros), assim este álbum é uma das obras mais inclassificáveis e indecifráveis do krautrock. Hermético à primeira aproximação, Edge Of Time é um vórtice constante de sons espaciais, primitivos e maioritariamente sombrios. Penetrando a fundo na obra, esta revela-se onírica, mística, poética até.
Introitus abre o disco em dormente toada folk, muito ao estilo dos já aqui referidos Yatha Sidhra, mas com esgares de lamento. Guitarra acústica, flauta e percurssão unem-se num todo envolvente, até que o ritmo se esboroa num órgão litúrgico, entregue em sucessivos mantos de uma beleza tranquila, mas fria. No final, espírito e carne parecem fundir-se e o tema termina num misto de dissonância e improviso. Uma introdução intermitente e espectral dá início a Silence, tema possuído por uma dolência fantasmagórica, à qual não é alheia uma distante voz feminina que se projecta num misto ilusório de prazer e sofrimento. À medida que a faixa avança, as coisas tornam-se progressivamente mais estranhas e alucinogéneas. Há uma brecha a meio do tema que deixa entrar devaneios electrónicos na melhor veia de Stockhausen ou da música concreta de Pierre Schaeffer, enquanto que uma corda de guitarra é pontualmente dedilhada, como que a tentar manter contacto com a realidade. E no fim, ressurge aquele órgão, ora claro ora escuro, a seduzir como canto de sereia...
Segue-se o tema-título, que se ergue lentamente das profundezas, para se cristalizar numa serena melodia, escura como sempre, mas sem assustar. Acústica e electrónica dançam abraçadas ao longo desta peça, cadente e hipnótica, interrompida para dar lugar à récita do enigmático poema que surge integralmente transcrito na capa do álbum. Uma flauta esvai-se docemente e Edge Of Time acaba por voltar às profundezas num requiem de electrónica arcaica.
Perante o que ouvimos, não é de admirar que a faixa que encerre o álbum se intitule Dream. De novo, a música mais vanguardista e experimental funde-se com a placidez despida da guitarra clássica e da percurssão manual. Dream vagueia em transe mortiço por caminhos obscuros até ser cortada abruptamente e substituída pelo improviso visceral de um xilofone desconexo, de sons manipulados e de colagens electroacústicas, como se as imagens oníricas até agora prazenteiras resvalassem para o inominável, para o radical, para um artefacto de Dalí. Ou como se uma boa trip se transformasse numa má trip...
Os Dom, seguindo a (in)coerência de tantas outras bandas desta época, editaram apenas este álbum, que viu a luz em 1970. Aquando da sua reedição em CD em 2001, ao disco original foram agregadas cinco peças. A primeira, dividida em quatro partes e intitulada Flötenmenschen, foi gravada em 1972 e centra-se no cariz mais electrónico / experimental da banda, apresentando-se como uma sequência de drones sombrios e electroacústica atonal, invadidos a espaços por uma percurssão pungente mas longínqua. Let Me Explain 5, tema de 1998, reintroduz o grupo como entidade praticante de algo parecido com electrónica industrial, quase reminiscente dos primórdios dos Cabaret Voltaire ou dos Coil. Bem longe, assim sendo, da alucinose reflexiva dos primeiros tempos, mas não menos aconselhável.
Como epílogo, cai bem dizer que este disco consegue colocar-nos em vários estados de consciência consoante o nosso próprio estado mental no momento em que o procuramos. Pode desorientar. Pode promover deslocações mentais. Pode fazer com que nos percamos (ou encontremos...) dentro dele. Em suma, possui muito boas contra-indicações. Uma obra-prima absoluta.

13 de outubro de 2009

Kosmische Kosmetik IX

O que transparece dos instantes iniciais de Lasst uns auf die Reise Gehn, tema que abre o álbum Trips Und Traume da dupla germânica Witthüser & Westrupp, é uma ambiência pastoral, temperada por uma brisa campestre e uma instrumentação de ecos medievos. Típica balada folk, límpida e despojada, esta canção é um ténue e insuspeito indício do que está para vir. Antes de se juntar a Walter Westrupp, Bernd Witthüser tinha assinado já um disco, à margem dos territórios ocupados pelo krautrock, mui teutonicamente intitulado Lieder Von Vampiren, Nonnen Und Toten. Esta era uma obra centrada na folk acústica e no imaginário alemão mais mítico e popular, dos vampiros à encantada Floresta Negra. Trata-se de uma obra menor, mas curiosa, um bordão para deambulações rurais em climas outonais. Ao que tudo indica, o encontro entre os dois músicos tê-los-à levado, felizmente, a maus caminhos. Se, ao primeiro tema, Trips Und Traume parece seguir as pisadas do seu antecessor, a maratona herbal (ou lisérgica?) que se segue faz do disco uma das experiências mais psicadélicas que a folk terá conhecido, independemente do país de origem. Trippo Nova revela-se a partir do nome: quase se adivinha que estes rapazes, enraizados na música de pendor acústico, se dedicaram a provar algo que os fez transcender em muito os seus horizontes. A trip está indubitavelmente presente ao longo dos nove minutos desta peça, manietada por uns blues dolentes e viciantes, com solos intermitentes de guitarra acústica e uma vocalização arrastada. Lá atrás, uma voz feminina sussurra, a espaços, sem articular qualquer palavra. O sonho propaga-se em Orienta, que germina a partir de uma flauta enevoada e solitária num crescendo de cordas arabescas. Pelo meio, récitas em alemão e nuances dançantes que nos transportam para paragens orientais. Em pleno ano de 1972, esta dupla imiscui-se brilhantemente na folk mais progressiva e psicadélica e parece, nos interstícios desta peça, lançar sementes para projectos como os Dead Can Dance. Illusion I faz cair as sombras sobre nós. Tema belíssimo, envolvido por uma aura épica e nórdica, é arrepiante na melancolia que dele brota. Sentimo-nos a vaguear pelos átrios gélidos de um qualquer castelo abandonado, em que as paredes parecem respirar e em que a vida ainda se adivinha para além da decrepitude. Magnífico e intemporal...
A meditativa Karlchen é uma peça minimal e esparsa, sustida por uma guitarra a conta-gotas e uma flauta sonolenta. A voz declamatória de Renée Zucker recita qualquer coisa que parece ser interessante e abre alas a um interlúdio de sopros reminiscente dos Pink Floyd de Ummagumma ou de Atom Heart Mother. Da boa fase, pois claro... Os olhos pesam novamente e o tema retorna ao entorpecimento nos últimos minutos, pingando languidez. Segue-se a breve Englischer Walzer, tema inebriado por um piano boémio e um violino fugídio, como se tivesse a ser tocado dentro de uma caneca de cerveja. A fechar, retorna a folk de pendor mais tradicional na prazenteira Nimm doch einen Joint, mein Freund. As vozes de Witthüser & Westrupp ecoam sobre os instrumentos cem por cento acústicos, dando o toque psicadélico que percorre transversalmente este esplêndido álbum. Mais que krautrock, será talvez, e como já foi chamado, krautfolk. Trips und Traume é um disco que tem tanto de transcendental e cósmico como de apego à terra, sendo uma fonte magnífica de relaxamento, quer para viagens mentais, quer para sonhos despertos.

20 de setembro de 2009

Kosmische Kosmetik VIII

Em sentido lato, A Meditation Mass, álbum de 1974 dos obscuros Yatha Sidhra, pode ser considerado como um tema que se espraia ao longo de 40 minutos. Aliás, pode ser considerado como a única peça que este colectivo alguma vez gerou. Dividido em quatro fragmentos, A Meditation Mass é um dos melhores exemplos da kosmische musik, todo ele assente num contínuo transe hipnótico, introspectivo e dolente, criado propositadamente para deambulações mentais e para o relaxamento físico. Construído na totalidade em torno de instrumentos orgânicos e acústicos, esta poderosa pérola possui o condão de elevar o espírito para uma beatitude quase sobrenatural, graças à mestria com que os músicos se interceptam e se interligam nesse comum objectivo.
Part 1, a génese, emerge lentamente de um eco aquoso, intra-uterino, para se ordenar num contínuo magnífico de guitarra gentilmente distorcida, percurssão ritualística e flauta mágica. Um estratégico e divinal moog imiscui a levitante tonalidade cósmica no tema, que circula e lateja sem sair do mesmo sítio. A caminho do fim, a voz de Rolf Fichter acrescenta uma aura mística, nitidamente hindu, acentuando ao extremo o que já estava a ser um mergulho na espiritualidade oriental. Com o contínuo eco da guitarra a preencher a peça, e sob improvisos de xilofone e flauta, a primeira fase da meditação funde-se a Part 2. Breve mas intensa, esta segunda parte enreda-nos numa teia de baixo minimal e circular, flauta pastoral, e num, algo surpreendente mas hospitaleiro, volte face jazzístico de piano e bateria. A cadência volta ao início na peça subsequente, obviamente intitulada Part 3. Mais do mesmo, mas que sublime que é este mesmo! Aqui, a guitarra deixa de ser envergonhada e inicia uma deambulação improvisada, num tapede voador de pendor jazzístico, doseado pelo psicadelismo mais experimental. A fechar, retornam as tonalidades mais bucólicas da flauta e o subtil instrumentalismo que se abre como um mantra, mas a olhar para dentro, a fazer esquecer o mundo exterior.
A génese que viu a luz na primeira parte de A Meditation Mass reencontra-se com ela própria para encerrar o álbum, em Part 4. Regressam as ambiências orientais que se fundem com a própria folk alemã, resultando numa atmosfera única, etérea, astral e beatífica. Discos como este são como pomada Hirudoid para a alma. São impregnados de música que não força para agradar, mas que agrada porque as vibrações que emana são puras e plenas de liberdade. Retomam um elo de ligação com a natureza e a espiritualidade humanas que aparenta ser actualmente recalcado, mas que é, na sua essência, inquebrável.

14 de setembro de 2009

Contos & Prosas II


Acendeu o 27º ou o 28º Marlboro da noite. Olhou a massa humana em volta e o copo meio-vazio (ou meio-cheio?) que segurava na mão. Rodando-o lentamente, pensou que o que lhe apetecia mesmo era um moscatel roxo e não aquela mistura de vodka barata e refrigerante de limão que lhe escorregava garganta abaixo, maquinalmente. Mas não, reconsiderou, não iria fazer misturas. À sua frente, a turba saltitante formava uma ondulação trôpega na pista de dança. A música era frenética, robótica, massuda. Obnubilante mas obnóxia, de tão forçada. Ele desejou que fosse novamente 1981. Ou, melhor ainda, 2003. Do primeiro só tinha uma vaga ideia, do segundo detinha a convicção que tinha sido o melhor ano da sua vida. Em ambos, a música era a mesma, revista e actualizada. Em ambos foi livre.
Sentiu-se estranhamente incomodado pela invasão destes pensamentos. Mais ainda por dar consigo a apanhar estilhaços de oportunidades desfeitas e sonhos perdidos numa noite como esta, num lugar como este. Percorreu com o olhar a área em seu redor. Viu corpos suados, corpos despidos, corpos colados, cérebros expandidos. Viu olhares cruzarem-se com o seu e trespassarem-no como se não existisse. Viu rostos deformados por luzes intrusivas. Viu mulheres, jovens e belas, que o ignoravam e outras que o viam também. Não viu rostos conhecidos, nem farrapos de presenças de outrora. Esteve muito tempo longe? Esteve muito tempo ocupado em mudar? Era ele que estava irreconhecível? Ou era este sítio, cujas paredes pareciam agora contrair-se como um útero intumescido para o expelir?
O tempo esvai-se, escoa como o suor que transborda da pista de dança e acaba por se imiscuir nas águas do rio. Ele sobe as escadas que dão acesso ao andar de cima e dirige-se à varanda. Lá está o rio, hibernando no negrume. A música tornou-se perceptível, quase que apostaria que eram os Fischerspooner, ou, num lampejo de irracionalidade, os Suicide. Será que ainda se ouvem por aqui? Bafejada pela fresca brisa da noite, a sua mente navega em águas passadas, que não movem moínhos, mas o transportam para doces memórias. Revive um final de tarde com Maria, em que o ar entrava pelas enormes vidraças abertas e cortinas de organza turquesa prolongavam e derramavam o céu de Verão sobre eles. Lembra-se que ela pediu chá branco e ele, por óbvia insegurança no campo das tisanas, pediu chá preto. Lembra-se do suave bailado dos cabelos dela, de como cobriam e descobriam os seus olhos de amêndoa e as pequenas sardas do seu rosto. Ali ficaram a ver o sol afundar-se, ele a falar com uma eloquência que desconhecia, ela a sorrir perante o mistério das suas palavras. Voltaram para casa de combóio e deram as mãos. Nunca se beijariam.
Noutra noite, naquele exacto local, acendera um cigarro a Marta e dissera-lhe que a amava. Marta murchou como uma flor, murmurando que ele era bom demais para ela. Ele retorquira, "Devolve-me então as minhas asas de anjo para voar para longe de ti...". Com ternura e um sorriso triste, ela acariciou-lhe o rosto e voltou para o dédalo de corpos em fúria. E ele ficou a olhar as águas negras e os seus olhos também se inundaram e também ele ficou nas trevas. Agora sentia-se velho, um espantalho empoleirado numa cruz, sem pernas, logo, sem pegadas que anunciassem o seu rasto. Sentia que não tinha história, que já não sentia na pele a presença física de toda a gente importante que lhe tinha passado pela vida. Não sabia se a escolha tinha sido dele. "As coisas podiam ter sido diferentes..."
De repente, uma palmada nas costas fá-lo voltar-se. "Já pensávamos que tinhas fugido" - disse Miguel. "Onde é que te meteste? Ouve lá, estamos de saída para o Op Art. Ainda vens?"
Em lento ressurgimento do seu torpor, ele balbucia: "As coisas podiam ter sido diferentes..."
Miguel ergue as sobrancelhas e riposta: "O que estás para aí a dizer? Vá, vamos para o Op Art, que ainda devemos apanhar os Booka Shade."
"Estou a dizer que as coisas podiam ter sido diferentes. Podia estar noutro lado. Não necessariamente aqui."
Miguel denota alguma impaciência: "Mas onde querias tu estar? Nós já estamos fartos do Lux e vamos ao Op Art. Vens ou não?"
Ele olha para o relógio, que marca 04:33. Pousa o copo meio-cheio (ou meio-vazio?) no balcão, ajeita a gola da camisa e diz: "Claro. Vamos ao Op Art."

23 de agosto de 2009

Poema para S. V



Linda princesa
No paraíso forjada
Com alma de ninfa
E magia de fada
Tens o sopro da vida
Que me faz despertar
E o brilho de mil estrelas
A incandescer-te o olhar.

Anjo lindo
Que guardas o meu coração
Tão leve como uma pena
Tão pesado de paixão
Desejo que estas palavras
Vindas de quem tudo te diz
Te façam sentir como és amada
Me façam sentir como és feliz.

22 de agosto de 2009

As Fontes Pálidas e a Cabana Partida

The Pale Fountains: As Fontes Pálidas. Enamorei-me do nome mesmo antes de os ter ouvido. Lembrava-me pureza, frescura e riachos primaveris. E a música não me defraudou. Escutei-os pela primeira vez a caminho do Bairro Alto, no carro de um amigo alentejano, mas moscavidense por imposição, que detinha uma velha e passada cassette do primeiro álbum. Foi um caso de paixão à primeira audição. Desde esse altura, nunca mais os esqueci.
Os Pale Fountains nasceram para ser uma banda de culto. Tinham tudo contra eles. Na época em que lançaram o seu primeiro LP, reinavam colectivos como os urbano-depressivos Echo & The Bunnymen, os divinos mas miserabilistas Smiths e os gottico ma non troppo Cure. Os Pale Fountains pareciam ser felizes, logo, carta fora do baralho. No cinzentismo dominante, Pacific Street, o registo de estreia do grupo, injectava flashes de luz e cor, influenciados maioritariamente pelos Love, pelos Byrds e pela bossa nova, com arranjos opulentos e expressivos na melhor tradição de Burt Bacharach. Pacific Street é um álbum ímpar no panorama dos anos 80, rivalizado apenas pelo ingénuo mas loquaz You Can't Hide Your Love Forever dos Orange Juice e pela pop existencial e adolescente, imberbe mas afectada, de High Land, Hard Rain dos Aztec Camera. Enquanto a maioria das bandas britânicas se escondia dentro das suas gabardinas e aspirava os ares herméticos e fumarentos da cidade em busca da sua musa, os Pale Fountains eram seres sacrílegos, vistos a passear de canoa, envergando calções e bonés e munidos de canas de pesca.
Pacific Street é um álbum radioso e optimista, rasgado por momentos mais circunspectos e melancólicos, mas nunca soturnos. É a banda sonora de uma vida sem mácula, que nos remete para uma adolescência eterna, para uma juventude despreocupada, em que os amigos eram verdadeiros e omnipresentes e o amor era um caleidoscópio de emoções difícil de entender, mas delicioso de sentir. Um disco de idealizações e de reminiscências, de fuga e de nostalgia, com as hormonas à flor da pele. Iluminado por excelentes canções, torna-se tarefa difícil apontar pontos altos neste disco, se bem que o pôr-do-sol à beira-mar que emana de Something On My Mind e Unless mereçam destaque. A folk com laivos de soul de Southbound Excursion é igualmente assinalável, tal como a placidez primaveril e campestre de Beyond Friday's Field e a estival e exuberante You'll Start a War. O brilhante uso dos sopros, constantes e carnais, fazem de Pacific Street um disco ainda mais caloroso. Prova disso são dois breves e súbitos trechos instrumentais que arrebatam completamente pela sua genialidade: Faithful Pillow (Pts. I & II). Só o que está intuído nestas pequenas peças lindas de morrer dava para construir uma sinfonia completa.
A complementar a edição em CD desta pérola, surgem os primeiros singles gravados pela banda, e que se desviam ligeira e esteticamente da edição original. São temas mais acessíveis, possuídos pelo espectro do easy listening, via Bacharach, o que afasta ainda mais os Pale Fountains das tendências da época. Palm Of My Hand poderia ter sido cantada por Dionne Warwick e a açucarada Thank You, com a sua orquestração em cascata, poderia ter concorrido ao Festival da Eurovisão de 1982. Autênticos OVNI resplandecentes a sobrevoar a urbe negra e poluída... Os Belle & Sebastian não seriam nada se este disco não tivesse existido.
Em 1985, e em resposta à falha comercial do primeiro àlbum, os Pale Fountains regressam com uma produção menos subtil e um som mais endurecido em ...From Across The Kitchen Table. Disco mais directo, não possui a beleza tranquila do seu antecessor, revelando-se mais atrevido e musculado. A sólida e focada produção de Ian Broudie não dá muito espaço para ler nas entrelinhas, mas arrancam-se momentos memoráveis no cantarolável Jean´s Not Happening, no urgente tema-título e no ambiente frustrado de cabaret vazio de Bicycle Thieves. Mais uma vez, o disco não teve o sucesso esperado e a banda de Liverpool separou-se. O líder Michael Head formou os Shack com o seu irmão John e o fabuloso trompetista Andy Diagram juntou-se aos ainda verdinhos James.

O primeiro álbum dos Shack, editado em 1988, e intitulado Zilch, é uma obra embrionária no que haveria de ser esta banda. As influências de Michael Head continuam imutáveis, nomeadamente os Love e os obrigatórios Beatles, e a tendência para compôr melodias clássicas e intemporais, deliciosas para os ouvidos, dão os primeiros e tímidos passos neste disco praticamente esquecido. O melhor ainda estava para vir, mas tomara muitas bandas conseguirem momentos como Emergency, High Rise Low Life, I Need You ou Someone's Knocking, esta última profetizando a ascenção dos marcantes Stone Roses.
Filhos do azar, para além de serem uma excelente banda ignorada comercialmente, os Shack sofrem um enorme revés quando, após a conclusão do seu segundo LP, Waterpistol, o estúdio arde, consumindo a maior parte das bobines que o continham. Uma única cópia do resultado final do álbum foi encontrada num carro alugado pelo produtor, mas ninguém o quis destribuir. Em 1995, quatro anos depois de ser gravado, o belíssimo Waterpistol foi finalmente editado pela alemã Marina Records, falhando novamente o sucesso. E belíssimo é a palavra exacta para um disco desta qualidade, uma jóia no meio de tanta mediocridade que, amiúde, é anunciada pela histérica imprensa musical britânica como the next big thing.
Preenchido por um ambiente geral de melancolia e desencanto, apesar das melodias graciosas e cristalinas, num planeta normal, este disco deveria ser uma lição para bandas como os Oasis. Aqui está tudo o que de melhor foi feito nas últimas quatro décadas de bandas de guitarras. Love, Beatles, Byrds, Stone Roses, todos eles se encontram neste disco como num labirinto de espelhos. Neighbours consegue enveredar pelos mesmos trilhos dos Pale Fountains e, ao mesmo tempo, fazer com que nos esqueçamos deles. Time Machine é uma brilhante composição, uma canção com C grande, plena de entrega e génio. Tal como o génio que habita a sublime balada Undecided, provavelmente a melhor canção que Michael Head compôs até à data. Hazy é um belíssimo exercício em tons de country rock e Stranger uma valsa intoxicada e sonolenta. Este disco parece ter sido feito para ser ouvido naquele período em que acordámos, mas ainda nos mantemos no limbo, num misto de sonho e realidade. E foi mais um disco que passou como um fantasma pelo universo melómano dos anos 90...
Após uma tournée a acompanhar os seus ídolos Love, Michael Head fez uma pausa nos Shack em 1997, e editou em conjunto com os Strands, banda propositadamente reunida para o efeito, mais um álbum de avassaladora e genial beleza denominado The Magical World of The Strands. O disco parece ter pegado na suave faixa acústica que fecha Waterpistol, a balada London Town, e seguir esse rumo para fabricar um disco outonal e recatado, pop de câmara, como foi já denominado. Esta obra é o corolário definitivo de Head como grande escritor e intérprete de canções. A sombra de Nick Drake, o lado mais sensível de Roger McGuinn e as texturas orquestrais dos Tindersticks marulham ao longo das onze canções do álbum. Queen Matilda, Something Like You e Fontilan são canções de elevadíssimo gabarito e que merecem tudo menos o esquecimento. Mas o génio de Michael Head continuava a não ter o reconhecimento merecido e as intermitentes malhas da heroína tornam-se uma mandíbula que o aprisiona cada vez com mais força. É pertinente questionar o que leva o homem a compôr, perante tanta adversidade e indiferença...
Em 1999, os Shack editam o seu terceiro álbum e conseguem o seu, ainda que modesto, pico de sucesso. A produção é eficiente e os temas são fortes, como se o líder da banda conseguisse ainda encontrar força na adversidade e responder com canções que são positivas e autênticos testemunhos de uma vida de revéses e droga. H.M.S. Fable é mais um grande disco, não tão orgânico como os anteriores, mas que debita diversas pérolas, em hinos como Natalie's Party e Beautiful, ou harmonias magníficas como o esmagador Comedy. A aura sombria de Nick Drake ainda se sente na canção que serve de título ao álbum e Daniella encerra-o de forma arrepiante e funesta, como se Arthur Lee fosse fechado num quarto escuro com a sua guitarra acústica e só lhe permitissem sair depois de compôr uma balada acerca do assunto.
Após os primeiros raios de sol do reconhecimento massivo, os Shack voltaram a ser a banda de culto que sempre foram. Quem gosta, gosta sempre, e este grupo não defrauda as expectativas dos seus conhecedores. Here´s Tom With The Weather, o álbum que se seguiu em 2003, optou por caminhos menos concorridos, por temas mais acústicos e por tonalidades mais sóbrias e maduras, mas com todos os elementos-chave que enfeitiçam a música presentes. A brisa de bossa nova que sopra de Soldier Man e a languidez de The Girl With The Long Brown Hair tornam o disco relaxante e, ao mesmo tempo, elegante. Uma obra de irrepreensível bom gosto, muito bem composta e executada, para disfrutar como se de um bom vinho se tratasse, sem pressas e trago após trago. Realce também para Carousel, interpretada pelo mano John Head, para o rastilho melódico de Meant To Be e para a declarada homenagem aos Byrds no terno Byrds Turn To Stone.
A suculenta receita prossegue com o último álbum da banda, datado de 2006 e intitulado On The Corner Of Miles And Gil. Com um nome que funciona como óbvia piscadela de olho a Miles Davis e Gil Evans, dois monstros do jazz, o disco não é propriamente uma obra derivada do que estes músicos produziram nos anos 50. Agora e sempre, os Shack conseguem ser a banda que mais se aproxima da herança que os Love nos legou. Com a morte de Arthur Lee, isso só pode ser coisa boa. Quem aprecia música feita com paixão, mestria e sob tão nobres influências, já deve ter um cantinho do coração guardado para estes senhores de Liverpool. De qualquer forma, nunca é demais empolar a qualidade de temas tão fabulosos e cativantes como Miles Away, Tie Me Down, Cup Of Tea e Closer, a já tradicional balada que finaliza este capítulo discográfico da banda. Espero sinceramente que o próximo não tarde.
Sempre que ouço os Pale Fountains / Shack, lembro-me de como a maior das misérias ou a maior das adversidades pode ser sublimada pela arte de criar e de como isso pode fazer com que uma chance perdida se transforme numa perseverante esperança renovada. Uma banda a lembrar, outra a estimar, respeitosamente...



20 de agosto de 2009

Danças Cósmicas

Em 2005, os Subway, duo inglês composto por Michael Kirkman e Alan James lançaram um álbum de electrónica com reminiscências dos grandes vultos alemães de 70. Empty Head, assim se chamava o LP, era um laboratório de influências onde a cena Krautrock / Kosmische e os sons mais dançantes do techno de Detroit e do house de Paris se conjugavam num disco extremamente bem conseguido e onde temas como Testing ou Empty Head traziam novamente à ribalta os sons imemoriais da pioneira electrónica germânica.
Agora, em 2009, a dupla regressa com novo upgrade desta tendência e o que resulta é uma obra-prima para os amantes da música analógica, da electrónica etérea, de batidas hipnóticas e de ambientes de perfeita sedução auditiva. Subway II é uma delícia para os indefectíveis do Krautrock. É incrível ouvir alguém recuperar estas sonoridades únicas e devolvê-las onde sempre estiveram: ao futuro. Estes senhores têm os pés assentes no século XXI, mas as mentes parecem conectadas com Berlim ou Düsseldorf no ano de 1975.
O disco abre magistralmente com Persuasion, e desde logo parece que os Harmonia da melhor safra voltaram das brumas do passado para nos envolver na sua onírica teia sonora. A batida motorik e a melodia giratória e espacial, simples mas penetrante, embala-nos e eleva-nos. Segue-se Lowlife, que começa por planar e cintilar ao nosso redor como os Cluster mais atmosféricos, para então se tornar um exercício electro cerebral e lento. Simplex traz à luz reminiscências dos Neu! em velocidade de cruzeiro, apresentando-se minimal e varrida por sintetizadores arcaicos mas viciantes na melodia que debitam. O duo gravou este disco utilizando somente equipamentos analógicos clássicos como o Roland Jupiter 6, Körg MS20, Univox SR55, Roland MKS80 e o Moog Prodigy, o que acentua ainda mais a veia retro-futurista da música. A quarta faixa, que ao denominar-se Harmonia não engana ninguém, rege-se pela ausência quase total de gravidade na qual os cosmonautas sónicos Roedelius e Moebius são mestres. O som mantém-se suspenso, nebuloso, sem princípio, meio nem fim, naquilo que é uma perfeita actualização da electrónica cósmica. Wünderbar...
A tendência galáctica prossegue com Jupiter, que cruza o ambiente frio e espacial com os bleeps e as batidas maquinais, computorizadas e urbanas do techno mais vanguardista de Detroit, como o praticado por Carl Craig ou Jeff Mills. Monochrome desbrava o mesmo território, mas eleva a fasquia experimental, soltando bafuradas de melodia abstracta e orbitando irregularmente ao nosso redor. Nota-se a presença de elementos mais radicais e mentalmente comburentes, deixando marcas dos Mouse on Mars ou cinzas dos To Rococo Rot. Horizon é uma estrela cadente, bela e distante, que intriga ao rasgar o negrume, mas breve demais para contemplar. O regresso a cenários mais dançantes é retomado em Delta II, peça de disco progressivo e interplanetário, que impele estranhamente ao movimento. A terminar, Xam deixa a pairar um perfume a Kraftwerk intercruzado na perfeição com texturas house contagiantes.
Os Subway não são plagiadores, muito menos revivalistas. Tudo o que fazem é música de dança, que soa fresca e inovadora. Misturam todas as influências supracitadas e o que resulta é um composto que apela às pistas, mas que consegue ao mesmo tempo enveredar por atalhos meditativos e, em certos momentos, melancólicos. Como toda a música de qualidade, a que está guardada em Subway II é intemporal. Como todas as bandas e artistas evocados e cuja ressonância ecoa pelas faixas deste álbum, os Subway merecem ser considerados mestres da arte da electrónica cósmica e avant-garde. Uma agradabilíssima surpresa e, definitivamente, um dos melhores discos do ano.

19 de agosto de 2009

América Nazi

Foi lido com alguns anos de atraso em relação ao original. Não obstante, foi o melhor romance que li em alguns anos. A Conspiração Contra a América, de Philip Roth, narra a história do que aconteceria se, em pleno início da Segunda Guerra Mundial, o aviador Charles Lindbergh se tornasse Presidente dos Estados Unidos.
Lindbergh ficou conhecido pelas ideias isolacionistas e as suas simpatias nacional-socialistas. O que advém deste enredo é uma obra avassaladora que impressiona ao relatar uma América aliada de Hitler e manipulada pelos nazis. No centro da história, encontra-se uma família judia, que assiste atonitamente ao desenrolar dos acontecimentos, que a minam por dentro e a mudam radicalmente e para toda a vida.
Brilhante, perturbador e vívido nas imagens realistas que consegue criar, este livro é imprescindível para quem se interesse pela História do Século XX, mais concretamente por este período negro e conturbado da evolução da Humanidade.