21 de novembro de 2012

Kosmische Kosmetik XLV

A prolífica carreira a solo de Hans-Joachim Roedelius é plena de bons momentos. Mais ou menos memoráveis, mas sempre com selo de qualidade. E essa caminhada solitária teve início ainda nos tempos em   que o berlinense se movia com audácia e estilo em projectos como os Cluster e os Harmonia.
Foi entre 1973 e 1979 que as peças que compõem Selbstportrait I ganharam vida. E este disco, que deveria ser o primeiro em nome de próprio de Roedelius, acabou por nascer tardiamente, após o magnífico Durch die Wüste e de Jardin au Fou.
Selbstportrait I é o som do músico em introspecção, em relaxamento egocêntrico e despido de artifícios. Minimal, simples, melódica e beatífica, a música patente nesta obra define bem as aproximações de Roedelius à electrónica ambiental, bem mais próximas do seu ocasional colaborador Brian Eno que das texturas mais abrasivas e experimentais dos seus primórdios exploratórios.
Os instrumentos usados, maioritariamente um órgão Farfisa e um sintetizador Revox A77, conferem a Selbstportrait I uma atmosfera de pureza quase virginal e uma proximidade confessional. Música sem filtros, despojada e descarnada, guarda em si o embrião de muitos sons futuros. E quão aconchegante é deixar pensamentos e emoções fluir no suave embalo de In Liebe Dein, Arcona Girlande. Ou estimulante pintar quadros imaginários ao som de micro-sonatas electrónicas como Inselmoos,  Fabelwein ou Halmharfe. Sempre em onírica travessia até ao lullaby final de Minne.
Os auto-retratos de Roedelius continuaram a ser revisitados ao longo da sua existência musical, sendo que o oitavo volume desta série foi editado em 2002. Todos muitíssimo aconselháveis, mas nunca esquecendo que, mesmo com a sua ingenuidade e improviso, não há amor como o primeiro.

20 de novembro de 2012

Fall From Grace


Gimme Shelter é um filme documental que retrata os últimos dias da tournée dos Rolling Stones pelos Estados Unidos em 1969. Será sempre infamemente lembrado pelas ocorrências que ensombraram o Festival de Altamont e não pela música, da melhor que a banda alguma vez produziu.
Realizado pelos irmãos Albert e Davis Maysles, Gimme Shelter está impregnado das estratégias e métodos do cinema directo (ou o nome norte-americano dado ao cinéma verité), a câmara vagueando livremente e captando a verdade objectiva das imagens e do som.
Os Stones são capturados ao vivo e em estúdio, debitando clássicos como Brown Sugar, Wild Horses ou Sympathy For The Devil, assim como em episódios meio icónicos meio anedóticos que ajudaram a construir o seu mito. Mas o pináculo do documentário acontece em Altamont, evento que manchou de violência e sangue a utopia dos sixties. Concerto transformado em cenário de tensão, agressão e morte, a prestação da banda inglesa é a celebração do fim dos ideais de uma geração. Se Woodstock foi o início da ilusão, Altamont foi o início da realidade. Os Rolling Stones nunca mais seriam os mesmos e o mundo também não.



19 de novembro de 2012

Rugido Sombrio

A sorte nunca quis nada com os londrinos Sound. Uma das bandas mais talentosas surgidas no período pós-punk, esfumaram-se sem apelo nem agravo quando deveriam ter saltado para a primeira liga da música da sua época.
A subvalorização nunca foi estranha ao grupo liderado pelo torturado Adrian Borland. Jeopardy, álbum de estreia editado em 1980, era um livre cruzamento entre os ataques bombásticos dos U2 dos primórdios e a matéria mais sombria dos Joy Division. Apesar de intenso, urgente e vibrante, Jeopardy foi um flop comercial e as vénias da crítica constituíram o alento que lhes permitiu voltar à carga. E que artilharia pesada apresentaram: From The Lions Mouth, datado de 1981, para além de definir, passe a redundância, o som dos Sound, é um dos melhores e mais injustamente ignorados registos dos anos 80.
Winning dispara a primeira salva e a melodia circular, espiralada entranha-se de imediato. Fabulosa canção, provavelmente o pico artístico da banda, Winning é um manifesto de intenção. É escura, mas intrinsecamente optimista. Pontapeia a porta com estrondo e anuncia a ambição do quarteto.
Segue-se mais uma dezena de canções que levanta a fasquia dos Sound, se não acima dos seus pares, pelo menos ao seu nível. From The Lions Mouth não fica a dever absolutamente nada a obras suas contemporâneas e bastante mais laureadas, como Heaven Up Here dos Echo & The Bunnymen ou Faith dos Cure.
O espectro urbano-depressivo característico da brigada das gabardines destes anos impregna o disco, mas não o transfigura num monolito cinzento de betão armado. O som é quase sempre minimal, esquelético, mas a estrutura e a profundidade dos temas tornam-no expansivo. Os Sound voam para além das suas próprias fronteiras, pelos céus carregados de Judgement, até às profundezas glaciais do pulsante Possession. As chamas irrompem na cadente deflagração de Sense of Purpose e revelam todo o seu esplendor terrífico na frenética The Fire. A lindíssima Silent Air apazigua a urgência nervosa que ficou para trás e New Dark Age varre o disco com majestosa soturnidade.
From The Lions Mouth não vingou, apesar do culto que ainda hoje lhe é devotado. Os Sound editariam mais três álbuns antes da separação final, que lhes garantiram secreta imortalidade. Adrian Borland seguiria uma discreta carreira a solo, constituída por alguns registos sólidos mas sempre longe da aclamação universal. Terá sido essa ausência de um reconhecimento mais vasto que o fez definhar lentamente. Após anos de luta contra depressões profundas e um alcoolismo crescente, Borland suicidou-se em 1999. O som vive.