28 de maio de 2011

Eterno Retorno

É fatal como o destino. De tempos a tempos, em dias insuspeitos e horas inesperadas, estes discos voltam qual atavismo para nos possuir de novo. A trilogia berlinense de David Bowie. Ou seria melhor dizer a troika berlinense de David Bowie? Ou, pensando bem, o triunvirato berlinense de David Bowie? Todos estão errados. Somente Low e "Heroes" foram gravados nos míticos Hansa Studios da cidade alemã. Lodger foi gerado entre a Suíça e Nova York. E toda a gente séria sabe o que se passa nestas míticas criações, as suas causas e consequências. Caso não o saiba deveria estar já a ouvir os discos em ver de procurar o desfecho desta bajulação gratuita. Para ser estilhaçado pelas influências difusas dos Talking Heads, da música africana, turca e do disco-punk de Lodger. Para ser arrebatado na confluência entre os Neu!, os Kraftwerk e a visceralidade de Iggy Pop presentes em "Heroes". Para ser libertado em territórios nunca antes desbravados por um artista pop, que uniu Roxy Music a Steve Reich e Philip Glass em Low. Tudo isto em parceria quase siamesa com Brian Eno e com o pontual toque de Midas do Jimi Hendrix cerebral: Robert Fripp. David Bowie provou definitivamente nestes discos a sua capacidade genial de transmutação.
A verdade mais provável é que, quem leu até aqui com prazer, conhece estas obras na perfeição e apenas se juntou a mim na bajulação. É fatal como o destino. De tempos a tempos, em dias inesperados e horas insuspeitas, estes discos voltam qual atavismo para nos possuir de novo...


Claramente Obscuro


O rasto de mistério deixado por um disco há muito considerado perdido, esquecido ou obsoleto alimenta qualquer melómano com instintos de toupeira. Trazer de volta ao mundo dos vivos estas obras suspensas no limbo musical, bizarrias únicas e raras, e descobrir os tesouros que escondem é uma tarefa louvável e infatigável.
A arqueologia dos sons agradece aos superlativos Midlake a recuperação de muitos nomes ocultos na poeira do tempo. Nomes da folk mais obscura, da country fiel às suas raízes e do psicadelismo rural. Um homem que incorpora solidamente estas características é Bob Carpenter. Redescoberto através da exposição feita pela banda americana na excelente selecção reunida para a série Late Night Tales (mais uma, alíás, na constante consistência dos seus convidados), Carpenter é membro honorário do clube dos baladeiros que só lançaram um álbum, ignorado na altura, mas objecto de culto para quem não era nascido nessa época. Foi em 1975 que este músico canadiano editou o seu opus solitarium: Silent Passage.
Disco de grandeza humilde, Silent Passage conta com a presença da ainda emergente Emmylou Harris nas vozes. E apenas viu a luz do dia em 1984, após anos de litígio editorial que votaram Carpenter ao ostracismo. O rato de discoteca que tiver a sorte de passar por ele fortuitamente, reparará quiçá no lirismo algo fantasmagórico em tons de sépia que a capa ostenta, mas é provável que não lhe dê guarida. Afinal de contas, quem é este Bob Carpenter? Terá alguma coisa a ver com os delicodoces Carpenters? Felizmente não. O senhor é um singer-songwriter de voz rústica mas expressiva, dorida mas límpida e que compõe canções de sumptuosa sinceridade. A country music é o caule de onde os ramos se espraiam. Miracle Man e Morning Train são exemplos flagrantes, temas que carregam o peso da tradição ao mesmo tempo que roem o seu cordão umbilical. First Light e Beyond My Time poderiam formar um patchwork com as peças de psicadelismo pastoral de Jimmie Spheeris e Tom Rapp. Assombradas e acinzentadas, Gypsy Boy e Down Along The Border fazem crer que o tristemente malogrado Vic Chesnutt foi algo inspirado por este disco.
Ficam para o fim duas magníficas criações: Old Friends, um misto de country e soul muito antes dos Lambchop patentearem o invento, uma canção quente no ritmo, mas fria no trompete que a rasga solitariamente. Silent Passage, o tema-título, é incontornável. O álbum vale a pena só por ela. O génio de Bob Carpenter reside aqui, nas palavras em estado bruto, soldadas à melodia bela mas agreste. Esta curta balada merecia ombrear com as melhores canções de Bob Dylan ou Townes Van Zandt...


Do rigor da tundra canadiana para o sol da Califórnia. Ted Lucas ultimava igualmente em 1975 o seu igualmente único registo. O mesmo não tem nenhum título oficial para além do nome do músico, mas há quem lhe chame The Om Album. Apesar de não ser literalmente uma experiência mística musical em torno do som primordial budista, transcendência é coisa que não falta a esta obra, sendo que as mais recentes tendências da folk sem pára-quedas a resgataram para o panteão dos Achados. 
As influências de Lucas vão dos blues mais primitivos (Robin's Ride) às meditativas ragas indianas (estudou com Ravi Shankar e aprendeu bem a lição, como se constata em Love and Peace Raga). Mas o que este disco deixa para a posteridade é um conjunto de canções acústicas em que o psicadelismo se ouve sob a forma de folk e se sente como uma droga que só faz efeito através da escuta. É cinismo ou ingenuidade intitular uma canção It is so Nice to get Stoned? Pela forma como Ted Lucas a canta (e ela é belíssima) parece ser franqueza...
O álcool tem direito a menção honrosa logo a seguir em Sonny Boy Blues, devaneio que não saberia a azedo na pint de John Martyn. Mas são os cinco primeiros temas que dá gosto nomear, pela simplicidade magistral e quase minimal que os estrutura. Melodias circulares e economia de meios fazem de Plain and Sane and Simple Melody e Baby Where You Are perfeitas carícias no espírito. Now that I Know e I'll Find a Way to Carry it All deixam intuir a que soariam discos como Five Leaves Left de Nick Drake ou Whatevershebringswesing de Kevin Ayers caso tivessem sido concebidos e paridos na costa do Pacífico.
It's so Easy when You Know what You're Doing, canta Ted Lucas na canção que também se chama assim. Que grande verdade. O músico sabe bem o que está a fazer e por isso tudo flui tão facilmente e seduz-nos com idêntica mestria. Tal como o Om budista, estas pequenas mas adoráveis canções poderiam tocar infinitamente, que não deixariam de nos iluminar...

8 de maio de 2011

Vida Entre as Ruínas

Em 1972, antes de saírem fora de órbita com The Dark Side of The Moon e ficarem por lá, os Pink Floyd eram uma das forças criativas mais excepcionais e inovadoras deste planeta (e talvez de mais uns quantos...). Editado durante o período do superlativo álbum Meddle, Live at Pompeii é um concerto-documentário refinadíssimo e seminal.
Visualmente expansivo e impressionante, o filme entrelaça o intimismo da banda em estúdio com prestações memoráveis nas ruínas da lendária cidade devastada. Os ingleses devaneiam na beatitude mediterrânica, comem ostras, descrevem a sua música e apresentam-nos um quinto elemento da banda surpreendente e que parece não ficar indiferente ao som da harmónica. As gravações ao vivo são sublimes e panorâmicas, tornando enormes clássicos cósmicos como Set The Controls For The Heart of The Sun e A Saucerful of Secrets. O manto flutuante de Careful With That Axe, Eugene recebe igualmente tratamento majestoso.
Esta seria a última vez que veríamos os Pink Floyd tão perto. Live at Pompeii é um documento histórico por essa razão. O grupo que já era gigante passou a ser gargantuano. Até ao ponto em que se viam mais luzes e equipamento que quatro homens a tocar. Foi aí que Johnny Rotten, dos futuros Sex Pistols, saiu à rua com uma t-shirt onde se lia I Hate Pink Floyd. Veja-se este filme, ainda mais apelativo na versão Director's Cut, para relembrar uma época em que ser revolucionário era dizer I Love Pink Floyd.

7 de maio de 2011

Garage Days IV

The Psychedelic Sounds of the 13th Floor Elevators é um dos álbuns mais influentes da história do rock. Colocado na bebida dos E.U.A. no longínquo ano de 1966, foi uma das primeiras obras (e obras-primas) a acidificar a música da nação. Roky Erickson, o líder do bando, é ainda hoje visto por muitos como o pai do rock psicadélico. Para além do inequívoco génio musical, Erickson possui uma história de vida no mínimo exótica, o que resultou numa aura mítica e na sua transformação em personagem de culto. Diagnosticado com esquizofrenia paranóide nos finais dos anos 60, o abuso de substâncias que alteram a consciência não ajudou, e o músico passou temporadas entre a prisão e o hospital psiquiátrico. Actualmente vive dias mais pacatos (domesticados?), havendo um período em que chegou a afirmar que o seu corpo era habitado por um marciano, o que motivava a sua perseguição pelos humanos...
Mas concentremo-nos em The Psychedelic Sounds (...). O que transparece logo à primeira audição é um disco feito por uma banda de garagem. O som é crú, directo, composto por melodias fortes mas sem rodriguinhos. É a entrega desses elementos que faz toda a diferença e que coloca a música num patamar lisérgico. Erickson é intoxicante durante todo o registo e a sua voz parece partir-se em estilhaços, tal como o seu estado mental. A guitarra de Steve Sutherland é a base do disco, serpenteando por cavernas de blues sombrios e redondilhos de rock hipnótico. O som mais distinto do disco terá de ser o amplified jug de Tommy Hall: um jarro feito de cerâmica, que o músico coloca perto da boca sem nunca tocar com os lábios. Os movimentos bucais e a voz fazem o resto. O efeito é mais ou menos como se a nossa cabeça fosse feita de vidro e tivesse um enxame de abelhas lá preso. E a sensação de estranheza e loucura instala-se.
Este clássico dos 13th Floor Elevators é um delicatessen psicadélico do princípio ao fim. Já foi reeditado em várias ocasiões, mas os 11 temas da edição original chegam e sobram para o culto. O poder e o génio de You Don't Know (How Young You Are), Reverberation, Rollercoaster, I've Seen Your Face Before (Splash 1) e You're Gonna Miss Me permanece intacto e flamejante após décadas. Sem estes texanos nunca teriam existido instituições como Screamadelica dos Primal Scream, The Jesus & Mary Chain ou os verdadeiros herdeiros da banda, os fabulosos e inesquecíveis Spacemen 3. Entretanto, o disco acabou. Acho que vou ouvi-lo outra vez...

6 de maio de 2011

Muito Barulho

No rescaldo da Troika e na ressaca do descalabro benfiquista, nada como desanuviar em direcção a novos horizontes... Uma das novidades mais recentes e interessantes da Internet dá pelo nome de Noisey. Esta plataforma pretende ser espaço de divulgação da nova música que se faz em mais de uma dezena de países e cuja prematuridade e falta de meios não permitem uma exposição mais abrangente e onerosa.
O Noisey apresenta-se como um local de descoberta e exploração. Coloca à disposição de qualquer internauta melómano concertos e pequenos documentários de bandas e artistas periféricos ou praticamente desconhecidos. Todo o material exposto é original.
Muito do futuro da divulgação musical e do entretenimento digital passam por esta lufada de ar fresco, que transcende fronteiras e é verdadeiramente comunal. Um marco da nova cultura alternativa do século XXI, acessível a partir daqui.

3 de maio de 2011

Die Pioniere

A génese e o desenvolvimento da música electrónica devem-se massivamente às explorações revolucionárias e inovadoras iniciadas na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. De todos os elementos que contribuiram para que as novas linguagens electrónicas deixassem de ser experiências de laboratório e se aventurassem rumo ao mainstream, os Kraftwerk foram os mais visíveis. Da obscuridade ao estrelato e ao reconhecimento pelos seus pares e pela crítica da imensa influência exercida, a história dos homens-máquina de Düsseldorf é nada menos que fascinante.
O documentário (não oficial) de 2008 Kraftwerk and The Electronic Revolution é uma excelente adição ao universo do grupo. Para além de seguir a par e passo a evolução da banda, apresenta em paralelo outros nomes que se tornaram igualmente instituições da electrónica global. Os comentários são assegurados por sumidades jornalísticas como Mark Prendergast e David Stubbs e pioneiros lendários como Klaus Schulze e Conrad Schnitzler. Os dados estão lançados para três horas absorventes de mitologia musical. Deixem-se levar...


Watch Kraftwerk and the Electronic Revolution in Electronic | View More Free Videos Online at Veoh.com

2 de maio de 2011

Maldito Scott Walker

Noel Scott Engel precipita-se em queda livre a partir do lado B de 'Till The Band Comes In, o seu quinto álbum oficial de 1970 sob o pseudónimo Scott Walker. Até então, o crooner que estudou canto gregoriano e foi poster boy dos massivos Walker Brothers, deixava por onde passava um rasto de perfume tão charmoso quanto sombrio. Os seus quatro primeiros álbuns a solo são intocáveis. A espaços, e com 40 anos de distância a delimitar a sua concepção, Scott I e II apresentam arranjos desmesurados e orquestrações inusitadas. Mas guardam aquela voz que não é deste mundo e canções comparáveis a abismos profundos e impossíveis de esquecer a quem lá se deixa cair. Scott Walker poderia ser o filho bastardo de Jacques Brel e Juliette Grèco, nascido na América e apadrinhado por Sartre e Beauvoir para espalhar o existencialismo sob a forma de bruxuleantes torch songs. Scott III e IV adensam a matéria de que são feitos os pesadelos e são dois dos mais belos e terríficos discos do século XX. Em 1970, Walker é um artista reverenciado mas que vende pouco. Toma o partido da arte e deixa os departamentos de marketing com os nervos em franja. O rapaz que provocava desmaios quando cantava The Sun Ain't Gonna Shine Anymore é agora um homem reclusivo que prefere ler Camus e Freud e ver filmes de Bergman a aparecer em festas e sentar ao colo groupies extasiadas.
O comportamento esquizóide e o desinvestimento nas actividades artísticas mundanas arrastaram Walker como uma enxurrada a partir de 1970. A vida errante tomou o lugar do estrelato e instalou-se um período (conforme as palavras do próprio no magnífico documentário 30th Century Man) assente em a whole lotta drinkin'...


A travessia no deserto encetada por Scott Walker a solo entre 1970 e o renascimento criativo de Climate of Hunter (1984) deu azo a quatro discos tão repulsivos como fascinantes. Quatro discos que não possuem uma única composição do cantor, mas que detêm uma estranha aura de charme decadente, como se um homem que não soubesse fazer mais nada sem ser cantar se arrastasse ao longo da escuridão em busca de uma luz que tarda em aparecer. A primeira dessas obras intitula-se The Moviegoer e data de 1972. Como o próprio nome indica, é construída a partir de interpretações de temas de filmes e de compositores variados como Nino Rota, Henry Mancini ou Lalo Schifrin. Não deixa de ser particularmente bizarro ouvir Walker cantar Speak Softly Love de Rota (o universalmente conhecido tema de The Godfather)...
This Way Mary (de John Barry e Don Black), The Ballad of Sacco and Vanzetti (de Joan Baez e Ennio Morricone) e Glory Road (de Neil Diamond) resultam bem na entrega crooner do cantor e os restantes temas enquadram-se na perfeição num singles bar mal iluminado e fumarento, povoado apenas por almas solitárias a altas horas da noite, que procuram aconchego na voz de outra alma solitária. Ou no tempo de espera para a última sessão numa sala de cinema vazia...


Da noite vazia e do anonimato cinéfilo aos bares de hotel ou de cruzeiros, nunca a decadência de Scott Walker foi tão acentuada como em Any Day Now (1973). Las Vegas e o lado mais doentio dos seus casinos e casas de espectáculos transborda em catadupa deste disco. Os ambientes continuam nocturnos como sempre, mas desta vez demasiado sacarinos e feitos para agradar a adeptos de música papel de parede que jogam blackjack e casais envelhecidos americanos unidos em Vegas por Elvis pela terceira vez. Há um charme depressivo neste disco, que lembra Burt Bacharach no seu melhor e Paul Anka no seu pior. A voz continua única, como sempre, mas poucas canções o livram da mediania: Ain't no Sunshine, When You Get Right Down to It, If Ships Were Made to Sail... O verdadeiro momento twilight zone é a versão de Maria Bethânia de Caetano Veloso. Scott Walker de camisa às flores e chapéu de palha? Não, Scott Walker a cumprir contrato...



O calvário das obras negligenciadas prolonga-se nos álbuns de 1973 e 1974, Stretch e We Had It All. O ideal é considerar estas obras em regime dois em um, tal como a edição definitiva em CD levada a cabo pela BGO em 1997. Desta feita, Walker atira-se largamente à música country e destila duas dezenas de temas mais ou menos obscuros desta cartilha. Mas não se espere daqui um rastilho do que viria a ser o alternative country ou uma cavalgada em pradarias outlaw country. Incompreensivelmente, e com tanto bom material por onde escolher, o cantor parece ser mais fiel ao espírito meloso e conservador de Nashville. As interpretações são polidas e orquestradas e alguns dos músicos alvos da leitura de Walker são creditados songwriters americanos (Mickey Newbury, Billy Joe Shaver, Randy Newman). Sunshine, Just One Smile, That's How I Got to Memphis, a cadência R & B de Use Me e a típica balada country Old Five Dimers Like Me são agradáveis, mas nunca memoráveis. Faltam nervo, risco e génio ao homem que compôs canções imortais como Plastic Palace People, It's Raining Today ou Duchess.

Em 1975, os Walker Brothers reunir-se-iam e desse regresso brotariam três discos. Scott voltou a ter um fugaz protagonismo. Mas era tarde demais para ser aquilo que nunca quis ser: uma estrela pop. Voltou a solo em 1984, reinventando-se magistralmente e, desde então, presenteou-nos apenas com mais duas aparições. Tremendas e perturbantes, como o génio reclusivo que as molda e que, apesar de já não provocar histeria nas adolescentes, provoca calafrios e penetra fundo nas almas de gente crescida. Os quatro discos acima descritos são apenas obrigatórios para os obsessivos. É um trabalho sujo falar sobre eles, mas alguém tem de o fazer. A restante obra de Scott Walker é obrigatória para quem precisa de música bela e única como de ar para respirar.