30 de janeiro de 2011

La Blogothèque


La Blogothèque tem vindo a mostrar novas formas de ver música e da música ser vista. Criada pelo cineasta independente francês Vincent Moon, esta iniciativa pretende despojar as bandas e os artistas dos adereços e do supérfluo, mostrando as raízes da música e os seus intervenientes num trapézio sem rede. Sediada em Paris, La Blogothèque tem-se caracterizado pelos seus vídeos simples mas poéticos, de um romantismo a que só o cinema de autor pode almejar. O imprevisto domina, muitas vezes, as actuações e a sua captação. Os chamados Concerts à Emporter ou Take Away Shows podem ocorrer em cafés, bares, ou em plena rua. Nada é ensaiado nem arquitectado, projecta-se apenas a emoção do momento e a limpidez desmascarada do som. São mais de uma centena, os actos presentes no site de La Blogothèque. Actos que se renderam a este formato e que são tão variados e consagrados como R.E.M. ou Sigur Rós.
O exemplo abaixo caracteriza na perfeição a estética desde projecto. Uma belíssima canção num espaço público, que lhe acentua ainda mais o sentimento de desejo e solidão. Encontro perfeito entre a excelência do músico e inventividade da filmagem...

Ponto de Fusão

In a Silent Way ocupa um lugar peculiar na interminável discografia de Miles Davis. Arrumado entre os indícios de fusão de Filles de Kilimanjaro e o monumental Bitches Brew, este álbum de 1969 pode ser reconhecido como o primeiro disco eléctrico do maior trompetista de jazz de todos os tempos.
É uma obra discreta, nocturna e algo misteriosa. Arrasta consigo um luar majestoso e uma aura de film noir. Possui a estrutura de uma sinfonia clássica, com os seus dois temas subdivididos em 3 movimentos cada, ouve-se como um disco de rock progressivo e sente-se como um disco de jazz. Parece confuso, mas quando chegamos a It's About Time, segundo movimento da circular In a Silent Way, tudo se conjuga com uma limpidez ofuscante. Piano eléctrico, guitarra eléctrica, órgão, trompete, baixo e bateria fundem-se, complementam-se, afastam-se e enlaçam-se, soprando-nos ao ouvido que estamos perante a mais bela abstracção musical que foi inventada. Algo intemporal e indefinido, mas que não apetece parar de ouvir, tal como olhar para um quadro de Jackson Pollock e não tentar explicar. Antes disso, embrenhámo-nos na cinemática e hipnótica Shhh/Peaceful, peça que se move como um felino na noite, deslizando pelas sombras como a trompete de Miles e sempre de atalaia como os címbalos incessantemente varridos de Tony Williams. É música pintada de negro e azul, quente e sensual, uma especiaria sonora.
In a Silent Way é um disco para ser ouvido do princípio ao fim, sem interrupções que quebrem a espiral do seu círculo e o feitiço que conjura. O seu ecletismo transforma-o num disco para noites solitárias, para um whisky à média-luz, ou para fazer ressoar como seda em íntima cumplicidade. A partir daqui, já não sabemos se podemos continuar a chamar jazz à arte de Miles Davis. Sabemos, isso sim, que se seguiu uma imensidade de música genial, única e pioneira. Acólitos fiéis como Jaga Jazzist ou Cinematic Orchestra ainda andam por aí a comprová-lo...

A Persistência da Memória

O fenómeno rotulado de Hypnagogic Pop parece estar longe de se esgotar. Já dissecado neste espaço há alguns meses, parece manter uma inesperada relevância na cultura alternativa. A própria revista online Pitchfork, uma das mais influentes e interessantes publicações musicais do presente, criou um site paralelo que, praticamente, investe tudo neste movimento. Denomina-se Altered Zones e está pejado de imagética retro, referências culturais kitsch dos anos 80 - da música à ficção científica - e de projectos que dão os primeiros passos dentro de um género tão experimental e underground como estranhamente familiar. Parecem terem voltado as edições em cassette e CD-R, repletas de sons saídos do subconsciente como esqueletos coloridos do armário. A maioria desses projectos assenta num regime forçado DIY, é charmosamente artesanal e é tão futurista que parece termos chegado ao século XXV de Buck Rogers e à sua verdadeira banda-sonora original. Esta influência primitiva, ou o uso de estéticas e de ferramentas do passado para desenhar a música do futuro, tem-se espalhado por vários géneros, sendo que a música electrónica e o hip-hop são as mais contaminadas neste momento. Vale a pena estar atento a projectos como Stellar Om Source, Innercity ou Hype Williams, pois nunca se sabe se uma parte do devir não estará nas suas mãos embrionárias... Entretanto, nunca é demais relembrar dois actos que transitam directamente do sonho diurno hipnagógico e que editaram dois dos melhores discos de 2010: Os Rangers e a sua sonoridade algures entre o cinzentismo suburbano e a luminosidade do mainstream dos anos 80 e o regresso aos paraísos estivais da adolescência de Ariel Pink's Haunted Graffiti. Recordar é viver, já dizia Vítor Espadinha, um possível alvo de samplagem numa possível hipnagogia lusa..



18 de janeiro de 2011

Kosmische Erbe


Eis o Atlas ilustrado da Kosmische Musik. Um livro faustoso, prolífico em fotografias, enciclopédico na informação. Krautrock: Cosmic Rock and its Legacy será, para os amantes deste revolucionário e influente género musical alemão, o equivalente à caderneta de cromos preferida da infância. Está tudo lá. As bandas mais representativas, o lado mais obscuro, os discos mais celebrados e as raridades. Profusamente ilustrado, o livro traça pequenas biografias preenchidas por um festim de imagens para os olhos. Não esqueçamos que muito do krautrock foi igualmente marcante e pioneiro a nível visual, nomeadamente ao nível das capas dos álbuns e da estética dos seus actos. Do estilo hippy fortemente psicadélico dos Amon Düul à imagem sucessivamente expressionista e construtivista dos Kraftwerk, muitos são os arquivos históricos encontrados nesta obra. Posters, flyers de concertos e a mais variada memorabilia encontram-se igualmente expostos. A prosa é assegurada por algumas referências da escrita musical, tais como David Stubbs, David Keenan ou Erik Davis. Ao longo de 200 páginas, espraia-se um belíssimo compêndio da génese, evolução e legado de alguma da mais arrojada e original música do século XX. Ainda não o vi em Portugal. Consegui adquiri-lo em Trafalgar Square e a melhor expressão que encontro para o definir não é germanófila, mas anglófila: THE MOTHERLODE...

15 de janeiro de 2011

Bardo Louco

Compositor e intérprete de eleição para os praticantes e entusiastas da folk mais desviante da actualidade, Roy Harper carregava já o peso de quatro álbuns no momento da edição de Stormcock, em 1971.
A sua obra, erigida desde 1966, assentava em canções folk puras e duras, contaminadas não raras vezes pela electricidade do rock. Os discos lançados até essa altura não podem ser apelidados de geniais, valendo mais por composições individuais que, aqui e ali, surpreendem e encantam, que pelo seu todo. Another Day, por exemplo, constante do seu quarto álbum, Flat Baroque and Berserk, emerge do nada e arrebata-nos como uma das baladas mais etéreas e absurdamente belas que a folk britânica alguma vez ofereceu.
Tido como personagem um pouco excêntrica e lunática, Harper chegou a ser homenageado pelos admiradores e amigos Led Zeppelin no tema Hats Off to (Roy) Harper, algo estranho e raro para um homem que preza a guitarra acústica mais que tudo.
É esse sentimento de desprendimento do real e do concreto, de favorecimento do sonho e das possibilidades da experimentação, que povoa Stormcock. O mesmo é composto por apenas quatro peças, extensas, inventivas e surpreendentemente arty. O cantor apresenta-se sozinho à guitarra a maior parte do tempo, fazendo apenas uso pontual de um Hammond espectral, de uma segunda guitarra e de subtis orquestrações. As canções, gentis, suaves e oníricas, fluem como nuvens, como as águas calmas de um rio, ricas em variações de tom e emoção, dominadas por uma incrível mas tranquila mestria das seis cordas e pela entrega poética da voz. Podemos chamar a The Same Old Rock e a Me and My Woman folk progressiva ou folk esotérica, pois a música expande-se e expande-nos, parecendo saída de um plano irreal, algures entre o medieval e o místico. Igualmente inspiradas e poderosas são Hors d' Oeuvres e One Man Rock'n'Roll Band. O tempo estica e encolhe ao sabor das cordas da guitarra e da dolência algo narcótica da voz, ambas a susterem o nosso peso até que a sensação de gravidade se perca, para que partamos livres de amarras nesta ímpar travessia musical. 
Joanna Newsom, Devendra Banhart, The Sunburned Hand of The Man, todos devem algo a Roy Harper e a Stormcock. O título do álbum evoca um pássaro inglês, que costuma fazer ouvir o seu canto de lugares cimeiros, geralmente quando está mau tempo ou durante a noite. E esta será, indubitavelmente, a melhor descrição de Roy Harper neste disco de excelência. Para ouvidos curiosos, corajosos e com tempo a perder para se perderem nos meandros desta densa floresta de sons.

Grand Lee


Barton Lee Hazlewood deu um bigode a muitos dos compositores da música popular do século XX. Aliás, o seu gosto por pilosidades acima do lábio superior é lendária. Estéticas masculinas à parte, este cantautor do Oklahoma foi um enorme artesão de sons, um nome que deve figurar eternamente no panteão dos grandes nomes da música norte-americana. Os seus primeiros passos nas lides sonoras iniciaram-se em meados dos anos 50, mas foi nos anos 60 que Lee Hazlewood (o Barton ficou pelo caminho...) se assumiu como compositor e produtor de referência e de excelência. Aliás, a sua discografia pode ser dividida em três décadas distintas, cada uma explorando um pouco o espírito da sua época, mas ao mesmo tempo intemporais em termos artísticos...

The Sixties Lee

É a década em que vários estilos começam a ser explorados. Rock, CountryEasy Listening e algum Jazz aparecem isoladamente ou em amálgama, encimados por uma poesia irónica e inteligente, que domina quer os momentos mais espirituosos, quer os mais doridos. Hazlewood apresenta-se como um crooner contador de histórias e discos como Trouble is a Lonesome Town, The Very Special World of Lee Hazlewood ou The N.S.V.I.P., funcionam como relatos da vida numa América mais ou menos profunda, mais ou menos surreal, da qual Hazlewood é observador acutilante.
No entanto, o trabalho mais considerado nesta era foi conseguido com Nancy Sinatra, filha do Mr. Ol' Blue Eyes. Por mais que os discos a solo do compositor produzidos nos anos 60 sejam reverenciados, Nancy & Lee é o álbum trademark e clássicos imortais como These Boots Were Made For Walking, Summer Wine ou Some Velvet Morning são motivo de veneração e revisitação até aos dias de hoje por gente tão díspar como Primal Scream, Nick Cave ou Gry...



The Seventies Lee

Os anos 70 albergam os grandes clássicos de Lee Hazlewood. Aqueles em que a escrita amadureceu e se tornou mais agridoce, mais penetrante, mas ainda acessível a todos os corações vagabundos do mundo. As canções transformam-se num híbrido entre o outlaw country e um easy listening kitsch, mas irresistível, povoado, por vezes, por orquestrações cinemáticas. Quatro álbuns desta década são absolutamente incontornáveis. Sem qualquer respeito pela sua ordem cronológica, eles são: Poet, Fool or Bum, 13, Cowboy in Sweden e Requiem for an Almost Lady. Se alguém só tiver espaço ou tempo para dois discos de Lee Hazlewood, pois que sejam estas últimas obras-primas. Requiem for an Almost Lady é um dos melhores discos de canções de amor de que há memória. Com dez temas em menos de meia-hora de duração, debita paixão, ternura, saudade e amargura magistralmente. É crú, directo e rasteiro, como quem ama sem defesas nem máscaras. E guarda canções belíssimas, com direito a introduções filosóficas, como I'm Glad I Never, If It's Monday MorningWon't You Tell Your Dreams ou Come on Home to Me.
Cowboy in Sweden é um dos melhores discos de country rock psicadélico conhecidos. Um misto de guitarras acústicas, orquestra e inebriantes vozes femininas, que serviu de muleta a um programa televisivo sueco do mesmo nome. Absorvente e poderoso do princípio ao fim, este western spaghetti escandinavo pode muito bem ser o culminar artístico de Lee Hazlewood. A atmosfera é onírica e cinemática, procurando e conseguindo revolver e alterar consciências, o que consegue perfeitamente em momentos como Leather & Lace, Easy and Me e What's More I don't Need Her. Há ainda lugar para uma das melhores canções de sempre do músico (o genial The Night Before) e, sempre, para as senhoras brilharem. Nina Lizell e Suzi Jane Hokom derretem corações em For a Day Like Today e numa versão arrepiante e sombria de um tema folk sueco de nome Vem Kan Segla (em inglês, Who can Sail). É sobejamente conhecido o fetiche escandinavo por música de raízes country, e Lee Hazlewood foi um dos nomes mais amados de sempre na península setentrional. Aqui vai uma relíquia da TV sueca, em dueto com uma estrela da época - Siw Malmkvist. Pergunte-se a Stuart Staples dos Tindersticks onde foi buscar inspiração para duetos como Travelling Light ou Buried Bones e não será difícil adivinhar a resposta. E o bigode lá continua, tão azeiteiro quanto respeitável. Será que Fernando Chalana era fã?




The 21st Century Lee

Sagazmente, ou porque lhe apeteceu, Lee Hazlewood desapareceu durante a década de 80 e a maior parte da década de 90. Fez bem, não eram tempos para ele. Mas como todas as coisas grandes projectam sombra mesmo sem a sua presença, assim o barítono do Oklahoma se guardou até que as influências o impelissem à derradeira investida. O homem que regressa em boa forma em 1999, com um disco intitulado Farmisht, Flatulence, Origami, ARF!!! & Me..., é alguém muito confortável na sua pele. Alguém que sabe o que deu e o que lhe é exigido nesta altura do campeonato. Apresenta-se com um disco blasé e descontraído, de clássicos jazzísticos, apropriado para ouvir on the porch numa tarde de Primavera. O tempo que lhe resta é devotado a entrevistas e alguns concertos ao vivo. Pelo meio, um fabuloso disco, algures entre o açucarado e o amargo (For Every Solution There's a Problem - 2002) e a terceira e última colaboração com Nancy Sinatra (2004). Em 2006, após ter conhecimento de padecer de cancro renal, Hazlewood não deixa de fumar e grava a sua última obra, Cake or Death. É um disco mais que meritório, forte na generalidade e, como é habitual, vincadamente irónico. Gravado por um senhor de 77 anos, detém momentos de mais frescura e jovialidade que muitos artistas com 1/3 da sua idade. O toque de Midas ainda atinge Please Come to Boston, It's Nothing to Me ou a última das últimas, T.O.M. (The Old Man).
Barton Lee Hazlewood faleceu a 4 de Agosto de 2007. Viveu uma vida cheia, à sua maneira. E deixou tanta música e de tanta qualidade, que faz parte do batalhão dos eternos.

14 de janeiro de 2011

Harmonia Mundi


A discografia dos alemães Harmonia é feita de duas obras seminais, uma parceria inspirada e um álbum de culto gravado ao vivo. Muitas vezes, e com alguma sensatez, definidos como o supergrupo do krautrock, este trio é um dos pilares mais sólidos da sustentação deste género nos idos anos 70. Michael Rother (dos Neu!) congregou-se a Hans-Joachim Roedelius e Dieter Moebius (os Cluster) na Alemanha rural, desenvolvendo um estúdio e reunindo material sonoro. A primeira exposição criativa do grupo data de 1974 e intitula-se Musik von Harmonia. É notória a convergência entre as esparsas e abstractas paisagens ambientais dos Cluster e os ritmos mecânicos e deambulantes dos Neu!. No seu todo, o disco é uma experiência sensorial soberba e desafiante, construída em torno de electrónica arcaica e à base de uma economia de meios que o transforma num objecto ainda mais charmoso e intrigante. A música diverge, faixa após faixa, entre o minimalismo hipnótico (Watussi, Sonnenschein), o vácuo ambiental (Sehr Kosmisch, Ohrwurm) e o robótico motorik (Dino, Veterano). Ahoi! é um devaneio beatífico em órbita lunar e a profética Hausmusik encerra o circuito em toada de música de câmara cibernética. Extremamente vanguardista, criativo e visionário para a época, Musik von Harmonia deve ser entendido como um facho que ilumina de forma ténue, mas perene, os desenvolvimentos electrónicos mais inteligentes que estavam para vir.


À boa maneira germânica, para suceder a uma obra-prima, nada como fabricar outra. No absolutamente fabuloso Deluxe, editado em 1975, perfeccionismo e disciplina não faltam. Mas, em relação ao seu antecessor, a música é mais ampla, mais bombástica, o som enche-se de luz e ofusca-nos com a intensidade do seu brilho. Para além de ser um dos melhores temas de sempre da kosmische musik, a peça que abre o disco - Deluxe (Immer Wieder) - é um rasgo de génio e uma espiral interminável de energia melódica. Uma fonte de alegria inesgotável! Walky-Talky prossegue o deslumbramento, ao longo de uma marcha circular, faseada pela guitarra em cascata e pela electrónica subversiva. Desta feita transformados em quarteto, os Harmonia demonstram muito bem neste tema que a inclusão do baterista Mani Neumeier (dos Guru Guru) foi mais que acertada. O senhor é um aristocrata do ritmo. Segue-se novo golpe de génio com a viagem alucinante de Monza (Rauf und Runter). É o tema mais enérgico da história da banda, um cruzamento entre o proto-punk e a compulsão motorik, muito ao estilo do que se encontra em Neu!75. Apetece pegar no carro e acelerar vertiginosamente numa estrada deserta, rumo a nada...
Notre Dame pára para recuperar o fôlego e fá-lo em torno de sintetizadores etéreos e ritmos que apenas roçam a pele. Gollum, excelente como tudo até aqui, desbrava território mais denso e sombrio, num tenso e sincopado avanço, talvez fixado no Anel que o domina (convém lembrar que esta gente era muito apreciadora do imaginário de Tolkien...). E, no final, chega Kekse, melodia de embalar, cristalina e intra-uterina. O som definha lentamente, até imperar um estranho silêncio que parece prometer mais qualquer coisa, mas que nada devolve. Mais um disco que ninguém ouviu na altura devida, mas que continua a ser uma fonte de prazer e descoberta para quem o conhece hoje.


O olho de falcão de Brian Eno não deixou de capturar a inventividade e o brilhantismo do projecto alemão. Eno chegou até a nomear os Harmonia the world's most important rock band em meados dos anos 70. A admiração e a cumplicidade artística culminaram num álbum em colaboração. O mesmo é conhecido como Tracks and Traces, data de 1976 e é, naturalmente, soberbo. Importa aqui realçar a reedição que teve lugar em 2009 e que, para além de manter os temas originais, adicionou-lhe mais três extras de fino recorte. Num disco pensado e executado por quatro sumidades da música moderna, a totalidade dos temas é inexcedível. Sobressaem, porventura, a placidez atmosférica e algo nostálgica de Welcome, a planante e contemplativa Almost, ou as longas deambulações meditativas e improvisadas de Sometimes in Autumn e By the Riverside. Mas Weird Dream é um belo pedaço de electrónica cósmica, assim como Les Demoiselles é um momento onírico de electrónica naïf. Luneburg Heat é o único tema vocalizado (por Eno) e estende a passadeira para a estrutura das suas futuras colaborações com Roedelius e Moebius.
O elo quebrou-se após a edição de Tracks & Traces, com cada membro do colectivo a enveredar por outros projectos ou a voltar a territórios familiares. Pontuais colaborações entre eles viriam a surgir, mas nada com o peso e a lenda do nome Harmonia.


Mais de 20 anos depois, e em plena redescoberta dos sons da kosmische musik, vem à tona um álbum perdido, uma gravação ao vivo de 1974. É o som dos Harmonia no seu mais primitivo, vanguardista e cerebral. O disco arrasta-se, sonâmbulo e estático, ao longo de cinco magistrais peças, num balanço perfeito entre melodias espectrais e frias e o puro gozo da experimentação. Realce para a tríade Schaumburg, Veteranissimo e Holta-Polta, que excedem os dez minutos de duração, espraiando-se num serpentear electrónico, rumo a uma lenta e perseverante conquista mental. Ainda e sempre, sons que não são deste mundo, únicos e estranhos como tudo o que ultrapassa as convenções.
Aqui estão quatro discos a ter e a estimar. Quatro obras à parte, detentoras de uma linguagem própria, fora dos parâmetros definidos pelas estéticas anglo-saxónicas e norte-americanas. E, quando a estética é tão sensaborona que tudo parece igual, nada como ouvir o que não se parece com nada...