28 de dezembro de 2017

2017: A Soundtrack

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Mais um ano que termina, mais uma volta na Geringonça, que sacou da cartola um presidente do Eurogrupo. Num país ardido e traumatizado, valeu a chama imensa do Sport Lisboa e Benfica, que conquistou um inédito tetracampeonato. Lá fora, nostalgias da Guerra Fria no Paralelo 38 e um presidente norte-americano cujo cabelo muda de cor. Uma mistura que não augura nada de bom.
A música, essa, foi sempre a mesma. Mas também foi outra. Os LCD Soundsystem causaram polémica com um regresso prematuro, mas provaram que James Murphy nunca devia ter desistido da ideia. American Dream é a prova concludente que o projecto nova-iorquino continua a ser uma das máquinas musicais mais interessantes, pertinentes e influentes do século XXI. De saudar igualmente o regresso em belíssima forma dos seminais Slowdive, cujo álbum homónimo constituiu uma das surpresas mais sólidas e agradáveis do ano discográfico. Os National deram um golpe de rins e lançaram-se a mares nunca dantes navegados. O sétimo álbum do grupo é a mais exigente e experimental das suas obras, mas igualmente a mais entranhável e recompensadora. Björk continua a produzir sons que não parecem ser deste mundo, motivo pelo qual os nossos corações devem regozijar-se. Kendrick Lamar assinou um dos melhores discos de Rap que há memória, um trabalho assombroso, ao qual é impossível ficar indiferente e que torna o género ainda mais transversal.
2017 foi, assim, um ano de muita, variada e inspirada oferta musical. A lista que se segue foi a que mais me acompanhou e inspirou.



1. LCD Soundsystem - American Dream

2. The National - Sleep Well Beast

3. Kendrick Lamar - DAMN.

4. The War on Drugs - A Deeper Understanding

5. Slowdive - Slowdive

6. Mount Eerie - A Crow Looked At Me

7. St. Vincent - Masseduction

8. Björk - Utopia

9. Lorde - Melodrama

10. SZA - CTRL
  
11. Fever Ray - Plunge
       
12. Arca - Arca

13. Jlin - Black Origami

14. Perfume Genius - No Shape

15. Father John Misty - Pure Comedy

16. Richard Dawson - Peasant

17. Kelela - Take Me Apart

18. Vince Staples - Big Fish Theory

19. King Krule - The OOZ

20. Thundercat - Drunk

21. Brand New - Science Fiction

22. Cigarettes After Sex - Cigarettes After Sex

23. The Magnetic Fields - 50 Song Memoir

24. Sampha - Process

25. Ibeyi - Ash

26. Big Thief - Capacity

27. Moses Sumney - Aromanticism

28. Chino Amobi - Paradiso

29. Juana Molina - Halo

30. The XX - I See You

31. Kaitlyn Aurelia Smith - The Kid

32. Protomartyr - Relatives In Descent

33. Actress - AZD

34. Jane Weaver - Modern Kosmology

35. Robert Plant - Carry Fire

36. Laurel Halo - Dust

37. Fleet Foxes - Crack-Up

38. Alvvays - Antisocialites

39. Queens of the Stone Age - Villains

40. Do Make Say Think - Stubborn Persistent Illusions

41. Circuit des Yeux - Reaching For Indigo

42. Laura Marling - Semper Femina

43. Grizzly Bear - Painted Ruins
   
44. Ariel Pink - Dedicated To Bobby Jameson

45. Four Tet - New Energy

46. Wolf Alice - Visions Of A Life     
    
47. Sharon Jones & The Dap-Kings - Soul Of A Woman   
       
48. Andrew Weatherall - Qualia

49. Arcade Fire  - Everything Now
      
50. The Weather Station - The Weather Station

24 de dezembro de 2017

Lone Folk


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F.J. McMahon (O é de Fred) editou apenas um álbum durante a sua breve carreira. Um disco com menos de 30 minutos de duração, gravado em apenas 36 horas, mas que se tornou uma pérola obscura da folk moderna norte-americana.
Spirit of the Golden Juice foi composto e editado em 1969, na ressaca da experiência de McMahon na guerra do Vietname. Pese embora ser uma primeira obra, o disco revela uma maturidade criativa e uma profundidade lírica cuja ressonância se mantém intacta e capaz de afectar os corações mais empedrenidos.
São, sobretudo, canções de guerra e canções de amor. Do que foi visto e sentido em terras do Oriente, do regresso a casa, do fim dos idealismos da juventude, de forçados recomeços.
A omnipresente guitarra acústica do cantor é maioritariamente acompanhada por um baixo e uma bateria, esparsos e discretos, deixando os temas fluir numa cadência constante e dolente, envolvente mas não soporífera. Tendo em conta as vivências de F.J. McMahon, não é de estranhar o apelo e o desejo de paz que transpira do primeiro tema, Sister, Brother e que nos conquista de imediato pela bela melodia e a sinceridade da entrega.
Seguem-se mais oito canções, pungentes e superlativas na sua qualidade e simplicidade. Por vezes McMahon remete-nos para um Nick Drake nascido na Califórnia, para as ruminações solitárias de Fred Neil, ou para um Arthur Lee em regime ascético. Todavia, as suas composições são únicas e possuem um crivo de experiência pessoal que as torna realmente genuínas.
É difícil destacar algum tema em particular ao longo da audição de Spirit of the Golden Juice, sendo que todos eles reflectem experiências profundamente pessoais. O belíssimo Early Blue entranha-se imediato, na sua cálida e luminosa melancolia. A poética Black Night Woman conta a história de um amor impossível em tempo de guerra. A poeirenta The Road Back Home remete-nos para o contraste entre a imensidão solitária do deserto e a alienação de cidades hiperpopuladas. O tema-título inspira-se no bourbon bebido pelos soldados no Vietname para relatar o ambiente alucinado vivido na iminência da ameaça constante.
Ao contrário do que McMahon esperava, apesar do louvor da crítica, Spirit of the Golden Juice não teve o sucesso comercial esperado. Tal desapontamento, associado à mudança do paradigma musical no início dos anos 70, levou a que o cantor abandonasse a sua musa em definitivo. Nas palavras do próprio, glitter glam rock came in and I'm looking at this on TV thinking, uh I think my time is done.
É impossível não ficar algo sedento face ao que F.J. McMahon poderia ter continuado a criar musicalmente. A sua única obra deixa intuir que muito ficou por cantar, ao mesmo tempo que o consagra com um dos artistas de culto mais notórios da sua era.

23 de dezembro de 2017

Kosmische Kosmetik LII


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Em 1976, o krautrock evidenciava um declínio no seu florescimento. A maior parte dos nomes que catapultaram o estilo para o seu acme criativo encontravam-se extintos ou atravessavam fases de menor lampejo artístico e inspiração.
Todavia, à margem dos nomes que ajudaram à expansão da vertente mais vanguardista e arrojada do rock alemão, certos grupos e individualidades entendiam ter ainda algo a acrescentar a um lote artístico já digno de destaque na música mais original e influente do século XX.
Günter Schickert, Axel Struck e Michael Leske eram três desses idealistas/inconformados, que decidiram reavivar a velha chama e continuar a espalhar brasas pela música germânica. Com a inicial de cada um dos seus nomes selaram o projecto que os tornou num dos mais radicais nomes de culto do género: GAM.
O primeiro dos dois álbuns editados pelo grupo - simplesmente intitulado 1976 - é uma obra endiabrada e extrema. Criada a partir de três improvisações em estúdio, consegue ir mais além das excursões lisérgicas, espaciais e hipnóticas encetadas por Ash Ra Tempel ou Guru Guru, a título de exemplo.
O primeiro tema, GAM Jam, abate-se sobre o ouvinte como uma borrasca sem tréguas, arrastando-o para a dimensão paralela onde se desenrola, sem esperanças de regresso. Seja qual for a substância que inspirou o trio, a qualidade não deixa margem para dúvidas...
Apricot Brandy deixa para trás a toada ciclónica e deambula por caminhos sombrios e labirínticos. O ritmo é opressivo, a guitarra tensa, a voz paranóica. A produção rude e artesanal torna o tema ainda mais agressivo, mas há algo que nos puxa e nos impele a continuar a desbravar estas cavernosas galerias.
Für Elise und Alice é a queda final no abismo demencial que se escancarou perante nós logo ao princípio. O que começa por ser uma desconstrução perversa da clássica peça para piano de Beethoven evolui para um devaneio rock fora de órbita que os Cosmic Jokers não desdenhariam. Fustigante e fascinante, a peça apodera-se do ouvinte sem misericórdia e o som crú e pouco polido acentua a veracidade e a intencionalidade do monstro que se faz ouvir.
1976 não é um disco exemplificativo do lado mais congregacional do krautrock, nem sequer da qualidade técnica ou melódica da música germânica. É preferível assumi-lo e consumi-lo como um retorno ao seu inconsciente primordial, pagão e puro. 


Kosmische Kosmetik LI

Image result for grobschnitt rockpommel's landRockpommel's Land será, muito provavelmente, o ponto de total convergência entre o comummente denominado krautrock e o rock progressivo. O quarto álbum dos Grobschnitt, editado em 1977, depura liminarmente o estilo musical que o colectivo alemão abraçou desde o início, inflectindo para uma riqueza de formas e arranjos que o tornou um caso sério de culto para os amantes dos desvios mais sinfónicos e utópicos do rock.
O disco padece de uma temática pontualmente transversal às obras do género: o álbum conceptual. Narrativas carregadas de momentos épicos e idealistas, fora da realidade ou demasiado absurdos para serem levados a sério. Nesse aspecto, Rockpommel's Land  não constitui excepção. Senão, vejamos a história que encerra: Um rapaz, chamado Ernie, sedento de fantasia, estabelece amizade com um ser alado gigante chamado Maraboo, e ambos partem numa jornada conjunta que os fará conhecer o Bem e o Mal. Tolkien sorri, Pratchett cofia a barba, mas o melómano franze o sobrolho com desconfiança. Porém, pode ficar descansado. Por mais estapafúrdia que a narrativa seja, a música que lhe serve de base é algo que roça o sublime. E ainda bem, pois é isso que perdura.
Ernie's Rise, tema que principia o disco, fá-lo sem piedade. Na sua melodia luminescente, algures entre Mike Oldfield e os Yes mais dinâmicos, as magistrais variações dos cinco primeiros minutos do tema conseguem arrebatar o ouvinte mais aguerrido. Os restantes cinco fundamentam o postulado.
Severity Town arranca em toada infanto-juvenil, cristalina e bucólica, enveredando aos poucos por uma complexidade assertiva que não lhe retira qualquer graça ou poder. Anywhere é uma balada pastoral e orvalhada, que nos fecha na sua ostra solicitando recolhimento e oferecendo refrigério a meio da jornada.
Rockpommel's Land, a canção, fecha a edição original do disco e constitui, certamente, o seu ponto alto. Ao longo dos seus vinte minutos de duração, o tema consegue manter viva a chama artística, imiscuindo-se por diversas variações sem nunca perder o azimute. Os minutos finais são verdadeiramente espantosos, com a progressiva implosão da energia a dar lugar a uma longa, crepuscular e arrebatadora coda.
Rockpommel's Land tem sido alvo de várias reedições ao longo dos anos, mas merece especial destaque a ocorrida em 1998, especialmente pela faixa extra que encerra. Trata-se de Tontillon, um belíssimo e envolvente tema instrumental, que aparenta ser o prolongamento de um excerto de Ernie's Rise, mas que ganha vida própria e uma gravitas que chega a ser terapêutica. Excelsa é a  prestação do baterista Joachim Ehrig, que recuperou esta peça no seu terceiro trabalho a solo e já sob o pseudónimo Eroc.
Ao longo da sua carreira, os Grobschnitt sempre se pautaram pela liberdade criativa e uma certa forma humorística de abordar a música. Assim sendo, fica sempre no ar a dúvida se os devaneios estilísticos de Rockpommel's Land  deverão ser levados excessivamente a sério ou se constituem apenas mais um tentáculo criativo da banda germânica. Seja como for, enquanto testamento das suas capacidades composicionais e interpretativas, este continua a ser o seu porta-estandarte.

Das Sombras

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IN-SHADOW: A Modern Odyssey é uma curta metragem de animação desenvolvida e realizada por Lubomir Arsov e que pretende transportar o espectador através do inconsciente fragmentado do mundo ocidental.
Pleno de sátira, humor negro e referências jungianas, o filme pinta um quadro negro e perturbador das sociedades do mundo civilizado, desconstruindo o capitalismo e desmascarando as falsas percepções de quem habita a sua realidade, cultivadas via panis et circenses, materialismo e competição amoral.
Obra de enorme pertinência e clarividência na área dos filmes activistas, IN-SHADOW exige visionamento obrigatório e obrigatória divulgação. 



   

Kosmische Kosmetik L

Image result for michael bundt neonA capa de Neon, segundo álbum do alemão Michael Bundt é, literalmente, de fugir. Algures entre o futurismo kitsch e o erotismo azeiteiro, o invólucro da obra não deixa antever bons augúrios para a música que encerra. Quem o levou para casa de forma incauta e sem pré-aviso no ano de 1979, esperando uma soul máscula a la Tom Jones ou uma histérica dose de hard rock, viu certamente os seus intentos defraudados.
A capa de Neon é, efetivamente, o pior elemento do disco, que constitui uma peça curiosa e de elevado interesse arqueológico no que toca à era dourada da música electrónica em geral e germânica em particular. O que está lá dentro poderia funcionar perfeitamente como banda-sonora para um Blade Runner dirigido por Russ Meyer. Música nocturna e lânguida, urbana e lasciva, rítmica mas pouco convidativa à dança, preferindo abrir caminhos para a imaginação e a introspecção. O tema-título é disso prova, abrindo o álbum de forma panorâmica, porém minimalista, com a sua melodia expansiva a penetrar lentamente cada poro auditivo. Michael Bundt leva a cabo uma récita sobre as luzes da cidade, a sua frieza, o seu fascínio, os vícios que disfarçam. A entrega lembra John Cale. O que é sempre bom. Flashes de guitarra eléctrica e saxofone invadem a camada minimal do tema, como interlúdios luminosos sobre a toada penumbrenta.
O registo dolente e sombrio prossegue com This Beautiful Ray Gun, modulado por trechos que parecem saídos de um qualquer lobby de hotel de terceira  categoria. Future Street No. 7 assemelha-se a um funk em câmara lenta, esquelético e frio na camada electrónica que o cobre, mas envolvente na rendição vocal de Bundt. Em conjunto com o tema-título é a peça que mais aguentou a erosão do tempo, mantendo intacta a sua traça futurista.
Flying in a Thunderstorm soa quase a elegia, exalando uma inesperada e plástica melancolia. A atmosfera glacial é somente interrompida por intermitentes arpejos de teclas e flauta, que acabam por carregar o tema até à sua conclusão. Death of a Friend é uma estranha e tétrica catarse, assente em guitarra e piano rotativos, que coloca Michael Bundt novamente em plano recitativo e parece saída de um conto de Edgar Allan Poe. Pelo meio ficam dois exercícios de menor intensidade, mas que contribuem igualmente para a coesa desconexão de Neon: o movimento em suspensão de Welcome the Astral Dancer e Midnight Orange Juice, breve exercício de electrónica cósmica vergastada por guitarra. Em suma, um curioso artefacto musical, que merece estima e contida devoção.


3 de dezembro de 2017

Improvisos Elementares

Image result for third ear band 1970Os Third Ear Band foram um colectivo britânico, formado em Londres em meados dos anos 60, imbuído de elevar a música popular a mais altas esferas. Com muito pouco de convencional no que toca à abordagem composicional e à paleta de instrumentos escolhida, o grupo acabou por granjear relativo sucesso à sua época, muito graças ao regime flower power vigente e ao pleno franqueio de portas a todas as abordagens e liberdades musicais.
Longe das fronteiras demarcadas pelo rock, os elementos dos Third Ear Band reclamaram como influências sonoridades oriundas da música indiana, do experimentalismo e da folk mais arcaica.
Se o primeiro álbum da banda - Alchemy, de 1969, que contou com a participação do lendário John Peel - foi uma inovadora pedrada no charco musical do seu período, o seu sucessor consolidou-a como pilar definitivo na vanguarda sonora inglesa.
Editado em 1970, Third Ear Band tornou-se conhecido mais prosaicamente como Elements. A temática é conceptual e centra-se nos quatro elementos terrestres Ar, Terra, Fogo e Água. Os instrumentos que a animam envolvem apenas violino, violoncelo, viola, oboé e percussão. Tudo parece intuir que nos dirigimos de forma incauta para a new age mais pedante e anódina, mas felizmente a obra prova o contrário, mantendo ao longo das suas quatro peças a notável capacidade de abraçar e arrastar o ouvinte na sua cadência hipnótica, contudo sem nunca descurar um núcleo ardente e orgânico, que torna a experiência tão física como espiritual.
Air principia com um sopro forte, que estende a passadeira ao oboé de Paul Minns e ao violino de Ursula Smith, suspensos como folhas ao vento e aguardadas no solo por um ritmo circular, leve mas insistente.
Earth avança pelas sombras de uma dança medieval, lentamente ao princípio, depois num crescendo que a transporta para territórios do folclore balcânico. Um casamento belo e encantatório, que termina tão fugazmente como começou.
Fire surge envolta na transcendência de uma raga indiana, exalando exoticismo em elevadas doses psicadélicas. É a peça mais densa do álbum, mesmérica e penetrante, um convite ao abandono meditativo pelos confins da nossa mente.
Ao tema mais incandescente, segue-se o mais cristalino. Water constitui o culminar beatífico do disco, espargindo uma doce e envolvente melodia que nos transporta para o embalo de ondas marinhas.
Pese embora Third Ear Band entroncar plenamente no zeitgeist que lhe trouxe inspiração e vida, o lirismo musical que guarda continua a ser deveras intemporal e imensamente cativante. Após a sua edição, o grupo enveredou pela feitura de música para filmes e, entre aparições esporádicas e desaparições espontâneas, cessou oficialmente actividades em 1993. Além de irrepetível na história da Third Ear Band, a sua segunda obra merece justamente figurar no panteão dos discos mais singularmente belos e inovadores da sua era.

1 de dezembro de 2017

Aqui d'El Jazz

Related imageO flautista e compositor Bob Downes assumiu-se como uma das figuras mais criativas e inovadoras da cena jazz britânica, projectando a sua sombra numa miríade de contribuições em variados estilos contaminados por este género, que vão da música clássica contemporânea ao rock e à livre improvisação.
O artista de Plymouth foi um dos nomes sonantes e indissociáveis da revolução jazzística ocorrida na Europa nos finais dos anos 60 e que emancipou em definitivo o Velho Continente de décadas de influência e domínio norte-americanos.
Bob Downes participou como músico de estúdio em inúmeras obras seminais gravadas durante esse período dourado. As suas actividades foram, amiúde, executadas sob a égide da baptizada  Open Music, entidade transmutável de trio a big band e que, como a denominação sugere, se encontrava livre de quaisquer restrições ou amarras estilísticas.
Após gravar algumas obras para editoras mais voltadas para o mainstream, Downes arriscou a criação da sua própria editora, chamada Openian Records, na qual principiou o lançamento dos seus projectos, sendo um dos primeiros músicos deste período a avançar com tal empreitada. O álbum de 1970 intitulado Electric City, trabalho curioso, bizarro e, a espaços, genial, apresenta o compositor como um artífice do jazz rock, criando peças curtas, carregadas de energia e ornadas por arranjos intrincados.
A lista dos músicos participantes neste festim é capaz de fazer salivar os amantes do género à época, apresentando sumidades como os trompetistas Ian Carr e Kenny Wheeler, o baixista Harry Miller e o prodigioso guitarrista Chris Spedding. A música é constantemente brilhante e cativante, sugerindo um bulício urbano e nocturno, e as performances virtuosas constituem amplas expressões das várias correntes sonoras que circulam sem restrições pelo disco. Grooves rechonchudos como Crush Hour, inflexões abrasivas pelo rhythm'n'blues como Walking e frescos cinemáticos como o fantástico Dawn Until Dawn são exemplos flagrantes da versatilidade e ecletismo de Electric City. O ritmo quente e propulsante de  Keep of the Glass não destoaria de uma película blaxploitation. Gonna Take a Journey termina o álbum atirando todos os elementos para um caldeirão, enaltecendo um fundo free jazz sem freios com motivos vocais - coisa rara e estranha neste tipo de obras.
Bob Downes continuaria a criar música interessante e continuamente diferente, mas nunca nada similar a esta pérola frenética, a qual continua a ser uma porta de entrada perfeita para o seu mundo singular e um pequeno objecto sónico não-identificado no jazz disruptivo que despontou na Inglaterra e na Europa nas décadas de 60 e 70.

26 de novembro de 2017

Flor Solitária

Os londrinos Synanthesia foram mais um caso perdido na folk vanguardista que despontou no final dos anos 60. Mais um broto cortado antes que lhe fosse permitido florescer em toda a plenitude. Seja pela excessiva proliferação do género na época em epígrafe, seja por pura ignorância e desinteresse do público e/ou das editoras, certo é que este interessante colectivo britânico saiu do alcance dos radares após a edição do seu primeiro álbum e nunca mais voltou para contar a história.
O disco homónimo dos Synanthesia, lançado em 1969, é um inspiradíssimo tratado do tratamento cirúrgico e inovador aplicado à folk britânica dessa década, sendo que merece elevado reconhecimento pela  exibição de inovação associada à intemporalidade. Perfeitamente encaixável no catálogo dos clássicos perdidos, a obra solitária da banda exala misticismo, romantismo e paganismo, não necessariamente por esta ordem. O rigor composicional e a depuração instrumental são elementos relevantes e impossíveis de descartar num trio exclusivamente acústico e sem secção rítmica clássica definida.
As raízes musicais dos membros dos Synanthesia reflectem o ecletismo padronizado na obra. Dennis Homes, vocalista principal - tarefa que acumula com a guitarra acústica e o xilofone - é um homem do rock. Jim Fraser domina os sopros, da flauta ao saxofone, e transita directamente do jazz. O multi-instrumentalista Leslie Cook surge como o elemento da folk mais purista, adicionando elementos como o bandolim e o violino à já rica paleta musical.
Synanthesia carrega a beleza de uma tarde outonal, ora sombria ora solarenga. É um disco aconchegante, embora não desdenhe enveredar por caminhos de estranheza e mistério. Existem várias referências mitológicas ao longo da obra, acentuando a sua vertente dionisíaca. Mnemosyne e Vesta assistem à folk sendo devorada pelo jazz e saindo saciada do banquete. Minerva envereda por luminosos carreiros pastorais e o excelente Morpheus condensa na perfeição o conceito caleidoscópico do álbum.
Igualmente dignos de destaque são o bucolismo acinzentado de Peck Strangely and Worried Evening, a introspecção taciturna mas doce de The Tale of the Spider and the Fly e a melancolia crepuscular de Just as the Curtain Finally Falls. Synanthesia foi alvo de reedição há muito aguardada em 2005, a qual vale, sobretudo, pela adição do único single editado pela banda durante os seus parcos dezoito meses de existência. Intitula-se Shifting Sands e serve uma belíssima e suculenta fatia de folk psicadélica, farta de cores oníricas e abandono melódico.
O único álbum dos Synanthesia reflecte, tal como tantos outros à sua época, uma miríade de influências, que vão de Donovan à seminal Incredible String Band. Não obstante, o tratamento dado pelo trio londrino às suas referências acaba por emulá-las e transcendê-las, o que torna este disco obrigatório para qualquer entusiasta ou completista do melhor que os anos 60 ofereceram em termos de florescimentos musicais.

1 de março de 2017

KO Computer




No ano em que se celebram 20 anos da edição de um dos melhores álbuns de sempre da história do rock - OK Computer -, cumpre lembrar o documentário editado que serviu de discreto suporte à tournée que o acompanhou. 
Realizado pelo britânico Grant Gee, o filme foge de forma flagrante aos formatos convencionais, funcionando como um documento introspectivo e quase esquizóide acerca dos meandros do estrelato e da indústria musical. Em lugar da atmosfera festiva e de comunhão, geralmente associada à vida na estrada de qualquer banda rock que se preze, Meeting People Is Easy é abraçado por uma atmosfera estanque, quase angustiante, que se debruça sobre as agruras dos compromissos, a pressão de agradar, os demónios criativos e toda a mecânica quase kafkiana de editar um disco e divulgá-lo.
Os Radiohead constituem um caso totalmente à parte da música popular desde o seu surgimento. A despeito do sucesso que cedo os bafejou, foram desbravando caminhos por zonas impenetráveis, com uma persistente coragem de fugir à zona de conforto à qual poucos se atreveriam. 
Quase duas décadas após a sua edição, Meeting People Is Easy e o disco que o inspirou continuam mais actuais que nunca. Provavelmente porque foram proféticos na sua encenação do futuro e na inquietude que se impregnou no âmago das nossas existências. You Are A Target Market, lia-se no cartaz do filme aquando do seu lançamento em 1998. Retire-se agora o Market e confirme-se que tudo permanece idêntico.



          

The Rock



Se uma imagem vale mais que mil canções, Mick Rock existe para prová-lo. O fotógrafo britânico, nascido em 1948 e muitas vezes chamado The Man Who Shot The Seventies, ajudou a construir e a imortalizar a iconografia de eminências musicais como Iggy Pop, Syd Barrett ou David Bowie - especialmente na plenitude do alter ego Ziggy Stardust.
Autor de vários livros incontornáveis e alvo de exposições contínuas à volta do globo, Mick Rock consolidou o estatuto de fotógrafo dos fotógrafos do universo Pop Rock pelo estatuto quase mítico do seu trabalho. E, como uma imagem vale mais que mil palavras, nada como visitar o repositório oficial do seu longo e impressionante trabalho. O mesmo não guarda somente parte da história visual da música das últimas décadas. Guarda muito do nosso imaginário e da forma como bandas e artistas tiveram um percurso formativo e influente na construção das nossas personalidades melómanas.

27 de fevereiro de 2017

Folk Púrpura

O primeiro e único álbum dos Fuchsia é um dos tesouros mais recônditos da folk progressiva britânica da década de 70. Esta pérola obscura é puro deleite para ouvidos ávidos das paisagens mais desviantes e psicadélicas pelos quais a música tradicional inglesa enveredou durante esse período. Praticamente ignorado aquando do seu lançamento em 1971, Fuchsia ganhou ao longo do tempo o merecido estatuto de álbum de culto.
O grupo, formado por estudantes da Universidade de Exeter, praticava uma sonoridade dominada por instrumentos tradicionais, mas em que a energia imperava e que revestia a música de uma contagiante intensidade.
Gone With The Mouse, canção que abre esta obra homónima, é um belíssimo exercício de folk ácida, na qual as vozes de Tony Durant e das três vocalistas femininas que dividem a tarefa juntamente com as cordas oscilam entre a luz e as sombras. Os magníficos arranjos orquestrais que envolvem o tema conferem-lhe igualmente um pendor austero, quase gótico. Trata-se, sem dúvida, de uma magistral carta de apresentação.
A Tiny Book mantém o registo fragmentado e progressivo, alternando momentos bucólicos com cavalgadas rítmicas e ornamentos de cordas, em constante território arty. Se alguma vez existiu algo próximo de um groove pastoral, Another Nail enquadra-se perfeitamente na descrição. Baixo e bateria propulsantes aliam-se a cordas eloquentes para uma jornada galopante por campos verdejantes.
Esta tendência continua em Shoes and Ships, porém mais contida. O galope dá lugar ao trote embalador de violinos e violoncelos que complementam a simplicidade de uma guitarra acústica.
The Nothing Song constitui, decididamente, o momento mais psicadélico do disco. A atmosfera geral é escura e contaminada por uma relativa dose de loucura. O tema vagueia e serpenteia, aparentemente sem destino, como um círculo que procura fechar-se sem nunca o conseguir. Segue-se o momento mais despojado do álbum, em Me And My Kite. Na sua simplicidade espartana e quase infantil, o mesmo traz reminiscências das experiências a solo de Syd Barrett, prévios à sua queda definitiva no abismo lisérgico. Just Anyone regressa aos domínios do rock e fecha o disco com a mesma intensidade emotiva do tema inicial.
No contexto da era em que foi editado, Fuchsia é um dos melhores e mais aconselháveis exemplos da folk desviante. É uma obra envolvente e plena de momentos que variam entre o hipnótico e o endiabrado. Nos dias de hoje, em que os tempos são mais cínicos, torna-se complicado apreender um disco como este com total despojamento. Quem guardar dentro de si alguma réstia de sonho e alguma abertura para a fantasia, que o procure.

26 de fevereiro de 2017

Engenho e Arte




Radical, visionário e genial, o laboratório de design Hipgnosis foi fiel depositário de inúmeras concepções artísticas entre 1968 e 1982. Fundada por Storm Thorgerson e Aubrey Powell - aos quais se juntou, posteriormente, Peter Christopherson -, a companhia londrina foi responsável por algumas das mais marcantes e reconhecíveis capas de discos dessa era. O conceito temático da arte criada para suporte visual de álbuns foi totalmente subvertida e surrealizada pela Hipgnosis, sendo que, não raras vezes, o invólucro criativo que guardava as obras musicais era francamente melhor que as ditas.
Numa era absolutamente marcada pelo reinado do vinil, as capas do grupo criativo britânico tornaram-se uma imagem de marca e definiram, igualmente, a imagem colectiva de bandas e artistas como Pink Floyd, Led Zeppelin, Scorpions ou Peter Gabriel. No caso deste último, em termos de técnicas não-ortodoxas, é notória a utilização de uma borracha para o efeito de liquefacção na capa de Melt, bem como a colocação das capas no forno para derreterem.
Salvador Dali, René Magritte e Man Ray são nomes incontornáveis nas influências da Hipgnosis. Numa época em que a maioria da música é consumida por vias digitais, em que o tempo para desbravar uma obra é cada vez menor e em que a atenção aos detalhes escapa ao elevado número de estímulos que bombardeia todos a todo o momento, torna-se idílico relembrar entidades como esta. Apesar de não existir um site oficial da Hipgnosis, esta página contém todo o trabalho artístico encetado pelo grupo em termos musicais. Torna-se igualmente obrigatório um passeio pelo legado deixado pelo entretanto malogrado Storm Thorgerson. 

25 de fevereiro de 2017

Paz e Ruído

No dia 13 de Agosto de 1969 em Paris, o pianista Dave Burrell reuniu-se com alguma da fina flor do jazz da época para registar duas composições da sua autoria. Os seus companheiros de aventura foram Archie Shepp (saxofone tenor), Arthur Jones (saxofone alto), Clifford Thornton (corneta), Grachan Moncur III (trombone), Alan Silva (contrabaixo) e Sunny Murray (bateria). O resultado é uma das obras mais extremas - senão a mais extrema - do jazz improvisado.
Ainda hoje é quase impossível resistir ao choque perante a audição dos primeiros segundos de Echo, a primeira das duas peças que compõem o disco com o mesmo título. Uma amálgama sonora desmorona-se subitamente sobre o ouvinte, numa cacofonia em que todos os instrumentos irrompem num turbilhão sem tréguas. Como se d' A Cavalgada das Valquírias em versão free jazz se tratasse. De acordo com Burrell, o princípio que rege este tema assenta em duas notas amplificadas e repetidas até à exaustão. Segundo o pianista, esta seria uma forma dos músicos descobrirem um grande número de coisas acerca dessas duas notas, bem como deles próprios. Certo é que, se os primeiros momentos do tema parecem querer repelir o ouvinte, com o passar dos minutos a música torna-se um monolito denso e entorpecente. Um redemoinho incessante, de onde irrompem gritos isolados dos vários instrumentos por entre a espiral que os afoga. Tremenda, intensa e imprópria para cardíacos, Echo é uma peça que exige uma aproximação cuidadosa e uma disponibilidade sem preconceitos por parte de quem busca os seus tormentos/encantos.
A segunda composição do disco, Peace, principia de forma mais plácida que a sua antecessora, mas não menos incisiva. Uma dissonante exploração de solfejo desagua num exercício de puro e abandónico improviso. Nas palavras de Dave Burrell, este tema explora a politonalidade, via acordes e arpejos, como um trampolim para alcançar a serenidade. Poucas vezes o jazz foi tão avant-garde como aqui e muitas vezes o jazz dos anos vindouros emulou a sua atmosfera esquizofrénica. A inquieta tranquilidade de Peace convida a meditações despertas e abstracções concretas. Um oxímoro musical, bizarramente gratificante.
Echo acaba por ser um produto típico da era dourada do free jazz. Contudo, poucas vezes alguém conseguiu ir tão longe nos seus intentos como Dave Burrell e seus co-conspiradores neste hiperactivo borrão sonoro. Continua a ser difícil de ouvir. Continua a não ser para todos. Continua a ser lendário.

20 de fevereiro de 2017

This Is The One

The Stone Roses: War and Peace: Amazon.co.uk: Simon Spence ...



O primeiro álbum dos Stone Roses entrou de rompante em 1989 e pintou as terras de Sua Majestade com as pingas multicolores a la Jackson Pollock que a capa do disco tão bem emulava. Salvo raras excepções, o panorama musical do final dos anos 80 tinha-se tornado cinzento, previsível e sensaborão. Pelo menos, nada anteciparia a chegada de algo assim. Um disco intemporal, incandescente e docemente psicadélico, cuja luminosidade e altivez colocava a banda de Manchester num patamar totalmente à parte dos seus pares. A imprensa britânica considerou-os a coisa mais excitante a acontecer na música do seu país desde os Sex Pistols e daí ao firmamento foi um passo. A tendência para o caos e a auto-destruição geraram uma espiral descendente que culminou na edição tantas vezes prometida e adiada de um Second Coming muito aquém das expectativas. Conflitos internos e maquinações da indústria musical deram o golpe de misericórdia aos príncipes da Madchester.
Tudo isto e muito mais é contado rigorosa e exaustivamente em War and Peace, a mais completa biografia dos Stone Roses até à data. Escrito pelo jornalista Simon Spence e editado em 2013, após a surpreendente reunião de Ian Brown, John Squire, Mani e Reni, o livro baseia-se em 400 horas de entrevistas com individualidades próximas do grupo, incluindo antigos membros da sua formação. De jogos de baseball em estúdio usando bolas de bilhar, à fase em que o vocalista Ian Brown apenas comia batatas fritas, passando pela bipolar relação entre a banda e a imprensa, War and Peace tem tudo o que é preciso para agradar a admiradores casuais e a fanáticos de longa data. Aqueles que alguma vez se perguntaram o porquê  de tanta importância dada aos Stone Roses, encontrarão aqui todas as respostas. E o mais certo é ficarem convertidos.

19 de fevereiro de 2017

Em Branco na Selva




No final da década de 1970, Nova York era um local bem diferente de hoje em dia. Uma cidade falida e entregue à sua sorte, um leviatã perigoso e imerso no caos. Porém, estes tempos de profunda crise e incerteza acabaram por produzir alguma da arte mais fascinante, revolucionária e disruptiva do século passado.
Manhattan, em particular, era um local onde florescia a deliquência e a marginalidade. Existências mergulhadas na pobreza e na ausência de perspectivas para o futuro acabaram por reunir os cacos e ruínas disponíveis, delas fazendo emergir um manifesto de intenção tão chocante como libertador.
Um estilo artístico, niilista e ousado, surgiu das ruas escuras, dos prédios abandonados e dos bares infectos. O seu nome seria, apropriadamente, No Wave, e as suas ramificações estenderam-se da música à pintura, passando pelo cinema.
Esta interdisciplinariedade fez com que músicos fossem actores, actores fossem pintores, realizadores fossem produtores. O mote do it yourself estava na ordem do dia. Músicos que nunca tinham pegado num instrumento davam concertos e gravavam discos. Realizadores que nunca tinham pegado numa câmara faziam filmes com os mais básicos dos meios. Era a Blank Generation em todo o seu anárquico esplendor. A geração em branco, sem rumo definido senão utilizar a angústia, a penúria e a raiva com fins criativos e para fugir à crua realidade.
Ao mesmo tempo que se cimentavam nomes para sempre associados ao movimento punk nova-iorquino, como Ramones, Blondie ou Television, projectos mais limítrofes e experimentais alimentavam o negrume latente na Big Apple. Mars, D.N.A., James Chance ou Lydia Lunch fascinavam e estarreciam com a música que produziam. O cinema acompanhou a tendência e envederou igualmente pela transgressão.
Podemos dizer que Blank City - documentário de 2010 realizado por Celine Dahnier - é o retrato definitivo desta época, no que ao cinema diz respeito. Descrição oral, mas acompanhada por uma suculenta dose de imagens de arquivo, Blank City dá voz aos protagonistas que conceberam esta página singular da história da sétima arte.
Realizadores como John Waters, Jim Jarmusch ou Amos Poe juntam-se a Deborah Harry ou John Lurie para relatar as suas influências, memórias, métodos, motivações. O que fica é um extraordinário documento, a narrativa de um tempo em que as artes se imiscuiam sem preconceitos numa cidade mais parecida com uma selva.


   

14 de fevereiro de 2017

Ópio do Povo

Image result for galaxie 500 today bandA genialidade dos Galaxie 500 (que, por tal sinal, é igualmente um clássico modelo da Ford) parece aumentar à medida que os anos se desenrolam. Sábio nas influências, mas quase inocente na pura expressividade da sua música, o trio de Cambridge, Massachussets levou o rock para territórios de sonho e elevou a melancolia esquizóide das suas canções  a territórios onde os sonhos acontecem em vigília.
A banda editou somente três álbuns de originais durante o seu curto período de duração - entre 1988 e 1991. Discos feitos de canções narcóticas, quase opiáceas, em que as guitarras oscilam entre o sujo e o cintilante e o ritmo embala o corpo num abraço solitário. Descendentes em linha directa da veia mais intimista e cinzenta dos Velvet Underground e do romantismo enérgico e naïve dos Modern Lovers, as obras dos Galaxie 500 constituem-se como alguns dos mais importantes pilares fundadores de géneros como o shoegaze, o dream pop ou o slowcore. Da trilogia que compõe o seu indelével legado, acaba por merecer maior destaque o álbum primogénito, Today, editado em 1988.
I Can Never Calm You Down, as primeiras palavras cantadas por Dean Wareham após o suave crescendo que inicia o superlativo Flowers, dão o mote para a toada geral do disco. Música que flui em quieta inquietação, desespero contido, angústia latente. Flowers é um épico claustrofóbico, um desejo impossível, e fustiga-nos com a beleza dorida e distorcida da sua guitarra. Pictures segue o mesmo trilho, numa espiral para dentro, uma bateria sem pratos, uma melodia repetitiva. E nada mais é preciso para assegurar o efeito anestésico pretetendido.
Se a dor é latente em Today, um exemplo flagrante é Temperature's Rising. Abordando a letra um episódio de vício, a melodia será, certamente, a mais viciosa do disco. Entre o desejo e o arrependimento, a tentação e o suplício, é uma canção assumidamente drogada, na qual a descoberta deu lugar ao êxtase do risco. Parking Lot e Oblivious são os temas mais solarengos do álbum, mas atravessados por uma penumbra agridoce que nunca deixa a luz revelar-se em pleno. Lembram, em certa medida, a frustração sublimada em poesia e substâncias, tão querida dos Smiths. Tal como o prosaicamente intitulado Instrumental, que soa a um encontro nocturno entre Jonathan Richman e Johnny Marr.
Richman acaba por ser, aliás, alvo de homenagem através de uma versão absolutamente electrizante e devastadora de Don't Let Our Youth Go To Waste. Às descargas de feedback da guitarra, o baixo minimal repetitivo de Naomi Yang e o ritmo marcial de Damon Krukowski adicionam uma carga pesada e narcótica que soa a um filho prematuro dos Velvet Underground e Spacemen 3.
Mas a atmosfera outonal de Today acaba por definir-se nos temas mais dolentes e sombrios. It's Getting Late e King of Spain levar-nos-ão sempre ao quarto escuro da adolescência, aquele onde nos reconciliávamos com a perfeição que no mundo exterior nos roubava a beleza, um beijo, um amor. O que nos leva a Tugboat, tema que rivaliza com Flowers como corolário deste magnífico disco. A canção do amor idealizado, da fuga ao real, da simplicidade como triunfo do que importa guardar. E a guitarra, sempre a dedilhar o coração. E a voz, sempre imperfeita de finitude. Em suma, uma catarse musical sublime na sua fragilidade exposta sem artifícios.

7 de fevereiro de 2017

Tempestades Solares

O elemento mais chamativo dos Quiet Sun assenta no facto de serem o primeiro colectivo musical formado por Phil Manzanera, guitarrista que derramou arrojo, audácia e magia nos seminais Roxy Music. Formados originalmente na Faculdade de Dulwich em 1970, os Quiet Sun  alinhavam nas suas fileiras - para além de Manzanera - Bill MacCormick no baixo, Dave Jarrett nas teclas e Charles Hayward na bateria. Apesar de se constituir como um núcleo coeso e de acumular um pequeno culto em seu redor, o quarteto original não editou nenhuma obra digna de registo nos primórdios da sua existência. O fim desta primeira encarnação do grupo surgiria, assim, em 1972, com a disseminação dos seus membros por vários projectos. Manzanera integraria os Roxy Music, como é sabido, MacCormick ingressaria nos Matching Mole e Hayward trataria dos ritmos dos Gong, fundando, anos mais tarde, os assombrosos This Heat. Jarrett foi o único a abdicar da música, tornando-se professor.
Todavia, ditou o destino que os Quiet Sun teriam direito a uma segunda vida, evitando que se tornassem uma eterna e obscura nota de rodapé do rock britãnico dos anos 70. Em 1975, aproveitando um hiato na carreira dos Roxy Music, Phil Manzanera lançou-se na edição do seu primeiro álbum em nome próprio - Diamond Head - e, pelo meio, congregou os seus velhos companheiros universitários para um ritual de ressurreição enérgico e fortemente improvisado intitulado Mainstream. Os quatro acabaram por expandir-se, incluindo Ian MacCormick em erráticas vocalizações e assegurando o vanguardista de todas as épocas Brian Eno  no refinamento das atmosferas e na aplicação das suas estratégias oblíquas. A gravação final assemelha-se vagamente a um cruzamento entre os Soft Machine mais espaciais e os Velvet Underground mais experimentais.
É, não obstante, notório que a sonoridade base dos Quiet Sun bebe maioritariamente do rock progressivo do seu tempo, embora com laivos de inspiração jazzística e exalando o complexo perfume da cena de Canterbury. O elemento mais fresco e irreverente é, indubitavelmente, a guitarra de Phil Manzanera. A mesma serpenteia, rasga e fustiga ao longo de Mainstream. Apesar de mais prosaica, a secção rítmica fornece a base de sustentação para as intrincadas tapeçarias sonoras de Manzanera e os teclados pingam gotas etéreas ao longo da obra. Tome-se como exemplo Sol Caliente, o tema que abre o disco. Ofuscante, vibrante e abrasado pela fuzz guitar, move-se em espirais elípticas no sistema nervoso do ouvinte, libertando estranhas ondas rítmicas que não motivam a dança mas acordam o corpo. O clímax da peça acaba por fundir-se com a seguinte, Trumpets With Motherhood, que mais não é que o seu lento esfumaçar.
Igualmente físico e alucinante é Mummy Was an Asteroid, Daddy Was a Small Non-Stick Kitchen Utensil. O surrealismo do nome não é defraudado pela música, caleidoscópica travessia, feita de curvas e contracurvas, que se afasta progressivamente da terra firme até desaparecer no vácuo. O contraponto entre a guitarra e as teclas é deveras sublime e o tema arrasta-nos para a sua vertigem cósmica, sem hipóteses de libertação.
Trot mantém-nos em suspensão, com um piano em regime de sonata sonâmbula, uma guitarra incandescente e a complexidade rítmica típica da escola de Canterbury. O final chega com Rongwrong. Para manter a toada levemente inusitada que percorre o disco, este é o único tema vocalizado e a voz pertence ao baterista. Composição menos feérica que as anteriores, engloba uma série de fantasias instrumentais e devaneia ao longo de 10 minutos em regime stream of consciousness. Pelo meio ficaram Bargain Classics - momento de pujante e virtuosa intensidade, em que a guitarra e a bateria se degladiam com galhardia pela vitória - e R.F.D., peça flutuante e sombria, dominada pelas teclas e onde a presença de Brian Eno é mais notória.
Mainstream foi reeditado em 2011, contendo quatro extras - essencialmente sobras das sessões de gravação - e uma entrevista com a banda. A sonoridade desta revisitação da obra é de sobremaneira aconselhável e vinca exemplarmente a qualidade e intuição interpretativas dos músicos executantes. Não deixa de ser notável constatar que Mainstream foi gravado em poucos dias, sendo que a maioria dos temas resulta de captações logo ao primeiro take. Em tal estado de graça e inspiração, os Quiet Sun conseguiram o que muitos outros demoram anos - ou obras - a alcançar. 

25 de janeiro de 2017

Carne Crua




É bom saber que Nick Cave voltará em breve aos concertos. É no palco que o músico australiano se transcende e mais nos arrebata. Numa vida tão atribulada e cheia de percalços, a dor da perda de um filho levou à composição de um dos seus discos mais belos, tocantes e sombrios, Skeleton Tree. O que está para vir não trará, decerto, interpretações tão sanguíneas e viscerais como antigamente. Passaram-se 25 anos desde Live at the Paradiso, gravação de um concerto ao vivo no mítico clube de Amesterdão. Os tempos eram diferentes, a idade mais propícia a pirotecnias e o disco do momento chamava-se Henry's Dream. Todos sabemos que Nick Cave (com ou sem os seus Bad Seeds) envelheceu com graça, classe e sabedoria. O poético agitador de outrora deu lugar a um dos mais consagrados escritores de canções da actualidade. É bom saber que Nick Cave ainda nos mostra os caminhos tortuosos da sua alma. Tal como é reconfortante saber que a intensidade vibrante e excessiva do passado continua preservada para colmatar as saudades.


             

24 de janeiro de 2017

Admirável Mundo Falso

HyperNormalisation: Post-Truth Documentary – Disphotic



HyperNormalisation é um documentário editado pela BBC nos finais de 2016, cuja premissa assenta em demonstrar que o mundo real em que vivemos foi substituído por um mundo falso e sustentado por forças empresariais e políticas. Ao longo de quase três horas, o realizador, Adam Curtis, parte de uma cadeia de eventos iniciada há 40 anos para mostrar que as complexidades do planeta foram sendo gradualmente escotomizadas para dar lugar a uma visão simplista e insciente da história actual.
No entender de Curtis, acontecimentos recentes como a guerra na Síria, o Brexit ou a eleição de Donald Trump, são fruto da passividade latente de quem se encontra no poder, e cuja falta de entendimento e controle da realidade levam à criação e manutenção de uma normalidade ilusória.
Apesar dos teóricos da conspiração esfregarem as mãos de contentes sempre que surge um documento deste género, HyperNormalisation é uma produção fundamentada e credível, plena de referências provenientes dos arquivos da BBC e de visão obrigatória. Numa era de confusão e incerteza, são obras como esta que alertam, agitam e motivam para uma mudança de paradigma consciente e universal que urge iniciar.


                   

Vampirismos




Shadow of Light é um documento visual de 1984 que guarda os nove filmes promocionais editados pelos Bauhaus. Lançado um ano após o canto do cisne dos fundadores do movimento gótico, continua a ser o retrato que melhor vislumbre transmite acerca de uma banda tão adorada como odiada e, não raras vezes, incompreendida.
Cinco das interpretações são videoclips filmados em estúdio e onde as tendências teatrais e arty do colectivo transparecem de sobremaneira. Realce obrigatório para a atmosfera film noir de She's In Parties e para o lúgubre e tétrico Mask
As restantes interpretações foram captadas ao vivo, sendo neste contexto que o quarteto britânico debita todo o seu carisma e intensidade. Da guitarra reptiliana e dissonante de Daniel Ash, aos frémitos enérgicos e aracnídeos de Peter Murphy (o tal que alguém apelidou de filho impossível de David Bowie e Iggy Pop), passando pela presença mais sóbria - mas sempre sólida - da secção rítmica composta pelos irmãos Haskins (Kevin e David J), o palco é o principal elemento de cristalização.
O propulsivo e vertiginoso In The Flat Field e a soturnidade fantasmagórica de Hollow Hills mostram bem as duas faces distintas da banda, algures entre o punk mais visceral e a austeridade sombria. O destaque óbvio vai para o imortal Bela Lugosi's Dead, hoje e sempre capaz de arrancar calafrios por entre o dub moribundo, o ritmo esquelético e a voz espectral.
Shadow of Light foi reeditado em DVD em 2005, em conjunto com a filmagem integral de um concerto ao vivo denominado Archive. Sem dúvida, um excelente complemento, embora a edição original continue a ser a referência ideal para quem procure conhecer visualmente a curta, mas marcante, história dos Bauhaus.



                            

23 de janeiro de 2017

Flyer's Not Dead

Sex Pistols, The Damned, Heartbreakers, The Clash at Leeds Polytechnic. 1976


O Tumblr continua a ser um relicário fértil em surpresas. Desta feita, a sugestão recai sobre uma página exclusivamente dedicada a velhos flyers de concertos punk. Um autêntico mar de delícias para apreciadores do género em todas as suas facetas e ramificações, Old Punk Flyers reúne centenas de peças que evocam o melhor do espírito do it yourself dos primórdios do movimento. Não deixa, certamente, de ser arte. Não deixamos, igualmente, de nos sentir violentamente nostálgicos a apreciá-la.

2 Minutos de Jaki




Pausa para lembrar Jaki Liebezeit, figura tantas vezes presente e influente neste blog. Um homem simpático, humilde e despretencioso, que juntava a estas qualidades o facto de ser o melhor baterista da sua geração. Tive o imenso prazer de ver o Homem Máquina tocar diversas vezes, bem como a honra de trocar algumas palavras com ele. A última vez foi no Out.Fest de 2016, onde, mais uma vez, deslumbrou com o magnetismo hipnótico do seu estilo único. Nunca pensei que a foto que tirei acima seria a derradeira... Ruhe in Frieden, Jaki.


                 

22 de janeiro de 2017

Rumo ao Cume

Mike Oldfield Hergest Ridge - 1st UK vinyl LP album (LP record ...Mike Oldfield nunca escapou verdadeiramente ao êxito massivo de Tubular Bells. O disco de estreia do guitarrista britânico - editado em 1973 - foi, simultaneamente, uma benção e uma maldição. Projectou o músico para uma ribalta inesperada aos 20 anos de idade, mas colou-se-lhe como uma sombra para os anos vindouros da sua carreira. As notas de piano iniciais, que começaram por ser usadas no filme The Exorcist, de William Friedkin, tornaram-se a imagem de marca instantânea do músico inglês e a peça constitui um capítulo incontornável da história da música popular do século XX. Oldfield revisitaria mais vezes Tubular Bells ao longo dos anos, editando sequelas em 1992 e 1998 e chegando mesmo, em 2003, a apresentar uma regravação integral da obra. Pode soar a cansativo e desinspirado, mas nunca deixou de ser lucrativo...
Mas voltemos a 1973 e à ressaca do sucesso da primeira experiência a solo de Mike Oldfield. Até esse momento, o músico tinha somente editado um álbum - em 1969 -, pacata aventura pelos meandros da folk, em parceria com a sua irmã Sally Oldfield e intitulado Children of the Sun. O duo adoptou o nome The Sallyangie e esfumou-se tão depressa como surgiu. Oldfield rumou ao rock e acabou por engrossar as fileiras dos Whole World, banda de suporte a Kevin Ayers, em 1970. Contudo, os dotes e prestações do jovem guitarrista, acentuaram-se progressivamente, até se revelarem grandes demais para os limites de um grupo.
Na ressaca de Tubular Bells, o relativamente discreto Oldfield encontrava-se cansado da constante atenção do público e dos media, pelo que enveredou por um período de recolhimento. Nestes casos, é sobejamente conhecido o poder terapêutico da ruralidade. Em frente à casa que o músico encontrou para se refugiar e encontrar, algures na fronteira entre a Inglaterra e o País de Gales, erguia-se um monte denominado Hergest Ridge. E foi nesta paisagem campestre, remota e ancestral que uma nova obra-prima foi desenhada. Mais contida e introspectiva, é certo, mas dotada de uma elevação estética incomparável no legado artístico do seu compositor.
Na parafernália constante do rock progressivo da época, Oldfield deu primazia a instrumentos tradicionais como o tin whistle e o bandolim, assim como a uma sóbria mas pungente secção de sopros. A guitarra, essa, seria sempre a rainha, quer em formato acústico ou distorcida pela electricidade.
Editado em 1974, Hergest Ridge divide-se em duas extensas peças, carregadas de atmosferas ancestrais, pastorais e bucólicas. Em última instância, acaba por ser um disco de pendor ambiental, mas cuja beleza ofuscante nos chama constantemente a atenção para a paisagem sonora que nos envolve. Como se o ouvinte fosse convocado para imiscuir-se nela e não apenas para contemplá-la à distância.
A primeira parte do disco ouve-se como se de uma caminhada se tratasse, uma travessia lenta, acidentada e plena de contrastes, rumo ao cume. Soa a música saída da terra, inspirada no verde intocado e na pureza inebriante do ar. A descrição natural high assenta-lhe que nem uma luva.
A segunda parte evoca a chegada ao cume e a contemplação. A melodia que brota nos primeiros minutos será, decerto, a mais bela que Oldfield alguma vez conjurou. Um misto de emocionalidade e retraimento, deslumbramento e introspecção. Impera uma guitarra acústica, à qual se juntam vozes luminosas, como uma solarenga manhã de Inverno. A música é fria, mas reconfortante. Entretanto, o bucolismo cede lugar à feérica intensidade eléctrica e o sol fixa-se no zénite para depois deixar a sua luz esmorecer gradualmente e ceder às texturas serenas e melancólicas que nunca abandonam verdadeiramente a música.
Hergest Ridge é, em suma, um disco de fuga. Um regresso ao conforto do imutável, ao labirinto onde gostamos de entrar e deambular, mas cuja saída conhecemos. Mike Oldfield regressaria ao mundo real e a novas consagrações e Hergest Ridge seria alvo de luxuosa recauchutagem em 2010. Porém, as duas composições do ponto de paragem original e a beleza do seu imaginário continuam a bastar como local ideal para nos refugiarmos e encontrarmos.

17 de janeiro de 2017

Private Neil


Waging Heavy Peace - Livro - WOOK



When I was young, I never dreamed of this. I dreamed of colours and falling, among other things. Assim arranca o prefácio de Waging Heavy Peace, a primeira - e única, até à data - autobiografia de Neil Young, editada em 2012. Na senda destas palavras e com o subtítulo A Hippie Dream, o livro empreende uma reflexão pungente dos aspectos mais recatados da vida do músico canadiano. A sua família, hobbies, obsessões e meditações desfilam em ruminações algures entre o improviso e o imprevisto. O estilo narrativo é não-linear, não obedece a regras temporais e saltita evocativamente entre memórias.
A carreira musical de Young raramente aparece em primeiro plano ou envolta em ostentação. Estão presentes, contudo, relatos estilhaçados e breves como polaroids dos seus primórdios artísticos nos seminais Buffalo Springfield, da ascenção à fama em conjunto com Crosby, Stills & Nash e da sua consolidação a solo.
Na sua essência, Waging Heavy Peace não é um livro para neófitos. Dirige-se, sobretudo, a admiradores de longo curso em busca de saber do homem que vive para além da arte. Ao longo desta obra absorvente, a pena de Neil Young desvela amores e fraquezas, medos e paixões, por vezes surpreendentes, por vezes hilariantes, mas sempre com honestidade. Outra coisa não seria de esperar de alguém que afirma ter decidido escrever o livro após partir um dedo do pé à beira da piscina...

15 de janeiro de 2017

Kosmische Kosmetik XLIX

Die Grüne Reise ou The Green Journey foi o primeiro álbum produzido pelo guitarrista Achim Reichel após o abandono dos popularíssimos (pelo menos na República Federal Alemã) The Rattles. Esta banda chegou a ganhar o epíteto de Beatles germânicos devido às similaridades como os Fab Four de Liverpool, mas sempre mais no estilo que na substância. O agrupamento que Reichel reuniu para iniciar a sua nova trajectória musical não reteve, certamente, tais paralelismos, a não ser, talvez, uma saudável obsessão por Tomorrow Never Knows ou Revolution nº 9. Denominados A.R. & Machines, constituem um dos colectivos mais originais, inovadores e interessantes das franjas do rock teutónico mais arrojado.
Die Grüne Reise foi primariamente idealizado como uma banda-sonora para um filme imaginário e parece ter o poder de penetrar em todos os neurónios do ouvinte em simultâneo. Ataca em todas as frentes como onda que desfaz castelos de areia, não deixando destroços à sua passagem, mas sim novas geometrias mentais. Flui em registo contínuo, sem pausas, num caudal sonoro que aumenta e diminui de intensidade, sem nunca perder a sua essência pulsante e encantatória.
A sonoridade de Die Grüne Reise assenta num cocktail de rock enraizado nos blues e uma carga psicadélica capaz de implodir qualquer cérebro mais incauto. É, em suma, um disco sensitivo e policromático, que nos envolve mental e fisicamente. A abertura com Globus (Globe) dá-se num crescendo rítmico repetitivo e guitarras espiraladas que culminam em espasmos psicadélicos, tudo no espaço de três minutos, e que desembocam no hard rock insinuante e alucinogéneo de In the Same Boat (Im Selben Boot)Schones Babylon (Beautiful Babylon) é o ponto de convergência entre ambas e, por esta altura, a contaminação sonora já se consumou.
I'll Be Your Singer - You'll Be My Song (Ich Bein Dein Sänger, Du Bist Mein Lied) envereda por guitarras acústicas e percussão orgânica e aproxima-se dos territórios trilhados pelos Can. Body e A Book's Blues são dois intróitos que acrescentam bizarria à já hiperactiva toada do álbum, sendo a primeira uma colagem de guitarra, percussão e voz e a segunda um exercício de blues estranhamente convencional.
Als Hätt Ich das Älles Schon Mal Gehesen (As If I Had Seen This All Before) retoma o curso sonâmbulo da viagem (trip?) verde, enaltecendo a paisagem sónica com electrónicas transcendentes. Cosmic Vibration não se afasta do rumo e as guitarras envolvem-nos em ecos vertiginosos, por entre o ritmo e a electrónica fustigantes. Come on People arrasta consigo ecos do rock da West Coast americana, calorosos e vibrantes e a jornada chega ao fim em Wahrheit und Wahrscheinlichkeit (Truth and Probability). Aqui perdem-se quaisquer elos de ligação com a realidade e o tema move-se fora da gravidade, entre vozes fantasmagóricas e absurdas - que poderiam ter sido conjuradas por Ligeti - e electricidade em ebulição. Alucinante, distorcida e desafiante, a peça parece ser um negativo da restante toada do álbum, voltando-nos para uma surreal introspecção.
Die Grüne Reise é, em suma, um dos grandes clássicos da primeira fase do krautrock. Uma obra inovadora, que ainda hoje soa muito à frente do ano em que foi editada (1971) e cuja influência não pode ser desdenhada. Consta, inclusive, que Brian Eno se inspirou nela para a sua própria obra-prima Another Green World, pelo que não faltam razões para dar a Die Grüne Reise o realce merecido.
De salientar igualmente que a produção aqui abordada diz respeito à reedição do disco levada a cabo em 2007. O alinhamento é ligeiramente diferente da primeira edição em vinil, considerando-se, contudo, definitivo. Esta versão remasterizada do álbum apresentou-se acompanhada de um DVD, fazendo jus ao objectivo primário da obra: um filme produzido por estudantes universitários alemães e que permite, finalmente, experienciar Die Grüne Reise em toda a sua plenitude.


             


2 de janeiro de 2017

2016: A Soundtrack




Por motivos deliberados, esperei por 2017 para desvendar as minhas escolhas musicais de 2016. Seria bom que o ano agora morto e enterrado fosse erradicado da memória colectiva. Infelizmente não será assim. 2016 foi uma ponte, um trilho de fogo aberto no tempo e que, à falta de maiores desgraças, prenunciou friamente o futuro próximo.
O ano que nos roubou David Bowie, Leonard Cohen e Prince, presenteeou-nos com o Brexit e colocou o pató Donald Trump à frente dos destinos da nação mais poderosa do mundo. Para além de ter sido bissexto, foi também bipolar. Já terminou, mas deixou traumas difíceis de extinguir. Salve-se o tricampeonato para o Sport Lisboa e Benfica, momento de paradoxal regozijo num lodaçal quase permanente de desgraças.
Musicalmente, além do luto motivado pela perda de nomes sobejamente influentes e consagrados, algumas centelhas surgiram cujo fulgor iluminou o negrume. Há uma nova fornada de cantautores pronta a encantar e os produtos surgidos do Rap/Hip-Hop assumem-se cada vez mais como laboratórios sonoros e fonte da verdadeira originalidade da música desta segunda década do milénio. Não obstante, a aura dos mestres - os que lutam, os que perderam e os que nós perdemos - continua a projectar uma extensa e inescapável sombra na arte sonora do presente. 2016 foi um ano em que passado, presente e futuro se fundiram como raras vezes. Eis a banda-sonora que me ajudou a enfrentar cada dia.


1. David Bowie - Blackstar

2. Radiohead - A Moon Shaped Pool

3. Nick Cave & The Bad Seeds - Skeleton Tree

4. Angel Olsen - My Woman

5. Solange - A Seat at the Table

6. Anohni - Hopelessness

7. Bon Iver - 22, A Million

8. Shirley Collins - Lodestar

9. Leonard Cohen - You Want It Darker

10. Frank Ocean - Blonde

11. PJ Harvey - The Hope Six Demolition Project

12. Elza Soares - A Mulher do Fim do Mundo

13. Anderson.Paak  - Malibu

14. Let's Eat Grandma - I, Gemini

15. Car Seat Headrest - Teens of Denial

16. Beyoncé - Lemonade

17. Kanye West - The Life of Pablo

18. Brian Eno - The Ship

19. DIIV - Is The Is Are

20. Iggy Pop - Post Pop Depression

21. Jenny Hval - Blood Bitch

22. Danny Brown - Atrocity Exhibition

23. Cass McCombs - Mangy Love

24. Chance The Rapper - Coloring Book

25. Thee Oh Sees - A Weird Exits

26. A Tribe Called Quest - We Got It From Here... Thank You 4 Your Service

27. James Blake - The Colour in Anything

28. Parquet Courts - Human Performance

29. Ryley Walker - Golden Sings That Have Been Sung

30. Blood Orange - Freetown Sound

31. Christine And The Queens - Chaleur Humaine

32. Lambchop - FLOTUS

33. Sturgill Simpson - A Sailor's Guide to the Earth

34. Savages - Adore Life

35. The Avalanches - Wildflower

36. Weyes Blood - Front Row Seat to Earth

37. Kaytlin Aurelia Smith - EARS

38. Moor Mother - Fetish Bones

39. The 1975 -  I Like It When You Sleep, for You Are So Beautiful Yet So Unaware of It

40. Gaika - Security

41. Teenage Fanclub - Here

42. Michael Kiwanuka - Love & Hate

43. Anna Meredith - Varmints

44. Yves Tumor - Serpent Music

45. Cavern of Anti-Matter - Void Beats/Invocation Trex

46. Paul Simon - Stranger to Stranger

47. Kevin Morby - Singing Saw

48. Mitski - Puberty 2

49. Wilco - Schmilco

50. Swans - The Glowing Man