24 de setembro de 2010

25 Labirintos

A obra de Peter Hammill assemelha-se a uma biblioteca labiríntica, percorrida por intermináveis corredores, recantos obscuros e passagens secretas que não levam a lado nenhum ou desembocam em novos e escuros dédalos. Hiperactivo a solo desde os finais da década de 60, o pontual líder dos Van der Graaf Generator tem deixado atrás de si um trilho interminável de composições complexas e sem cedências comerciais. Dono de uma voz única, capaz de emocionar num segundo e aterrorizar no outro, o trovador londrino dos tempos modernos é, muitas vezes, um caso de amor-ódio, ou de paixão-frieza. Aqui é exposta uma parte da sua extensa obra. Os 25 melhores e mais celebrados discos da carreira discreta, mas influente, de um dos verdadeiramente originais compositores do rock do século XX (e, porque não?, do século XXI). Quem os conhece e admira, sabe que nunca é demais voltar a eles. Quem desconhece ou ignora o homem e a sua obra, é de lamentar, mas nunca será tarde para entrar como iniciático no culto Hamilliano... Uma aliciante são as recentes remisturas com faixas extra dos mais emblemáticos discos do músico, que destilam e muito a qualidade do som. Novidades acerca de Peter Hammill, bem como a discografia detalhada e as letras (soberbas) das suas canções, encontram-se em http://www.sofasound.com/.

I - Fools Mate (1971). Um clássico como estreia. É um disco único na carreira de Peter Hammill, feito de temas directos, curtos e melódicos. Nunca mais haveria uma obra assim no seu historial, um disco que parece emergir dos jardins labirínticos e das sombras complexas dos VdGG em direcção à claridade. Aliás, este deve ser o único disco de Hammill que apetece ouvir de dia, até num dia límpido. A genialidade sucede-se, canção após canção. Candle e o seu embalo levemente psicadélico; a intrincada intensidade de Re-Awakening; Viking e o drakkar romântico que o transporta na bruma. E, na primeira linha, as lindíssimas e inesquecíveis baladas, o cartão de visita do bardo. Vision é perfeita. As estrofes Let me die in your arms / So the vision may never shatter e o modo como são cantadas anunciam já um homem que canta o amor como mais ninguém. The Birds: igualmente perfeita. Um canto à Primavera murmurado por um coração outonal, que já não a sabe sentir. Solitude, Child e I Once Wrote Some Poems são belíssimos prenúncios da evocação de ambiências medievais, austeras e melancolicamente trovadorescas, feitas de amores impossíveis ou falhados que pontificam invariavelmente nos discos de Hammill.

II - Chameleon in the Shadow of the Night (1973). Adensam-se as sombras e a complexidade instala-se. Hammill mantém-se um artista acústico, mas as composições pouco possuem de folk, deambulando em variações mais próximas do progressivo. Composto e gravado no hiato dos VdGG, mas com a sua participação, é um disco que reflecte sobre as relações, a amizade, as separações e, agora e sempre, o amor. É o primeiro álbum do cantor a ostentar o logotipo a ele associado: o signo do Escorpião. Mas é mais bílis poética que veneno letal, o que é cuspido de temas como os brilhantes German Overalls, In the End ou o febril Rock and Role. Easy to Slip Away é uma escura e solitária balada sobre amigos que se esvaem no tempo. A frase So, dear friends, as we grow on we feel to grow away fala por si. O último tema, (In the) Black Room, recupera a teatralidade sombria, operática e estilhaçada dos VdGG com toda a intensidade avassaladora que está no seu ADN. É uma peça claustrofóbica, agonicamente solitária, uma confrontação do Ser consigo próprio e a sua existência. Mais um tema querido e esmiuçado no universo Hamilliano. O camaleão não consegue mudar de cor na sombra da noite. Assim o artista se revela despojado.

III - The Silent Corner and the Empty Stage (1974). A sombra alastra. Um dos melhores álbuns de sempre de Peter Hammill, esta obra de 74 adiciona esoterismo, religião e existencialismo à cartilha já cerebral do cantor. A temática do isolamento e da alienação urbana despontam no absorvente e apocalíptico Modern, uma das mais resistentes canções de Hammill. A vocalização roça o possesso, a música é um Leviatã que nos absorve. Aconteceu em meados dos anos 70 que concertos de Peter Hammill e dos VdGG terminassem em motins. O caos asfixiante de Modern é um importante contributo para essa finalidade. The Lie (Bernini's Saint Theresa) evoca, como o título sugere, O Êxtase de Santa Teresa, escultura de Bernini. Um piano atroador antecede a estrofe Genuflexion, Erection in Church. Segue-se um pêndulo que oscila entre o carnal e o místico, suspenso de um tecto esmagador, entre quatro paredes de pedra. Como é habitual, os restantes três membros dos VdGG tocam no álbum, fazendo deste quase uma obra da banda em nome próprio. Este apêndice musical nota-se de sobremaneira no pulsante e fumarento Red Shift e no abismal A Louse is not a Home, um mergulho nas trevas que só não arrepia um comatoso. É notória a influência de Edgar Allan Poe e a angústia gótica que Peter Hammill sempre empregou magistralmente no rock progressivo alcança aqui proporções vertiginosas. A juntar ao cardápio, três temas maioritariamente acústicos, geniais como os demais e que contribuem para a excelência do disco: a súplica a Wilhelmina para que não perca a juventude, a introspecção de Rubicon e a melancolia face ao vazio das sociedades modernas de Forsaken Gardens. Em suma, um disco grandioso e misterioso, tal como a capa concebida por Bettina Hohls, uma ex-residente dos Ash-Ra Tempel. Para ouvir alto, em reclusão.

IV - In Camera (1974). Claustrofóbico e negro, In Camera abre de forma enganadora com a bela e envolvente balada Ferret and Featherbird. (No More) The Sub-Mariner carrega nas teclas pretas do órgão e solta poeira antiga de um piano tétrico, numa conjunção fatalista e de contido desespero. Prosseguem as agruras da existência humana em exercícios progressivos soberbos como Faint-heart and the Sermon e, especialmente, The Comet, the Course, the Tail. Uma dorida balada parece querer passar sem se fazer notar, mas a voz ecoa fundo demais para passar despercebida. Chama-se Again.
Gog é o tema mais dantesco que Hammill alguma vez engendrou. Um poema e uma melodia arrepiantes, uma entrega vocal nos limites de romper a laringe. Perturbante e dissonante, é o mais parecido com uma queda nos vapores sulfurosos do Inferno que terá sido gravado até hoje. Faz o black metal nórdico parecer minúsculo na amálgama da sua cacofonia... A prossegui-lo surge o igualmente niilista Magog (in Bromine Chambers). O mesmo consiste em 10 minutos surreais, encarcerados numa masmorra de música concreta, ruídos percurssivos e voz artificialmente alterada. Pode ser demasiado para alguns, pode fazer a delícia de outros tantos. Certo é que In Camera é um dos álbuns mais radicais de Peter Hammill, sendo ao mesmo tempo um dos mais amados pelos seus devotos.

V - Nadir's Big Chance (1975). Peter Hammill, o punk. Ricky Nadir, o alter-ego. É provável que se tenha fartado da aura negra que o envolvia desde os últimos lançamentos. Que lançasse um olhar mais cínico por cima dos alfarrábios de Jorge Luis Borges ou Edgar Allan Poe que consumiam e assombravam a sua escrita. Nadir's Big Chance é o álbum mais directo do artista desde Fools Mate. Chega a ser considerado como uma das obras-chave no surgimento do movimento punk em Inglaterra. John Lydon, dos Sex Pistols, cita Hammill como grande influência, assim como David Bowie o fez (o que é óbvio, sendo o caso mais flagrante Station to Station).
Quanto ao disco em si, temas curtos e musculados misturam-se com baladas moldadas com mestria e algum experimentalismo. Realce para o tema-título, Open Your Eyes e Nobody's Business. Been Alone so Long é uma das baladas mais tocantes do reportório Hamilliano. Shingle e Airport são outros dois temas arrastados, cobertos de nuvens cinzentas. Destaque obrigatório para a tepidez quase soul de Pompeii e para o provável melhor tema escondido do álbum, The Institute Of Mental Health, Burning.

VI - Over (1977). A obra-prima do amor perdido. Da frustração e desorientação. Muitos tentaram algo assim, pouquíssimos conseguiram. A dor que transborda de Over é tão forte e tão real que mais nenhum disco lhe chega aos calcanhares em termos de intensidade e exposição das entranhas dilaceradas pela infidelidade feminina. A senhora que Hammill identifica como Alice dá-lhe água pela barba e temas nús e crus como (On Tuesdays She Used To Do) Yoga e Alice (Letting Go) são quase psicanalíticos na assumpção do trauma, na procura dos seus motivos, no desespero da sua resolução. O músico aparece indefeso e amargo em Betrayed; envolto em raiva e ruminações em Crying Wolf. A música é sempre magistral, acompanhando a preceito cada variação emocional, num misto de frieza e flagelação. Somente no último tema, o denso e funesto Lost and Found, parece começar o luto e, com ele, a procura de uma saída. Até lá, há que atravessar momentos dolorosos e cortantes como os do magnífico Time Heals e do admirável This Side of the Looking-Glass. This Side of the Looking-Glass é o momento alto do álbum. Talvez até o momento alto da carreira de Hammill. A sua voz solitária é acompanhada por uma orquestra em crescendo e é das mais sinceras, sofridas e belas canções de amor que ouvi até hoje. Chegou a ser considerada a melhor utilização de uma orquestra sinfónica levada a cabo por um artista externo a este universo. Um poema na fronteira entre a tristeza e a loucura, uma instrumentação de ir às lágrimas, uma ária gótica e suicida. A Itália ama e sempre amou o trovador e os seus VdGG. De todos os actos do progressivo britânico, são aqueles que mais comungam do mesmo sentido composicional e teatral. Hammill chegou a traduzir um álbum inteiro dos italianos Le Orme para inglês e o que se ouve nesta canção é uma intensidade melódica e dramática digna de Puccini. O equivalente rock de Nessun Dorma...
Somente um tema parece afastar-se da temática destroçada do disco. Trata-se da segunda canção, Autumn, que reflecte sobre o envelhecimento e a solidão que acarreta. É igualmente poderosa e não menos inesquecível que as suas depressivas irmãs. Over não é um disco para todos os dias. É para os dias em que precisamos de sentir alguém a sofrer no mesmo espaço que nós.

VII - The Future Now (1978). Se Peter Hammill não tivesse sentido o rude golpe da separação, é provável que este disco fosse o sucessor natural de Nadir's Big Chance. The Future Now percorre um território paralelo, mas corre mais riscos, nomeadamente a nível da experimentação e da inovação, o que faz dele uma das obras mais variadas e interessantes da discografia do músico. Como existe cinema de autor, assim esta música é de autor. Ainda hoje é um disco que surpreende pelo arrojo e frescura, um disco que prova que Peter Hammill foi (e continua a ser) um homem à frente do seu tempo. Muitas das letras são impenetráveis e a sua capa, será, certamente, a mais iconográfica... Um misto de temas adjacentes a uma estranha e bizarra visão da new wave (Pushing Thirty, The Second Hand) juntam-se a baladas outonais (The Mousetrap (Caught in), Still in the Dark) e a experimentos mais ou menos cerebrais. Este últimos são a verdadeira lufada de ar fresco do álbum, e soam diferentes de tudo o que Hammill deixou para trás. É interessantíssimo e desconcertante ouvir temas tremendamente desafiantes e arty como Energy Vampires, A Motor-bike in Africa, The Cut ou Palinurus (Castaway). Um último destaque para os dois clássicos que o disco encerra: a genial balada If I Could e a canção de protesto The Future Now, criações que, ainda hoje, são recriadas nos concertos do artista.

VIII - PH7 (1979). Envergando uma capa que parece saída do expressionismo alemão e que agradaria decerto a Conrad Schnitzler ou aos Kraftwerk, PH7 retorna a espaços mais acessíveis que o disco do ano anterior. Mesmo assim mantém o cinzentismo urbano que tomou conta de Hammill desde 1975. Abre com uma aprazível e trovadoresca balada (My Favourite) e fecha a porta atrás de si com um complexo engenho progressivo de nome Faculty X. Mr X (gets Tense) anda lá perto. De lembrar que os VdGG tinham reduzido o nome para Van der Graaf e a música do colectivo mudou drasticamente para temas mais directos, sem nunca perder a complexidade. Muito ao estilo dos King Crimson, banda que também nunca se deixou atraiçoar pelos clichés do progressivo. Há pistas que intuem a contaminação de arquitecturas pós-punk em grandes temas como Porton Down, The Old School Tie ou Imperial Walls. No lado negro do disco, Mirror Images, a elegíaca Not for Keith e Time for a Change não dão tréguas ao pessimismo e revolvem a massa encefálica do ouvinte que as receba em crise.

IX - A Black Box (1980). Há uns 15 anos atrás, privei uns meses com um inglês, Hammilliano convicto, que me disse que este é o disco mais reclusivo e pessoal de Peter Hammill, surgido depois de uma suspeita de cancro que, felizmente, não deu em nada. Palavras leva-as o vento e não há provas que isso tenha acontecido. Mas o disco é povoado por uma aura angustiante, o que não é estranho ao universo do músico. Todos os temas são fortes e pungentes. Hammill soa urgente, as melodias variam entre o nebuloso e o agressivo, fazendo de A Black Box quase um disco on the raw. Golden Promises e Losing Faith in Words parecem saídos de uma banda rock de garagem, ou melhor, de uma caverna, tal a rudeza e pureza da entrega. Jargon King e The Wipe são quase demenciais, parecendo a última um complemento instrumental da primeira, um objecto descarnado e efeverescente. The Spirit é o mais próximo que o cantor alguma vez se aproximou do rock americano. Dir-se-ia que nas suas costas estariam os Crazy Horse. Fogwalking será o ponto alto do disco. Um passeio nocturno por ruas envoltas em nevoeiro (as da londrina Whitechapel), das quais só se discerne o brilho translúcido dos candeeiros. É poético e sinistro ao mesmo tempo, como se nos convidasse a sair de casa numa noite de Inverno para percorrermos sozinhos as ruas da incerteza. O multipartido e vertiginoso Flight vem encerrar este magnífico álbum, sendo o maior tema que Hammill oferece desde 1974. Espera-se uma miríade de momentos magistrais e não somos defraudados. O cantor assegura praticamente todos os instrumentos neste disco, mas o destaque neste tema vai para o magnífico trabalho no saxofone do Van der Graaf David Jackson, outro músico de créditos firmados.

X - Sitting Targets (1981). Os Van der Graaf estão irremediavelmente extintos. Até 25 anos mais tarde. Os anos 80 parecem ter invadido as edições de Peter Hammill, pelo menos ao nível da produção. Sitting Targets é o disco mais pop do músico. Exigências dos tempos. Há sintetizadores, caixas de ritmos e sons electrónicos que aparecem e desaparecem. Uma estranha sensação instala-se perante a primeira audição de Breakthrough e My Experience. A parafernália técnica é uma bola de neve a crescer na nossa direcção. Mas o conforto é que as composições mantém-se excelentes para além do polimento. Hammill continua a ser Hammill. Ophelia surge como uma das suas grandes baladas, uma canção de amor para as tardes douradas de Outono, aquosa e pastoral. Glue é glacial, uma peça de electrónica distante que parece fora do universo emotivo do músico, mas que resulta magnificamente. Uma palavra de apreço para as igualmente excelentes Empress's Clothes, Stranger Still e Central Hotel. As duas últimas ainda envergam, amiúde, uma pelagem acústica ao vivo que provoca arrepios na espinha pela intensidade da interpretação.

XI - Enter K (1982). Peter Hammill convoca uma banda, The K-Group, que o tem acompanhado ao vivo durante a promoção dos dois álbuns antecedentes. Para o efeito, cada membro da confraria adopta um heterónimo: Hammill será K; o guitarrista John Ellis será Fury; o baixista Nic Potter será Mozart; o baterista Guy Evans será Brain. Paradox Drive parece germinar de um álbum de Lou Reed, com o seu gingar urbano e guitarras a direito. Imediatamente a seguir, a fabulosa The Unconscious Life fecha-nos sozinhos no quarto escuro que procuramos sempre que procuramos Hammill. Enter K será, provavelmente, o primeiro da estética que ainda hoje pontua as suas obras. Um disco de art rock, tão cerebral como envolvente que seduz e ostraciza o ouvinte, provocando-o e desafiando-o, forçando-o a abrir compartimentos mentais fechados ou pouco procurados. Perturbador, mas, em última instância, libertador e catártico. Ouça-se e sinta-se Don't Tell Me para obter um resultado óptimo neste aspecto. Mas a arte ainda viria a ser mais depurada, sendo que objectos como Accidents sofrem ainda da produção obstipada dos anos 80 que deformou igualmente peças de Bowie ou John Cale. Há que gastar mais umas linhas para louvar Happy Hour, canção extensa e intoxicante, ainda e sempre embebida no progressivo da melhor safra e que se arrasta por entre assaltos de algo reminiscente de um flamenco eléctrico e distorcido.

XII - And Close as This (1986). Extintas as últimas chamas do K-Group, Hammill fecha-se na sua ostra para gravar um belíssimo e introspectivo disco de voz, piano e quejandos. Apaziguador e atmosférico, And Close as This reúne um conjunto de oito baladas, clássicas e sem maniqueísmos, das quais é dificílimo extrair um ponto alto. Too Many of My Yesterdays e Beside the One You Love são incontornáveis, coroando o músico como um dos melhores artesãos de canções dos últimos 40 anos. Faith e Sleep Now vergam-nos em pouco tempo, com a entrega e paixão que transbordam. Empire of Delight é mais uma (e já são tantas!) dorida, crepuscular e violentamente poética canção de amor. Os três temas restantes são igualmente consistentes, pelo que não podem ser secundarizados. O disco no seu todo é um contínuo de excelência, uma reunião de canções que crescem a cada audição e que não pretendem ser mais que isso: canções sinceras, maduras e reclusivas, que só pretendem a nossa procura para as fazer viver.

XIII - Spur of the Moment (1988). O nome assim o intui e a audição comprova-o. Este é um disco improvisado, na sua totalidade, um disco experimental construído ao sabor do momento e a meias com o baterista Guy Evans, ex-companheiro dos VdGG. Totalmente instrumental, é o disco mais incatalogável e inadjectivável da obra de Peter Hammill. As sonoridades variam entre o orgânico e o mecânico, mas resultam sempre sedutoras na sua abstracção. Por vezes fazem lembrar Brian Eno, Steve Roach ou Robert Rich. No segundo a seguir, não se parecem com nada disto. Em comum fica o gosto intelectual em arrastar a música para além dos seus limites e convenções. Spur of the Moment é, em suma, um inspirado disco de música contemporânea, que testa a musicalidade da tecnologia e a liberdade composicional que a mesma permite. Não há altos e baixos, da mesma forma como não há meios improvisos.

XIV - Out of Water (1990). Os anos 90 começam bem para Hammill. Trazem-lhe, provavelmente, a obra mais consistente dos últimos dez anos. Após alguns tiros (fora do alvo) ao mainstream ocorridos na década falecida de fresco, nada como o artista assumir que não é popular, porque nunca o foi. Assim sendo, concentrar-se no que melhor sabe fazer é uma excelente solução e Out of Water uma prova indelével desse facto. Enérgico e emotivo, mas não dando descanso aos neurónios, este disco encerra um punhado de clássicos Hammillianos, que ainda são rebuscados e transfigurados nos seus concertos ao vivo. Os devotos agradecem ser abraçados pela teia magistral de Something About Ysabel's Dance. Quase que apetece acusar os Tindersticks de plágio, pois a capa do seu primeiro álbum é uma epifania deste tema épico, que arde lentamente. Evidently Goldfish envereda pelo típico traçado arty do rock de Peter Hammill, mesclando a base deste género com variações rítmicas e líricas do arco da velha e adicionando-lhe as dúvidas existenciais que nunca o abandonam. Not the Man mantém a mesma senda, parecendo que o sentido da existência e as crises de identidade são a eterna demanda do Santo Graal de Hammill. Se o forem, melhor ainda, porque o desassossego filosófico resulta em temas gloriosos como este. No Moon in the Water é um cântico majestoso, idealista perante a evidência da solidão. A concluir, o genial A Way Out é o melhor momento do disco. É aqui que a angústia existencial se ergue numa melodia e letra memoráveis. Há quem diga que o poema fala sobre o suicídio do irmão de Hammill. Se a Wikipedia necessita de citações acerca desta matéria, quem sou eu para a corroborar? Mas as pistas levam-nos a esse triste evento. E deixam-nos lá a contemplar o fim...
Perante um disco sublime, a louvaminhice em excesso pode tornar-se lamechice. E porque Out of Water é uma das grandes obras do músico, o melhor mesmo é levá-lo para casa e apreciá-lo por inteiro.

XV - Room Temperature:Live (1990). Tendo em conta as avassaladoras e emotivas prestações de Peter Hammill em concerto, é complicado apontar uma referência física neste campo. Room Temperature: Live é, talvez, a mais emblemática gravação ao vivo do trovador londrino, muito graças à desconstrução estilística de que a maioria dos temas é alvo. Com a presença do baixista Nic Potter e do expressivo violinista Stuart Gordon (que se tornaria num dos comparsas inseparáveis de Hammill para os anos vindouros), este disco, gravado em público, mas esparso e intimista, dá novas roupagens a clássicos como Vision, Modern e The Future Now. The Wave e Cat's Eye/Yellow Fever (Running) dos Van der Graaf são também conjurados. Temas mais lentos como a lúgubre canção de amor Just Good Friends ou a recente A Way Out ganham em momentum e Patient é entregue numa ambiência totalmente demencial. Para quem já ouviu falar na intensidade dos espectáculos de Peter Hammill mas não teve oportunidade de comprovar, este álbum é um excelente ponto de partida.

XVI - Fireships (1992). Começando na beleza da capa e estendendo-se ao longo de todo o disco, Fireships é uma das obras mais sofisticadamente românticas de Peter Hammill. Não será excessivo afirmar que é, na globalidade, o mais belo dos seus discos. Os temas sucedem-se magistralmente, numa ambiência geral de música de câmara, poética e envolvente. O amor é o cerne da questão, envolto em sóbrias orquestrações e arranjos de ímpar bom gosto. Fireships parece ser o disco de Hammill mais orientado para o público feminino. Não se ouve muita gritaria angustiante e muita prosa existencialista por aqui, mas também não se vislumbram finais felizes nestas vinhetas de doce intensidade e suave inquietação. Dos nove temas, cinco são geniais e nenhuma descrição para além do que oferecem poderá fazer-hes justiça: I Will Find You, Curtains, Oasis, Gaia e, a cereja no topo do bolo, o cinemático e belíssimo His Best Girl.
O tema-título é o único que escapa à tonalidade geral, mas, ao não desviar-se em excesso da rota traçada, assenta que nem uma luva na elegância do todo. Given Time demonstra que a nota inserida no inlay do álbum é verídica: Number One in BeCalm Series. Esta calmaria onírica e de absoluta beleza não duraria muito. Não haveriam números subsequentes nesta jornada. Mas se há algo que Fireships será sempre é um número um. Um vencedor da música bela, erudita, emocionante e de extrema qualidade.

XVII - X My Heart (1996). Após alguns experimentos vagos e flutuantes, o músico regressa às composições clássicas no retorno à forma que é X My Heart, ou, simbologias à parte, Cross My Heart. Tal como o vinho do Porto, a voz de Hammill envelhece graciosamente e torna-se mais apurada. A prova está em A Better Time, magnífica canção com direito a duas versões (a cappella e com banda). A flauta de David Jackson empresta a Amnesiac uma trascendência algo celta e Earthbound é mais uma imaculada pérola a encher a arca das canções de amor Hammillianas. O restante disco assenta na solidez composicional, plena de variações complexas e reviravoltas inesperadas. É um disco para fãs, como todos os seus álbuns mais tardios, um disco que já não se preocupa em evangelizar neófitos, mas somente em pregar aos convertidos. Narcissus (Bar & Grill) foca a veia mais experimental e hermética do músico, o seu estilo único e impossível de replicar. Come Clean desvela o seu lado mais old fashioned e romântico. Ainda e sempre, emerge um torturado trovador às voltas com o amor pelos seus demónios e os seus demónios de amor.

XVIII - Everyone You Hold (1997). Mais um sólido conjunto de canções de Hammill. O disco não foge à dieta imposta pelo seu antecessor. O som é, no geral, esparso mas espacial, como se pretendesse encafuar um céu nocturno e parcamente estrelado num quarto vazio. O tema homónimo é mais um atestado do brilhantismo do músico, capaz de soltar belas canções em catadupa sem fugir ao seu estilo habitual e sem cair na teia da inconsequência. Nothing Comes é uma doce elegia à perda da capacidade de deslumbramento que a idade vem envenenar. Sublime, Phosphorecence tem algo de épico e contido em simultâneo. Algo de angelical e obscuro, como uma melancolia que ilumina o espírito.
E o disco avança, voa lentamente pelo firmamento escuro, arrastando-nos para imensidões góticas e fantasmagoricamente operáticas como Bubble ou para o berço estelar de Tenderness. Quando a aurora desponta, aproxima-se a hora de adormecer.

XIX - The Fall Of The House Of Usher (Deconstructed & Rebuilt) (1999). É sabido que Peter Hammill sempre possuiu um fetiche por temas operáticos e revestidos por uma discreta teatralidade. Essa tendência atingiu o seu auge com a composição da ópera derivada da obra homónima de Edgar Allan Poe. Originalmente editada em 1991, é a versão de 1999 de The Fall Of The House Of Usher que se pode considerar como definitiva. A criação está para a música como um filme de Dario Argento está para o cinema, mas menos sangrenta, obviamente. De qualquer forma, esvai-se das melodias, densas e funestas, um rigor gótico e afectado. Terror psicológico e ambiências tétricas entrelaçam-se sadiamente. O elenco foi composto por:
- Peter Hammill - Roderick Usher e The House- Lene Lovich - Madeline Usher
- Andy Bell - Montresor- Sarah Jane Morris - The Chorus
- Herbert Grönemeyer - The Herbalist
Talvez o nome mais surpreendente aqui seja o de Andy Bell, vocalista dos bombásticos Erasure. Mas a sua voz, forte e expressiva, adequa-se na perfeição ao dramatismo da história. História essa que é, ou deveria ser, sobejamente conhecida. Quem está a leste, pode orientar-se ao longo das trevas com esta versão sonora, que honra tremendamente o conto que lhe serviu de inspiração.

XX - None of the Above (2000). As primeiras notas do século XXI saídas dos estúdios Terra Incognita são vaporosas e melancólicas. Seria difícil começar melhor o milénio, que através da majestosa Touch and Go. Depois, a melancolia acentua-se no amor para além da morte da poética Naming the Rose. O resto decorre no seio da mesma ambiência acústica, entrecortada por brisas operáticas e progressivas e bafejos de música de câmara. Business as usual, portanto. Parente muito próximo de Everything you Hold, None of the Above prossegue o caminho das estrelas. Mas o negro firmamento nocturno parece apenas repelir-nos, distante demais para nos resgatar do ocaso deste mundo. A calma propaga-se lentamente ao longo das oito peças do disco. Apetece que seja Inverno, só para fugir do frio ou acender uma lareira. Para olhar o crepitar do fogo ao som de Tango for One. Ou saborear um whisky velho na companhia do adequadamente intitulado In a Bottle. Peter Hammill não costuma ceder na totalidade a crises existenciais ou a invernos rigorosos. E Astart termina o disco com esgares de alvorada, de um novo começo, da hipótese de redenção. O novo milénio traz o velho Hammill, solitário como sempre, como sempre deliciando os seus fiéis seguidores.

XXI - What, Now? (2001). Mais uma viagem às profundezas da existência, das suas agruras e dos seus absurdos. Se a poesia de Hammill se mantém intocável, a música recupera uma certa aspereza e torna mais vibrantes as palavras. Por esta altura, o cantor é detentor de um estatuto quase indestronável, e cada obra vem apenas prolongar o que, ano após ano, disco após disco, tem vindo a ser apurado. Principiando com uma longa deambulação, reminiscente dos VdGG, Here Come the Talkies é um grande pedaço do melhor rock progressivo. Este pico de intensidade será somente alcançado pelo fortíssimo Lunatic in Knots. Enough premia-nos no final com as vagas vocais de Hammill, ecoando e vagueando, como se clones espectrais o acompanhassem. Percorrendo outro álbum sólido e adulto, pouco mais há a realçar na sua elevada categoria. Lá está a costumeira balada romântica, sendo que desta vez a bela Wendy & The Lost Boy chega e sobra para as despesas. E, na gélida Fed to the Wolves, Hammill abraça o seu papel de crítico das Instituições, descrevendo a sórdida aliança entre Igreja e pedofilia.

XXII - Clutch (2002). Na estrada antiga e familiar que Peter Hammill tem vindo a percorrer nos últimos anos, Clutch é uma curva de brilhantismo. Um assomo de génio puro e de frescura criativa que não se via desde Fireships. Inteiramente acústico, para além de intromissões pontuais de Stuart Gordon nas cordas e David Jackson nos sopros, este é o disco que recupera o bardo de inícios de 70, ou seja, o mais emotivo, delirante e penetrante. Não será demais afirmar que Driven é uma das melhores canções jamais criadas pela paleta de Hammill. We are Written e as ruminações acerca da paternidade de Once you called me são igualmente intensas e memoráveis. This is the Fall encontra-o novamente às voltas com a religião. Just a Child com a pedofilia. Skinny com a anorexia. E, continuamente, as cordas da guitarra pendem como estalactites, geladas e tão distantes como cortantes. Os assuntos escolhidos mergulham no mais fundo e escuro da psique humana. Que mais pode fazer a música senão estremecer tanto como as palavras? O belíssimo momento de forma de Hammill estende-se até ao final, sendo o épico Bareknuckle Trade o canto do cisne perfeito para um disco superlativo e frio como a geada de Dezembro. De referir que este disco granjeou ao músico uma atenção que há muito lhe fugia. As Uncuts e as Mojos deste mundo não se cansaram de o gabar. Coisa que o homem é mais que merecedor. Assim, é pertinente informar que Clutch será, actualmente, a porta de entrada ideal para a música de Peter Hammill e, definitivamente, para os seus trabalhos dos últimos 10 anos.

XXIII - Incoherence (2004). Tendo em conta os padrões de estilo e a proliferação quase matemática dos seus novos lançamentos, algo de que Peter Hammill não pode ser acusado é de incoerência. O título deste álbum parece quase ser um golpe de rins, uma reacção ao sucesso inesperado de Clutch. Mais desafiante e exigente que os recentes discos do artista, Incoherence é, essencialmente, um único tema dividido em 14 partes, que tanto se podem ouvir em conjunto como em separado. Hammill observou que o disco é um álbum conceptual dedicado à linguagem. Os teclados imperam e Stuart Gordon e David Jackson são os suspeitos do costume. Mas, sendo uma obra focada na linguagem, é natural que o ênfase máximo assente na voz. Elástica e expressiva como sempre, a voz de Hammill domina indubitavelmente o disco. Apetece quase recordar a lendária afirmação segundo a qual o cantor faz com a voz aquilo que Jimi Hendrix fazia com a guitarra.
Na sequência sem pausas do álbum, merecem destaque momentos mais plácidos como Gone Ahead ou Babel. O arrojo sobrevém em temas mais cerebrais como Logodaedalus, Cretans Always Lie ou All Greek. Em termos globais, esta incoerência é uma agradabilíssima surpresa de um artista que envelhece mas não cede a facilitismos e continua a saber romper com as tendências, quando estas se tornam demasiado confortáveis.

XXIV - Singularity (2006). É quase impossível não associar a batida seca que franqueia as portas a Our Eyes Give it Shape a batimentos cardíacos. E à lembrança do ataque cardíaco sofrido por Hammill em 2003, pouco tempo após a conclusão de Incoherence. Perante tal evento, não é de espantar que a temática da mortalidade se projecte como uma sombra em todo o disco. Esta peça do jornal Independent, merece ser lida, não só pelo assustador episódio, mas porque permite vislumbrar o que tem sido de Peter Hammill nestes últimos anos.
Voltando à música, Singularity continua a trazer de volta reminiscências do escorpião dos anos 70, no limiar da emotividade e com as entranhas expostas aos elementos. A excelência composicional e lírica assiste a um belíssimo crescendo. Event Horizon e Famous Last Words são do melhor e mais tocante, sinceras mesmo para um artista com 40 anos de carreira. Meanwhile my Mother vê-o a assistir, impotente, ao declínio inevitável da figura materna. É triste, enternecedor e introspectivo. Friday Afternoon é um epitáfio dorido a um amigo prematuramente morto, em que até a melodia parece não querer prosseguir. Para além da supracitada primeira faixa, apenas Vainglorous Boy injecta um pouco de electricidade neste disco hermético, mas igualmente apelativo. E o Hammill mais demencial surge, sem aviso prévio, no tema final, o fabuloso White Dot. Há muito que não o ouvíamos assim. Desde os delírios de In Camera ou da claustrofobia de A Black Box. Como se a morte tivesse espreitado, mas a tivessem feito recuar para as trevas durante um período indeterminado...

XXV - Thin Air (2009). Hammill volta com o seu menino mais novo e, tal como ocorreu no seu irmão mais velho, a controlar na totalidade as operações. Todos os instrumentos e a produção são assegurados por ele. A coesão musical do disco pode assentar nesse facto. É a mesma mente criativa que domina as notas e o ambiente em que são debitadas. Neste campo, Thin Air é um disco ainda mais rarefeito e circunspecto que o seu antecessor. Talvez o facto de os VdGG se terem reunido novamente não exigir que Hammill exercite o seu lado mais bombástico. Talvez a sua vida e o planeta em geral não estejam a precisar de gritos e energia, mas sim de calma e meditação...
Especulações à parte, a mais recente oferta do músico mantém o pico criativo atingido em Clutch e continua a expandi-lo e a dissecá-lo. Há que notar que pouquíssimos dos seus contemporâneos ainda conseguem compôr com este génio, paixão e pertinência. E é um prazer constatar, para um seguidor de longa data como eu, que Thin Air não tem um único ponto fraco. São nove grandes canções, plenas de engenho e arte, tão oblíquas quanto apaixonantes. The Mercy, Your Face in The Street (belíssima e hipnótica), Stumbled, Diminished, a docemente trágica The Top of the World Club... Nesta altura do campeonato não se pode pedir mais a este enorme artista. Com a qualidade que teima em presentear-nos, agradeço que construa mais 25 labirintos...

23 de setembro de 2010

Electronic Bliss

O helénico nome de Alexis Georgopoulos esconde a identidade de um californiano. De um californiano fascinado pelas espirais planantes da electrónica germânica dos anos 70 e pelas ambiências widescreen de Brian Eno. Fascínio de consideráveis proporções, na medida em que o fez enveredar por um caminho solitário, deixando para trás os Tussle, interessante banda de São Francisco cuja sonoridade contempla de perto o krautrock e o dub. O resultado de tal transição chama-se Arp.
Profundamente imerso na abstracção da electrónica vintage e nos movimentos oceânicos dos Neu!, o projecto Arp transborda igualmente de luz solar. Como se a ancestralidade grega do seu criador injectasse o azul do Mar Egeu na formal rigidez alemã. O primeiro álbum, In Light, de 2007, é uma obra idílica e salpicada de sonho, tragando os ensinamentos de Eno e adicionando-lhes a elegância simples dos Cluster de finais de 70. Imagine-se Roedelius e Moebius, inspirados, em Amorgos ou Anafi. O resultado seria, decerto, algo como The Rising Sun. St. Tropez remete-nos, inevitavelmente, para o tema homónimo dos Pink Floyd e para o grandioso Meddle, o disco dos verões escapistas. Mas aqui são sintetizadores e não guitarras as gotas salgadas e o sol da manhã que nos tocam a pele. Fireflies on the Water devolve a lembrança das gloriosas colaborações entre Eno e os Cluster, especialmente o crepuscular After the Heat. A vastidão flutuante e expansiva de Odyssey revê as primeiras sinfonias siderais e as quedas no abismo electrónicas dos Kraftwerk e Conrad Schnitzler. Potentialities é uma delícia metronómica, um contínuo e vibrante pulsar, uma caixa de música que esconde vestígios dos Neu!. No saudável revivalismo da música electrónica alemã dos anos 70 que tem vindo a acontecer na última década, In Light é um ramo da árvore genealógica dos mestres.
Pouco mais (ou menos) se pode dizer do seu sucessor, o recentemente editado The Soft Wave, tirando o facto da luz parecer mais baça. Logo ao despontar, a belíssima Pastoral Symphony enche de júbilo qualquer amante de Brian Eno, Eroc, ou Cluster. Aliás, este tema podia figurar perfeitamente em Sowiesoso ou Grosses Wasser destes últimos, que não alteraria decerto a sua personalidade. White Light acrescenta um círculo de guitarra e baixo aos omnipresentes sintetizadores de primeira geração, vestindo-lhe uma suave roupagem dub. A cristalina Catch Wave traz a aragem de um piano, que nos empurra para a ponta de uma falésia e nos convida a olhar o mar. Summer Girl evoca outro colosso da sofisticação ambiental: o genial Another Green World de Brian Eno. E eis que o pai da música discreta desponta novamente na única peça em que se ouve a voz de Alexis Georgopoulos. É uma pastiche descarada de Emily de John Cale, cruzada com as atmosferas mais plácidas e outonais de Before and After Science. Até a guitarra soa a Robert Fripp. Dá pelo nome de From a Balcony Overlooking the Sea e é um sonho viciante para os meus ouvidos. Arrebatador!
Intui-se destas linhas que nada de novo se passa aqui. Errado. Esta música magistral continua tão fresca e rica, tão simples e tão bela, como no dia em que os seus influentes alquimistas a criaram. Chamemos-lhe passagem de testemunho. Chamemos a In Light um disco a amanhecer. Chamemos a The Soft Wave um disco a anoitecer. Chamemos-lhe o que quisermos, mas reconheçamos sempre que é deslumbrante.


21 de setembro de 2010

Tropicósmico

A música brasileira dos anos 70 está recheada de tesouros escondidos e selvas por desbravar. Os frutos do movimento Tropicália pendem, polposos e sumarentos, da frondosa vegetação artística de terras de Vera Cruz. Casos pontuais de génio:
A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (Os Mutantes);
A Little More Blue (Caetano Veloso);
A Tábua de Esmeralda (Jorge Ben);
Clube da Esquina (Milton Nascimento e Lô Borges);
Paêbirú (Lula Cortês e Zé Ramalho);
Gita (Raúl Seixas);
Todos os Olhos (Tom Zé). Para além da música, este último merece atenção pela vetusta criação da sua icónica capa.
Nos meandros do colorido matagal desta época, um disco especialmente belo e encantatório é o álbum homónimo de Nelson Ângelo & Joyce, datado de 1972. O nome do duo pode avivar torturas auditivas como Sandy & Júnior ou Chitãozinho & Xororó, mas, afortunadamente, fica por aí. Esta música vem do interior, dos confins húmidos das matas, mas possui igualmente o doce embalo da bossa nova e a transcendência da folk psicadélica. Sobressaem os duetos, etéreos e mornos como a chuva de Verão. Um Gosto de Fruta é particularmente sublime, Mantra é delicadamente narcótico. Na toada tendencialmente acústica, o melhor instrumento é a voz de Joyce Moreno, suave e fluida, algures entre Astrud Gilberto e a Joni Mitchell sem nicotina. Hotel Universo é um aveludado sombrio para os nossos ouvidos.
Composto por canções breves, como raios de sol, como nuvens que passam, Nelson Ângelo & Joyce é evocativo das brisas pacíficas da west coast, das harmonias vocais de Crosby, Stills & Nash e do psicadelismo eremita, que comunga com a Natureza e volta costas ao betão. Detém o poder do ritmo vintage brasileiro em Tiro Cruzado e arrisca brilhantemente construções mais complexas como o belíssimo Vivo ou Morto. Sete Cachorros, cantado por Nelson Ângelo é uma pequena fatia de paraíso folk tropical, que Nick Drake poderia ter composto, numa canoa, no Amazonas. Tudo começa de Novo encerra o álbum, dolente balada que progride em lenta e ritualística combustão e que poderia ser um tema perdido dos primórdios dos Amon Düul. E é porque tudo começa de novo, que este belo disco pode ser o modo ideal de dizer adeus ao Verão que se aproxima do fim. Com nostalgia, mas sabendo que ele voltará.

1 de setembro de 2010

Surfistas Prateados

Com apenas dois álbuns, os Silver Apples tornaram-se num dos projectos musicais mais influentes dos anos 60. Sem eles, é muito provável que os Neu!, os Kraftwerk, os Suicide e a electrónica dançável não tivessem surgido. O duo resultou da parceria entre o baterista Danny Taylor e o vocalista enigmaticamente conhecido por Simeon. Simeon tocava um insondável instrumento com o mesmo nome, que segundo o próprio, consistia em nine audio oscillators and eighty-six manual controls...The lead and rhythm oscillators are played with the hands, elbows and knees and the bass oscillators are played with the feet.
É impossível não associar o nome do agrupamento à peregrina composição Silver Apples on the Moon do pioneiro da electrónica Morton Subotnick. Porém, longe das paisagens áridas, lunares e fustigantes desta criação, o duo nova-iorquino conjuga o futurismo e a frieza da maquinaria a melodias e sensibilidades empolgantes e envolventes.
A primeira obra-prima, Silver Apples, surge em 1968, libertando a inocência monstruosa e audaz da ruptura e da genialidade. Os cinco primeiros temas são inesquecíveis e não causariam espanto se fossem compostos por um qualquer colectivo electrónico do ano da graça de 2010. Oscillations balança como um pêndulo à frente dos nossos olhos, invasivo pelo bombear de bleeps e hipnótico pela enxurrada rítmica. Seagreen Serenades é indefensável, o ritmo pulsante parece levar cada músculo à submissão. O foguetão progride, vertiginosamente, esmagando-nos contra os assentos, mas a bizarria de uma flauta muito folk segreda-nos que ainda estamos em Terra. A viagem é puramente mental. Lovefingers está para 1968 como uma rave party está para 1994. Sons subliminares e faiscantes, a cadência repetitiva da bateria e os ecos psicadélicos da voz que se projecta para além da utopia hippie. Aqui, as flores que se usam no cabelo têm o peso da cintura de asteróides. O brilhantismo inusitado acentua-se em Program. Um início de luna park antecede uma canção que resultaria em guitarra acústica, mas que os Silver Apples transformam em hipnose despojada e minimal, interrompida no seu trajecto por estações de rádio avulsas que surgem do acaso. A tendência canção folk tornada espiral electrónica continua em Velvet Cave. Os Suicide conseguem ser mais agitadores, mas nunca tão perturbadores. A partir do sexto tema, é natural que o efeito surpresa desta profética obra de estreia se desvaneça ligeiramente, mas a genialidade perdura até ao último segundo. Dancing Gods é uma penetrante revisitação de uma cerimónia Navajo e Dust parece ser a antecâmara para os poemas cósmicos debitados por Robert Calvert nos surreais concertos dos Hawkwind.
Em 1969, é editado Contact. Não existem grandes desvios musicais em relação ao primeiro registo, aparte uma atmosfera geral mais sombria e o uso do banjo (em Ruby e Confusion), que acentua a ideia de hillbillies electrónicos, um misto de raízes criogenadas pela tecnologia. Logo a abrir, You and I é um dos melhores temas dos Silver Apples. O abandono pulsante do primeiro álbum parece ter dado lugar a uma maior urgência, um ponta de ansiedade difícil de disfarçar. Water faz-nos orbitar à sua volta, ora sugando-nos, ora repelindo-nos do seu centro de gravidade. Os presságios de paranóia do primeiro álbum tornam-se realidade em temas como Gypsy Love ou o denso A Pox on You. Simeon e Taylor atingem aqui uma elevada capacidade de manipulação sonora e ambiental, invertendo o olhar da escuridão do espaço para as trevas que nos habitam. Contact termina com o desvario psicadélico de Fantasies, oscilante e muito intoxicado.
Após a súbita desaparição que sucedeu a estes dois discos, a recuperação dos Silver Apples deu-se com a reedição conjunta dos mesmos em 1997. O revivalismo desaguou na edição de um punhado de álbuns, que não fez os mestres superar aprendizes entretanto surgidos como os Stereolab ou os Spacemen 3. O que realmente fica para a história são aqueles dois primeiros álbuns, únicos e inimitáveis, e em cuja criatividade o futuro começou a ser traçado.