25 de outubro de 2012

Kosmische Kosmetik XLIV

Wolfgang Bock é um nome raramente pronunciado quando se fala na escola electrónica alemã, especialmente a berlinense. Este explorador de sons caiu praticamente no esquecimento, mas o seu primeiro disco é um tomo fundamental na enciclopédia da música sintetizada e analógica.
Cycles, de 1980, surge numa altura em que os grandes clássicos do género pareciam estar já editados e serem inultrapassáveis, mas é tudo menos uma revisão decadente da matéria dada.
As comparações com o estilo de Klaus Schulze são, porém, inescapáveis. Ambos comungam da mesma energia planante, da vastidão das paisagens sonoras, da electrónica cósmica e ausente de gravidade. O que Wolfgang Bock traz de novo são fraseados rítmicos que tiram a música da suspensão e a lançam num trilho meteórico. Uma versão algo anfetaminada de Schulze. O tema-título, que abre o disco, define bem esta sonoridade. Arranca em animação suspensa e termina num ritmo pulsante, latejante, de cadente dança estelar. Seguem-se as duas partes de Robsai, a primeira uma delícia física e estimulante de sequenciadores, a segunda uma elegíaca e intensa ode cósmica de curta duração. Changes traz a mudança, para uma melodia luminosa e um ritmo circular, orgânico, que termina às apalpadelas às paredes de um buraco negro.
Stop the World conclui o disco e recupera a cadência hipnótica e a indução ao transe. É um tema que eleva a electrónica cósmica à condição de energizante musical e não ficaria mal numa proto-rave party, salpicada a ácidos e não a ecstasy.
Cycles vale sobretudo por ser uma alternativa mais acessível à caracteristicamente hermética e experimental electrónica germânica sua contemporânea. Mesmo assim, em breve surgiriam as radicais mudanças estéticas trazidas pela década de 80 e este estilo de música foi relegado para um nicho e diluiu-se na paleta berrante desses anos. O epíteto Super Bock não assentaria nada mal a este senhor. Mais que um disco, o fim de um ciclo.

18 de outubro de 2012

Post-Punk is not Dead



O período pós-punk abordado por Simon Reynolds no seu essencial Rip It Up And Start Again situa-se entre 1978 e 1984, anos curtos mas que deixaram marcas profundas no panorama musical.
O próprio título da obra (surripiado a uma canção de 1982 dos escoceses Orange Juice) indica que foram anos revolucionários. Uma era em que a urgência e visceralidade semeadas pelo punk foram depuradas por estéticas mais elaboradas mas sem perda de intensidade, como se a agressividade e a confrontação se tornassem eruditas. Reynolds, um dos mais esclarecidos e influentes críticos musicais britânicos da actualidade, traça um retrato abrangente e completíssimo do movimento pós-punk, o que resulta num compêndio imprescindível para o entendimento da sua génese e evolução.
Joy Division, Public Image Ltd. ou A Certain Ratio são algumas das muitas bandas deste período dissecadas no livro, projectos que podem ser considerados uma espécie de punk arty e literato, tendo em conta o background académico de muitos dos artistas e as suas referências culturais e intelectuais. Para além do modernismo e experimentalismo inerentes a esta corrente, é palpável também o activismo político que caracterizou os anos imediatamente a seguir ao fenómeno punk. Colectivos como Pop Group ou Gang of Four conseguiram agregar mensagens desafiantes a uma música muitas vezes radical.
Rip It Up And Start Again não se limita a ficar suspenso nesta bolha temporal. Reynolds acaba por acompanhar os destinos de muitos destes músicos vanguardistas, dos que cederam às pressões comerciais dos anos 80 aos que acabaram por desaparecer. O próprio termo pós-punk entrou em criogenia em meados dessa década infame, sendo apenas revisto e actualizado nos princípios do século XXI, com o advento de bandas como Interpol, Franz Ferdinand ou Rapture. A qualidade destes e outros projectos revivalistas veio provar uma vez mais que este movimento, apesar de fugaz, lançou raízes e estabeleceu-se como influente para discípulos desviantes.

9 de outubro de 2012

Desespero e Resolução

Ao segundo álbum, os australianos Dead Can Dance puseram de lado as guitarras. O acentuado travo gótico foi suavizado pela adopção de um som mais expansivo, assente em instrumentos clássicos e repositório assumido de influências medievais.
Em 1985, nada soava como Spleen and Ideal no universo dito pop. O disco foi um dos marcos na implementação da editora 4AD como uma das mais visionárias e marcantes fontes de música alternativa nos anos 80. A imagem austera, o rigor formal das composições e a solenidade cerimonial da atmosfera fizeram de Spleen and Ideal a mais que provável obra definitiva dos Dead Can Dance.
Musicalmente, o disco continua a ser um assombro. Uma celebração de dias cinzentos, uma descida em espiral a subterrâneos de melancolia, uma liturgia grave e sombria. Tacteamos as paredes dos túneis escuros à procura da luz que se adivinha para logo se desvanecer. Há uma dualidade omnipresente nesta obra, uma dicotomia entre claro e escuro, conflito e apaziguamento. Baudelaire abre as suas Fleurs du Mal com uma série de poemas condensados como Spleen et Idéal e é óbvia a apropriação do conceito pelos Dead Can Dance. Tal como nos versos do poeta francês, o mundo de Brendan Perry e Lisa Gerrard está afogado num desespero silencioso, num permanente tédio (verdadeiros sentidos do termo spleen). O ideal seria a troca deste mundo sensaborão pelo culto da beleza, pela rejeição do físico abraçando o imaterial. Neste ponto, Spleen and Ideal pode ser absorvido como um ritual iniciático, uma depuração espiritual. A vastidão widescreen do som eleva-nos e convida igualmente à introspecção. Vejam-se títulos como De Profundis (Out of the Depths of Sorrow) ou Indoctrination (A Design for Living), respectivamente as peças colossais que abrem e fecham o álbum. A atmosfera é severa, quase monástica, e revestida de uma beleza fria como paredes de claustros. Lisa Gerrard dá voz à primeira, na sua clássica vocalização que transcende a linguagem para comunicar emoções intensas. Brandan Perry canta na última, no seu notável misto de estoicismo e sentimento.
Entrementes, somos levados em marcha lenta numa travessia etérea, onde as trevas medievais são recuperadas à luz do século XX. O pulsar tenso de Advent, as trompas funestas de The Cardinal Sin e a cadência marcial do magistral Enigma of the Absolute, todas entregues por Perry, carregam letras de pesado existencialismo. Gerrard transforma Circumradiant Dawn, Avatar e Mesmerism em lamentos possantes, cânticos de beleza terrível.
Autêntica catedral sonora, o segundo disco dos Dead Can Dance mantém o fascínio e o poder de há quase 20 anos. Somente em The Serpent's Egg o duo australiano conseguiria aproximar-se desta força composicional e interpretativa, já com as influências da world music que viriam a marcar a sua sonoridade nos anos mais tardios. Desespero e resolução na busca pela perfeição: eis Spleen and Ideal.