17 de fevereiro de 2010

Thinking Heads


Se as bandas pop inteligentes fossem partes integrantes de um cérebro, os Talking Heads seriam o seu hipotálamo: demasiado complexos para o seu tamanho, todavia emotivos e influentes nas funções mais básicas. Se é hiperbólico referirmo-nos desta forma ao quarteto nova-iorquino, é porque eles não merecem menos. Durante metade da sua existência foram incontornáveis como banda pioneira e persecutora de novas sonoridades, ideias e cruzamentos. É certo que, em momentos-chave, constituíram o laboratório e o repositório de outra mente brilhante da música moderna, Brian Eno. Exceptuando os Roxy Music, nunca este último esteve tão próximo de uma banda como seu membro honorário como dos Talking Heads. Os U2 pagaram-lhe bem melhor, por isso não os convém deixar ficar mal (never shit where you eat, as they say...), mas presume-se que os Talking Heads terão sido uma aventura bem mais solta e entusiasmante...
Tudo remonta a 1975, ano em que os Talking Heads se consolidam como banda de quatro elementos: 3 estudantes de design (David Byrne, Tina Weymouth e Chris Frantz) e o ex-guitarrista dos Modern Lovers (Jerry Harrison). A sua cidade, New York, atravessava um dos períodos artísticos mais inovadores e marcantes, com a eclosão do esconso CBGB's e a consequente explosão de actos inesquecíveis como os Television, Ramones, Blondie, Richard Hell ou Patti Smith. Os Talking Heads, contudo, não se regiam somente pela electricidade urgente e pela energia despojada da maioria das bandas do punk nova-iorquino. Mais sofisticados e próximos das correntes avant-garde e do art rock gravado com o cunho da Big Apple, embarcam numa sonoridade mais experimental e menos directa, se bem que extraordinariamente melódica e acessível. Logo, mais próxima dos Television e de Patti Smith que dos eternos Ramones...
Após o tradicional circo de demos e singles, o álbum de estreia da banda homenageia o ano da sua edição: 77 é, ainda hoje, um clássico incontornável, um misto de música fresca e ingénua, mas igualmente inteligente e de vistas largas. Estão lá a imortal paranóia dançarina de Psycho Killer, a quietude enganosa que acaba por se esfrangalhar de No Compassion e o trote rítmico altamente intrusivo de The Book I Read. Destaque especial para a primeira canção, Uh-Oh, Love Comes to Town, onde se denotam já ténues nuances de ritmos caribenhos que indiciam as incursões pela world music que os Talking Heads levaram a cabo de forma tão pioneira como influente. Não tão ténues são as vocalizações de David Byrne. Para além de cantar, Byrne parece já encarnar diferentes personagens em cada canção, ou a mesma personagem em diferentes cenários. Os nervos parecem estar constantemente em franja e a realidade, por mais agradável que aparente ser, mal disfarça a neurose subjacente. Byrne parece sempre um homem desconfortável, que esconde qualquer coisa, que desconfia de algo, que tudo lhe causa estranheza. E esta abordagem é uma das relações causa-efeito do génio dos Talking Heads: a neurótica banda simpática.
Em 1978, o som de banda de garagem intelectual apruma-se com a chegada de Brian Eno. O galope nervoso que levanta pó em Thank You For Sending Me an Angel é mais coeso, a música mais panorâmica. More Songs About Buildings and Food, segundo álbum dos Talking Heads, arranca assim, abruptamente, mas a variedade prevalece ao longo dos seus 40 minutos. Existe a guitarra angular e o tom new wave falsamente idílico de The Good Thing. Está lá o ritmo aquoso mas frio do magnífico Warning Sign, com a voz única de Byrne no seu demencial melhor. Junte-se a excelente e levemente subvertida versão do clássico soul de Al Green Take Me to the River à paisagística descrição da América interior pincelada a slide guitar do belíssimo The Big Country e obtém-se um disco ainda melhor que 77.
Os Talking Heads tornam-se um caso ainda mais sério com a edição de Fear of Music, terceiro álbum, datado de 1979 e um dos melhores da década que vem encerrar. Há quem lhe chame art punk e o desígnio encaixa-se bem, não obstante ser uma obra profundamente ecléctica e vanguardista. No campo da música moderna, existem poucos álbuns tão visionários e radicais, mas que conseguem manter audíveis os seus intentos. É este o disco de I Zimbra, peça que faz acreditar que a banda se mudou de Nova Iorque para a Nigéria, provocando a simbiose de influências musicais de ambas no seu ADN. É igualmente o disco de Drugs, bad trip disfarçada de música, e em que o sentimento de estranheza, paranóia e desligamento da realidade quase nos toca a pele. Fantásticas, Cities e Memories Can't Wait assentam em pilares mais convencionais, mas David Byrne consegue, como sempre, virá-las do avesso com interpretações à beira de um colapso nervoso. Tal como em Animals, em que é plausível duvidar da sanidade mental do cantor, nem que seja por um bocadinho. O lirismo inusitado também não ajuda: Air é uma canção de protesto contra a atmosfera...
Nos píncaros, merecem ser colocados dois temas: o magistral disco-sound alienado de si mesmo e anti-festivo de Life During Wartime e a suspensão temporal do onírico e perfeito Heaven. O refrão Heaven, heaven is a place /A place where nothing ever happens é, ao mesmo tempo, calmante e agitador.
Se a banda termina os anos 70 com um dos marcos discográficos da década, irrompe pelos anos 80 de mesma forma. Para além de ser o melhor álbum dos Talking Heads, Remain In Light é um dos 100 melhores discos de sempre da música popular. É o zénite do grupo, a consolidação ideal da parceria com Brian Eno. Imensamente afectado pela música africana, nomeadamente o Afrobeat do genial Fela Kuti, ainda hoje transborda para além dos seus horizontes. Uma produção state of the art de mãos dadas com composições tão inteligentes e originais como acessíveis, fazem de Remain In Light algo diferente de tudo o que se tinha feito até então. Aqui reside o primado do ritmo. Mais ou menos intenso, é ele que dita as regras, que manda o cérebro mover o corpo. A maior parte dos temas é mais longo que o habitual na banda, e eles evoluem e contorcem-se tribalisticamente. Todo o disco é um ritual, hipnótico e libertador. Não existem temas medianos, o deleite e o delírio são constantes. Logicamente, não há fuga possível do omnipresente Once In A Lifetime, um dos maiores sucessos do grupo e o tema mais in your face de Remain In Light. Mas é como um todo (e bem alto) que o disco deve ser ouvido, como um contínuo de ideias em associação livre, uma nebulosa sonora que se expande e se contrai à nossa volta. Favoritos pessoais são o cerimonial de ecos índios em Listening Wind, o trompete de Jon Hassell que se espraia, fumarento, pelo funk minimal de Houses In Motion e o extático e sugador The Great Curve, rasgado a meio pela guitarra diamantina de Adrian Belew. Tudo o resto, um panegírico. Apetece dizer que, nestes tempos, qualquer melómano mais esclarecido que não tivesse os Talking Heads como uma das suas bandas-fetiche, estava morto e ainda não tinha sido avisado...

Byrne & Eno

No período que mediou Fear of Music e Remain In Light, David Byrne e Brian Eno entretiveram-se nos seus tempos livres a criar uma das obras musicais mais importantes da história. My Life In The Bush Of Ghosts, editado em 1981, é um objecto raro, do qual convém aproximarmo-nos com cautela. Quem espera encontrar os Talking Heads sintetizados sai defraudado, pois o máximo que aqui extraímos da banda é a sua aura, as suas influências, o seu interior convoluto. Quem espera encontrar Brian Eno e David Byrne a cantarem alegremente sobre as tapeçarias ambientais do primeiro e a sensibilidade melódica do segundo, deverá dirigir-se ao segundo álbum que a dupla lançou em 2008, Everything That Happens Will Happen Today. Radicalmente diferente, é um disco de belas e plácidas canções, ao contrário do seu estimulante e desafiador parente arcaico.
Em My Life In The Bush Of Ghosts não se ouvem canções. Ouvem-se exercícios de corte e colagem, samples de evangelistas radiofónicos, pregadores irados, exorcistas a exercerem, vozes arábicas a ecoar no éter. Tudo isto entrapado numa vertiginosa roupagem sonora, embrionária de tantos estilos que vieram mais tarde a disseminar-se na electrónica, na música ambiental e na world music. Já tinha sido feito, mas nunca de forma tão subversiva. Verdadeiros agents provocateurs, Eno e Byrne legaram às gerações vindouras uma das primeiras provas de que, na música, tudo se pode imiscuir a bem do produto final. Ouça-se Regiment, The Jezebel Spirit e Help Me Somebody para confirmação. Ouça-se Mountain Of Needles para posterior e total relaxamento...

Na ressaca do pináculo atingido nos últimos 3 anos e com o fim do casamento perfeito com Eno, os Talking Heads iniciaram o seu lentíssimo mas nobre declínio. Esta decadência apenas se fez sentir a nível artístico, pois a nível comercial, foi a partir de 1983, e com o lançamento de Speaking In Tongues que a banda iniciou o seu crescendo. Menos experimental e fora dos limites que os dois poderosos antecessores, é, ainda assim, um disco extremamente chamativo e colorido. Burning Down The House é pop perfeita, na qual os Talking Heads se sentem como peixe na água. O mesmo se pode dizer da contagiante Girlfriend is Better, igualmente irresistível e à espera que lhe saquem a cavilha para providenciar uma explosão dançante. De resto, está lá outro material de fino recorte como a estranha mistura de funk e blues de Swamp e a habitual neurose, coreografada e ritmada, em Making Flippy Floppy. E a belíssima That Must Be The Place (Naïve Melody), em que os músicos trocam de posições e tocam outros instrumentos que não os seus costumeiros. Esta música é a banda-sonora das ídílicas férias balneares da minha infância, nostálgica, pacífica e solarenga...
Na ausência de Eno, era mais que natural que uma personagem como David Byrne assumisse total preponderância no grupo. No fim de contas, quando se fala em Talking Heads é a sua imagem que se materializa desde logo. Iconicamente nerd, Byrne entrevista-se a ele mesmo aquando da propaganda ao seminal filme de culto Stop Making Sense, de 1984, que retrata magistralmente um concerto da banda. E ninguém como ele consegue explicar melhor o nonsense das suas letras e o sentido da sua arte. Eis o resultado:


Em 1985, com o polido e imediato Little Creatures, os Talking Heads conseguem o seu disco mais acessível até à data. E a meio da década do optimismo e da produção musical glossy, canções como And She Was e Stay Up Late servem que nem uma luva. Imerso no júbilo constante, está um clássico incontornável: o magnífico Road To Nowhere, decantando gospel e existencialismo light.
No ano seguinte, vem à tona True Stories, construído à base das canções compostas para o primeiro filme do debutante realizador David Byrne. Bem longe dos estranhos constructos rítmicos e das divagações psicanalíticas de outrora, o álbum sobrevive graças a dois soberbos temas: Dream Operator e City of Dreams, duas quase-baladas encantatórias feitas de melodias widescreen, fáceis de ouvir, mas desavergonhadamente belas. Wild Wild Life é mais um adictivo single de sucesso e Radio Head merece destaque por ter dado o nome ao colossal quinteto de Thom Yorke. Mais banda querida dos yuppies que da tribo punk e arty que os viu nascer, os Talking Heads desta época tornam-se indissociáveis dos anos 80 americanos. Bret Easton Ellis não se cansa de os mencionar nos seus primeiros romances, especialmente no inesquecível e perturbador Less Than Zero.
Naked, de 1986, faz brilhar novamente a ténue centelha dos tempos mais criativos da banda. Mas a produção já não é a mesma e o disco não arrisca de forma tão lunática como antes. Podemos falar numa revisitação à obra-prima Remain In Light, mas sem a espontaneidade de outrora. De qualquer forma, os Talking Heads despedem-se aqui em boa forma, plenos de dignidade e com um grandessíssimo tema de ouvir e chorar por mais: (Nothing But) Flowers, hino ecológico embebido na guitarra fresca do convidado Johnny Marr. A invasão de estilos latinos e africanos, florescente em Mr. Jones ou Totally Nude é sintomática do futuro a solo de David Byrne. Os Talking Heads só viriam a reunir-se em 1991, para gravarem o seu canto do cisne: Sax And Violins, superlativo tema encomendado para a igualmente superlativa banda-sonora do filme Until The End Of The World de Wim Wenders.

É praticamente redundante falar da influência dos Talking Heads na música da actualidade. Nomes como Arcade Fire são flagrantes, assim como os Clap Your Hands Say Yeah e os Vampire Weekend. Até os Tom Tom Club, projecto paralelo levado a cabo por Tina Weymouth e Chris Frantz encontra hoje sucedâneos em bandas como os excelentes Dirty Projectors. Nova banda americana que se preze (os fantásticos Local Natives são os mais recentes...) cita-os e emula-os, directa ou indirectamente, mantendo viva a chama. E, enquanto assim for, as cabeças que já não são falantes, mantém-se presentes como catalisadoras de cabeças pensantes. Same as it ever was...

Crisálida

Os Catapilla são mais uma daquelas bandas que só se encontram se esgravatarmos bem fundo nas areias do tempo. Perdidos no limbo psicadélico de finais de 60 e princípios de 70, deixaram apenas dois álbuns como legado. O primeiro, homónimo, data de 1971 e é um caldeirão iridescente de jazz ácido e rock progressivo desregrado, tão sedutor como esquivo, tão arrebatador como intrigante. É impossível não mencionar Embryonic Fusion, o bacanal sónico de 25 minutos que lhe põe termo. O segundo, Changes, viu a luz do dia no ano seguinte e apresenta-se bem mais interessante e depurado que o seu irmão mais velho.
Guiado igualmente pela parafernália saxofónica do influentíssimo e infelizmente malogrado Robert Calvert e pela voz acrobática de Anna Meek, Changes é um marco incontornável no cruzamento entre a implausibilidade do jazz e a inevitabilidade do rock. Atmosférico q.b., o disco alonga-se por não mais de 4 faixas, todas elas de duração considerável, todas elas perfeitas para meditação, reclusão, desligamento temporário da realidade. Reflections, primeiro tema, desliza como bicho-da-seda sobre folha verde, lenta e viscosamente, o saxofone e o órgão a debaterem-se por entre a voz de Anna Meek, que parece oscilar entre os guinchos de banshee da Kate Bush dos primórdios e a genuína pedrada (herbal ou qualquer que seja...) de Grace Slick. O ritmo é bombeado em força e a velocidade é estanque, sendo o final da peça um ecoante delírio fantasmagórico, inesperadamente acústico e invadido por sombras inquietas, invocadas pela voz de Meek. Diamanda Galás bem poderia ser uma delas, que parecem carpir à distância...
Charing Cross atenua a gélida performance concluída segundos atrás, revelando-se mais morna e dominada pelo sopro melódico mas parcimonioso de Robert Calvert. Protótipo descarnado de canção jazz, inflecte a meio caminho por um ritmo frenético e espacial, não muito longe dos desvarios fora de órbita dos apocalípticos Hawkwind, outro dos part-times do free-lancer Calvert. A terminar, um soberbo e planante solo de guitarra de Graham Wilson, que coloca o tempo em suspenso à medida que se escoa em fade-out.
Thank Christ for George escancara-se à partida como um forte e belíssimo exercício jazz-rock. Traz reminiscências dos magníficos Nucleus e dos seminais Soft Machine, gente incontornável por estas alturas na velha Albion... Anna Meek junta-se à festa, com voz felina e enfeitiçada. A partir daí, a música entra em transe, um transe nocturno e psicadélico da melhor safra, dos que penetram o cérebro e não lhe dão descanso. E o acme chega à quarta faixa. Simplesmente magistral, It Could Only Happen to Me é a melhor criação dos Catapilla. Três minutos iniciais em que o saxofone de Calvert despeja uma beleza e um langor quase seráficos, antes de se deixar impregnar pela guitarra em sinuoso improviso. A envolvência é extrema e, à medida que a música progride, somos enredados num sublime casulo sonoro. É um daqueles temas que só peca por ser escasso e que, ao terminar, nos impele a ouvi-lo de novo.
Como em todas as crisálidas, esta pouco ou nada nos exige em termos de movimentos. Changes é uma escuta incorpórea, ideal para serões solitários em que a alma pede alimento e a mente pede estímulo.

1 de fevereiro de 2010

A Emoção das Máquinas

Os praticamente ignorados Ultramarine introduziram na electrónica dos inícios da década de 90 influências da folk britânica e explorações inteligentes de gentes de Canterbury como os Soft Machine ou os Caravan. Every Man and Woman is a Star, álbum que os deu a conhecer aos poucos iluminados que fizeram caso disso, trazia na bagagem texturas ambientais e elegantes, humanizando a electrónica e desafiando a sua abstracção com samples de Kevin Ayers e dos Matching Mole.
Após esta obra, já de si surpreendente, o duo britânico constituído por Ian Cooper e Paul Hammond conseguiu a proeza de maravilhar ainda mais os adeptos mais livres-pensadores da música dita de dança. Com o lançamento de United Kingdoms em 1993, os Ultramarine juntam-se a uma ténue vaga de criadores de electrónicas e batidas que não se resumem ao minimalismo e à repetição até à exaustão para justificar a toma de MDMA. Nomes como Aphex Twin, The Orb ou The Future Sound of London saíam das respectivas tocas para consagrar o Techno e a Trance como música que também pode ser inteligente, desafiadora e estimulante para lá das fronteiras físicas. Uma fonte de inspiração e de experimentação cujos horizontes são extensos. Os Ultramarine fizeram-no magistral e majestosamente no disco eleito para hoje. Respirando tradição e herança celtas por todos os poros, não conterá propriamente música para acompanhar a leitura d’ O Mabinogion (é demasiado solarenga e beatífica), mas abre a porta a um deslumbrante mundo de escapismo e fantasia. Como se druídas da pós-modernidade se reunissem em Stonehenge e celebrassem com música do seu tempo, mas que não quebrasse a ligação com o mais arcaico; como se as florestas se enchessem de sons festivos e luxuriantes, mas baseados na antiga comunhão entre Homem e Natureza, por antítese à alienação e os excessos que dominam essa relação no presente. Electrónica verde, Techno ecológica.
Todo o álbum encerra uma miríade de delícias que vagueiam entre o tecnológico e o orgânico. A liberdade é total. Repare-se no início da primeira faixa, Source, fabulosa porta de entrada, em que um acordeão nebuloso é digitalmente alcançado, irrompendo daí um ritmo lento e tribal, emparelhado em simultâneo por flauta e maquinaria. Kingdom é a primeira de duas belíssimas canções de travo mais pop às quais o imenso Robert Wyatt dá voz. A flauta que lhe dá personalidade é inesquecível. A outra é Happy Land e possui um interlúdio de saxofone nada menos que fosforescente. Sabendo que o senhor não coloca a sua venerável voz em qualquer palavreado, a primeira é uma adaptação de um poema do século XIX intitulado The Song of The Lower Classes e a segunda uma farsa social dos tempos vitorianos. Basta uma única leitura de ambas, para concluirmos que continuam a ser tristemente actuais...
Ritmos mais vincados e dançáveis surgem em Queen of The Moon ou Dizzy Fox, mas mantendo sempre um sentido de aventura e a frescura melódica dos instrumentos de sopro. A comunhão total entre homem e máquina sente-se na perfeição em The Badger, soberbo tema em que palmas e inflexões de voz aparentemente sem sentido são parte integrante da música, que nos embala a espaços com um violino em arrasto e exala um doce aroma jazzístico. Os ecos de uma Canterbury tornada electrónica propagam-se na flagrante revisitação aos Matching Mole feita em Instant Kitten e na longa deambulação de English Heritage, cujo coda só peca pela escassa duração do devaneio melódico. Percorrendo territórios experimentais mais limítrofes, mas sem nunca descambar no bacoco, Urf ensaia um funk abstracto e o genial Hooter enlaça uma circular cadência rítmica a uma tontura narcótica e constante que faz as vezes de melodia. Provavelmente, o ponto alto do disco. No Time encerra-o subtilmente, fazendo a súmula dos elementos que ficaram para trás. A toada é sombria, quase crepuscular, o saxofone e um velhinho Hammond tomam conta da ocorrência. Aos poucos, dá-se o ocaso e o silêncio instala-se sobre um disco todo ele feito de sensações e que deveria ser alvo de um reconhecimento maior e merecido. No entanto, nunca é tarde...
Em certos momentos, United Kingdoms pode parecer datado, oriundo dos primitivos inícios de 90. Os discos dos Kraftwerk também o parecem e é no seu pioneirismo que ainda hoje reside todo o seu génio, charme e influência. Aliás, como os próprios Kraftwerk afirmaram um dia, as máquinas possuem vida e emoção. Ipsis verbis o que se passa aqui...

Invocações

Ontem, ao abrir um velho baú que tresandava a mofo e insecticida, dei de caras com diários que mantive durante a adolescência. Devem ter durado entre 1991 e 1996. Voltei a eles intermitentemente uns anos depois, para em breve os votar definitivamente ao ostracismo. Tinha 25 anos e esta é a última coisa que lá escrevi. Num blog que, não raras vezes, revisita o esquecido e exalta a nostalgia, fui incapaz de deixar de fora esta peça, escrita com as entranhas.

Lisboa, 31 de Março de 2001


Encontro-me novamente em Alfama, na casa que me viu crescer, infelizmente pela última vez. A casa vai passar para outras mãos e eu fiz questão de vir aqui passar a última tarde, fumar um Cohiba e mergulhar no passado.
Pouco mais resta na centenária casa, que a cadeira onde me sento e a mesa onde escrevo. Tal como tudo na vida, esta casa foi envelhecendo, sofrendo a erosão inexorável do tempo, implodindo à medida que o mundo lá fora crescia. Esta é a primeira tarde primaveril do ano, o que contrasta com a tristeza que me invade nestas horas. Preparo-me para abandonar o meu refúgio, que antes fora porto de abrigo, antes disso castelo e, primordialmente, selva por desbravar. Lembro-me de como estas paredes, divisões e recantos, que agora parecem tão gastos e frágeis, foram, na minha meninice, infindáveis mundos paralelos, consoante o Sol, as tempestades e as noites de luar ou sem ele, entrassem pela pequena varanda.
Havia partes da casa onde o Sol nunca entrava, tal como na minha alma, horizontes de luz e trevas. Costumava demorar-me nas trevas, em silêncio, até sentir um arrepio na espinha e correr em direcção à luz. Costumava ficar inundado de luz até me sentir tão forte que partia em direcção às trevas, com resquícios de Sol nos meus olhos.
Metade da minha vida parte e desvanece-se com esta casa, que agora parece tão irreal e estranha como sempre foi, mas destituída do seu poder e magnetismo genuínos. Lembranças, essas, ficam imensas, intensas e eternas. Uma porta oculta entre duas paredes, encimada por um janelo, que não levava a lado nenhum. Noites de Verão à varanda com o meu avô, o meu verdadeiro pai, a descansar a minha cabeça nos seus braços, olhando o interminável empedrado negro que se estendia como um manto até ao fim da rua. Tocar nos ramos da árvore que perdurou anos em frente da janela, acabado de acordar, para sentir a frescura orvalhada das folhas. Descobrir, em sigilo e com olhar febril, o sexo, com toda a ingenuidade e malícia das crianças. Conquistar o mundo com bonecos da Playmobil e fazer dos lençóis brancos da minha cama os desertos do Faroeste. Assustar com requintes de malvadez a minha avó enquanto ela cozinhava e fugir a rir para debaixo da cama mais próxima. Ouvir Heavy-Metal aos berros para atrair as atenções de meninas púberes como eu, que subiam e desciam a rua (escusado será dizer que isto somente as afugentava...). As tardes de chuva, taciturnas e melancólicas. As manhãs de Sol, encandeando-me com a sua beleza plácida. Dias e noites de doença, dor, medo da morte. Sonhos e pesadelos. Partidas e chegadas. Eternas saudades. Amor.
Passaram-se vinte e cinco anos. Eu, aos poucos, por entre quedas no abismo e apalpadelas em escuros túneis, tento conquistar a sensatez. Muita coisa se tem passado ao longo do percurso e esta casa sempre esteve presente em tudo, como a torre de menagem da minha existência. Agora vou perdê-la, perdendo parte de mim, e tentar encontrá-la noutro lado, perto ou longe.
O precioso Cohiba acabou. Deu-me prazer vê-lo arder. Um destes dias irá, certamente, apetecer-me outro. A única diferença é que o prazer dos charutos é alcançável, a sua carência colmatável com alguma facilidade. O contrário se passa com esta casa. Dá-me prazer estar dentro dela, mas vai deixar-me perpetuamente insatisfeito com a sua ausência. Se me apetecer voltar a entrar, a porta vai negar a minha chave, as janelas fechar-se-ão e as paredes recordar-se-ão de mim como um em muitos que, durante os 262 anos da sua existência, tentaram ver nelas gravados os seus rostos para toda a eternidade. A saudade já me corrói. É sempre uma atrocidade ter que dizer adeus ao que amamos verdadeiramente. Nunca mais cá voltarei. Adeus, meu velho palácio!