29 de junho de 2011

Negritude

A união faz a força. Quando os raios atravessam o ar em alturas de tempestade, provocam o fenómeno conhecido como trovoada. A colisão entre Archie Shepp e Philly Joe Jones, captada em Paris no ano da graça de 1969, é um trovão ribombante e invasivo. O primeiro é (ainda) um saxofonista de excepção, um dos pioneiros do free jazz e do cruzamento entre este género e o tribalismo que o infectou nos anos 60. É dono de discos fabulosos desta era como The Music of Ju-Ju e The Way Ahead. O segundo foi um criativo baterista, que fez a escola primária no bebop e se licenciou em  jazz modal. Constam do seu currículo memoráveis colaborações com Miles Davis ou, como líder, Showcase.
O encontro foi, já se sabe, bombástico. Shepp apresenta-se sozinho, debatendo-se no vórtice intenso do sexteto de Jones. O ilustre colectivo, composto, entre outros, por luminárias como o violinista Leroy Jenkins e o saxofonista Anthony Braxton, desarruma convenções e passeia pelo caos.
Archie Shepp & Philly Joe Jones é jazz livre na sua mais pura forma. Uma imensidão sensorial, abrasadora como o inferno. Um quadro impressionista vermelho sobre fundo preto. Uma ferida aberta.
Desçamos ao cenário, quente e fumarento, onde tudo se passa. Vozes possessas, gritos vagos, desencadeiam a entrada apocalítica de Shepp, logo seguido por Jones. Segue-se uma avalanche de quase 20 minutos chamada The Lowlands em que a liberdade é total. Chicago Beau interrompe pontualmente o cataclísmico idílio com récitas inflamadas, primárias. A música avança em linha recta, violentamente inebriante, e sentimo-nos como se estivéssemos a escutar tudo numa sauna. A peça pretende reflectir a vida dos negros no sul dos Estados Unidos e o sentimento de cerco e opressão é magistral, o que enfatiza o poder da libertação interior.
A segunda e última composição do disco divide-se em duas partes e intitula-se Howling in the Silence. A parte a), Raynes or Thunders começa por intuir um falso swing antes de resvalar para a abstracção intensa do improviso emocional. Chicago Beau irrompe novamente, qual pregador atormentado, e o violino tresmalhado de Leroy Jenkins acrescenta uma atmosfera de pântano sulista ao tema. A parte b), Julio's Song, inflecte para o trilho dos blues, nomeando a harmónica de Julio Finn que aqui se faz ouvir como um eco remoto do delta do Mississippi. A música gira em transumância, percorrendo os quatro cantos do jazz e arrasta-nos com ela para um estado de vadiagem mental. O disco que começou aos berros acaba por esvair-se num último estertor de harmónica e contrabaixo, sussurrando don't try this at home...
Archie Shepp & Philly Joe Jones é uma das experiências mais limite do jazz, qualquer que seja o ramo da sua árvore genealógica. Para a posterioridade ficou uma gravação crua e pouco depurada, um som visceral e escuro, que num momento ataca e no outro seduz. Diamante jazz por lapidar...

27 de junho de 2011

Voz Activa

O magazine online I See Voices surgiu com uma premissa interessante: colocar individualidades das artes e das letras a falar de tópicos universais. Projecto alemão, foi criado em 2008 pela mão da criativa produtora independente Svenson Suite. Desde então, aglomerou mentes pensantes tão variadas como Dieter Kosslick, Jon Savage ou Wim Wenders a dissertar sobre temas tão subjectivos e etéreos como o gosto, a violência, a velocidade...
A subjectividade acaba por ser o elemento mais saboroso de I See Voices. Cada cabeça sua sentença e, concorde-se ou não com o que os intervenientes afirmam sobre a temática que lhe coube, acabamos sempre por ser estimulados, por, irreflectidamente, reflectir.
Apesar de ter mais pernas para andar que uma centopeia, o projecto caiu no silêncio em 2010. Prematura e lamentavelmente, pois é gritante o muito que ficou por dizer por gente que vale muito a pena ouvir. A última cabeça (literalmente) que falou foi Charles Michael Kittridge Thompson IV (Black Francis nos Pixies, Frank Black a solo). Foi erótico...

24 de junho de 2011

Matemática Aplicada

Voltaram os Battles. Desta feita reduzidos a trio, após a saída do líder Tyondai Braxton. Com uma perda desta envergadura, os cépticos começaram a temer pela consistência criativa da banda nova-iorquina. Braxton é a prova que quem sai aos seus não degenera. Filho de um dos mais inovadores e vanguardistas músicos de jazz de sempre (o saxofonista Anthony Braxton), o júnior foi o grande motor dos primeiros passos dos Battles e da cerebral mas estranhamente contagiante música exibida em Mirrored, o álbum de estreia. A crítica coçou a cabeça e chamou-lhe muita coisa, como por exemplo Math Rock. Estilo oblíquo e assente em estruturas angulares e complexas mudanças de ritmo, este Math Rock não foi inventado pelos Battles. As suas origens perdem-se na noite dos tempos, sendo que equações musicais foram anteriormente formuladas por várias bandas, dos Henry Cow aos Cardiacs, passando - fatidicamente - por Frank Zappa e Captain Beefheart.
Quem teve o privilégio de ouvir Mirrored em toda a sua frescura, guardou certamente na memória a forma como o disco cruzava o experimentalismo laboratorial aos grooves mais abrasivos e apelativos. Ritmos e melodias vindos directamente do futuro baralhavam as regras do presente. Provas óbvias, auditivas mas também visuais, foram imortalizadas assim:





Os Battles de 2011 renunciaram parcialmente a esta herança. Reinventaram-se, não querendo ser ruínas de uma outrora torre altaneira. Como um cão com três patas, equilibram-se e andam, sabendo que a pata que falta será sempre notória. Tyondai Braxton complicou, os Battles simplificaram. O ex-líder manteve-se fiel aos seus ideais e lançou-se numa experimental e exploratória carreira a solo. O seu único álbum até à data, Central Market, de 2009, mantém os grooves potentes e as estruturas imaginativas, condensando-os a elementos de música clássica contemporânea. O resultado é tão curioso como interessante.
O agora trio suavizou ligeiramente a sua sonoridade. O novo disco, Gloss Drop, não é uma cedência ao facilitismo, mas acaba por ser uma obra mais luminosa e menos matemática. A complexidade técnica ainda ferra o dente no ouvinte e pressentem-se extravagâncias prog, mas a abordagem é mais branda e até - pasme-se! - dançável. Africastle, My Machines (parceria improvável com Gary Numan) e o esplendidamente excêntrico Ice Cream (em conluio com o ás chileno da electrónica Matias Aguayo) são passos em frio decididos e desempoeirados. São os Battles a deixar entrar o verão na equação.



Os Battles de hoje provam que souberam resistir à perda de um líder carismático sem perder identidade, criatividade e a capacidade de nos presentar com sons nunca antes debitados. Gloss Drop deixa água na boca para as possibilidades que se seguirão. Resta saber se ao vivo conseguirão acender o pavio que Braxton deixou apagado e que chegava a fazer arder cérebros em proporções devastadoras...

18 de junho de 2011

Second Life

E ao sétimo dia, os King Crimson descansaram. Após uma sucessão de sete obras absolutamente marcantes na história do rock, o colectivo eternamente liderado pelo fleumático Robert Fripp hibernou numa auto-imposta criogenia. Renovados e extasiados, retornam em 1981 com o seu provável melhor álbum desde o debutante e imortal In The Court Of The Crimson King, de 1969.
O objecto foi denominado Discipline e abriu caminho da melhor maneira à segunda vida dos King Crimson. Heróis do progressivo, nunca se deixaram afogar nas águas paradas da indulgência, constituíndo - juntamente com os Van der Graaf Generator - a facção mais aventureira, interessante e experimental desta estirpe. Poucas foram as bandas que romperam tão drasticamente com o seu passado como os King Crimson em Discipline. É sabido que sonoridades mais vanguardistas e cerebrais despontavam já nas duas obras que o antecederam, Red e Starless and Bible Black, ambas de 1974. Mas a tónica assentava ainda em temas expansivos, complexos, orbitando em elipse à volta dos arquétipos do prog rock. Há que destacar obrigatoriamente o último tema do grupo antes de entrar no seu wormhole: Starless, a derradeira faixa de Red, uma composição quase obscena na sua perfeição e que devia ter uma sala própria na Tate Modern onde tocasse ininterruptamente. Discipline vem reciclar o que restava desta leva, transformando a música num pot pourri de new wavepós-punk e recaídas de virtuosismo.
Antes da concepção do disco, apenas o baterista Bill Bruford e o omnipresente guitarrista Robert Fripp restavam da anterior encarnação. A eles juntaram-se Tony Levin no baixo (e no curioso Chapman stick) e Adrian Belew na outra guitarra e voz. Fripp estava fresquinho de uma série de colaborações com Brian Eno e David Bowie, assim como no rescaldo de um belíssimo álbum a solo (Exposure, de 1979). Belew era recém-chegado dos territórios dos Talking Heads, tendo igualmente sido parte integrante da banda que acompanhou Bowie. Com dois guitarristas de excepção (Fripp, o mestre virtuoso e Belew, o jovem vanguardista) e uma secção rítmica de respeito, Discipline só poderia ser um caso sério. E foi.
Simultaneamente leve e sombrio, o disco é constituído por um conjunto imaculado de temas límpidos mas complexos. Nota-se distintamente a influência do Bowie berlinense e dos Talking Heads sob a égide de Eno. Nota-se igualmente um saudável lado selvagem a espreitar por cima do ombro da lendária circunspecção da banda. Elephant Talk soa a desordem urbana, a informação cheia de ruído. Thela Hun Ginjeet mostra os King Crimson em elevada temperatura rítmica e espontâneo storytelling, numa composição que poderia estar em My Life in the Bush of Ghosts de Brian Eno e David Byrne ou em Fear of Music dos Talking Heads. Indiscipline faz pender a balança para o lado do rock mais musculado, entrecortado com o discurso spoken word de Adrian Belew. The Sheltering Sky e Discipline são dois excelentes instrumentais, o primeiro insistindo numa cadência algo étnica e dançável, se bem que introspectiva, o segundo prosseguindo o mesmo registo, mas revelando texturas circulares e algo hipnóticas.
Os dois grandes momentos do disco são, sem dúvida, Matte Kudasai e Frame By Frame. Matte Kudasai significa espere, por favor em japonês. Encapsula, efectivamente, algo de zen e suspende-nos no vazio ou à tona de um vasto leito oceânico. Belíssima e intemporal canção, prova igualmente que os Radiohead não encontraram sozinhos a passagem secreta para OK Computer e os padrões que o seguiram. Esta é uma das óbvias influências de Thom Yorke e seu bando. Frame By Frame é a imagem perfeita de Discipline: a simbiose entre a canção e como fugir aos seus clichés; a cisão entre o estranho e o familiarmente audível. Territórios povoados no início dos anos 80 por Bowie, Eno ou os Talking Heads aos quais o colectivo britânico junta a sua sapiência e a sua ciência.
Discipline não só franqueia de par em par as portas para a renovada existência dos King Crimson, como lhe estende um honroso tapete vermelho. Por onde passeiam ainda hoje, na corte de um reino que só a eles pertence.





Esta aparição dos King Crimson merece um apedrejamento pela imagem (eram os 80's, não esqueçamos...), mas uma chuva de pétalas pela música exibida. Para quem não consegue esquecer a dantesca visão de Adrian Belew num fato cor-de-rosa, aqui fica o líder dos King Crimson, um dos melhores e mais inovadores guitarristas de sempre, a puxar dos seus galões e a derramar os seus Frippertronics. Inigualável!


15 de junho de 2011

Insubmission

Os Sex Pistols nasceram (ou foram fabricados) em 1976, mas não custa nada imaginá-los hoje, a irromper lares adentro pela TV em horário nobre ou a esporear o puritanismo com alfinetes-de-ama. Assaltaram-nos quando o mundo musical se estava a transformar num tédio pomposo e o mundo real era um cigarro a arder esquecido num cinzeiro. Os dias que partilhamos deveriam igualmente ser partilhados por eles. Porque o mundo não melhorou desde que nos desafiaram a Nevermind the Bollocks. Deviam assinar um contrato discográfico em frente de uma agência de rating e re-dedicar No Feelings ao neoliberalismo fundamentalista.
Se existe uma expressão cliché, ela é Punk's Not Dead. Proliferou durante os anos 80, diminuiu nos anos 90 e pereceu definitivamente no novo milénio com o surgimento de nados-mortos como Green Day ou Blink 182. Aqui vai um pequeno auxiliar de memória do tempo em que os bois eram chamados pelos nomes. Um momento de ruptura que, mais ou menos artificial, deixou a marca de um ferro em brasa na pele de Inglaterra, revolucionou a cultura da juventude e devolveu a música pop à vox pop. Pela mão de Julien Temple, a segunda vez depois de The Great Rock'n'Roll Swindle, a voz foi dada ao Sex Pack. Entreguem-se, renovada e revoltadamente, à insubmissão.

10 de junho de 2011

Kosmische Kosmetik XXV

O triumvirato (este termo é altamente persecutório...) Manuel Göttsching, Klaus Schulze e Hartmut Enke formou os Ash Ra Tempel em 1971. É nesse mesmo ano que surge a primeira criação elaborada por estas lendas do krautrock. Ash Ra Tempel, o álbum, é uma das maiores odisseias sonoras produzidas na R.F.A. liberta de constrições e perdida nos braços da transgressão.
Mais que um disco, esta obra de estreia é uma experiência auditiva massiva, sem rédeas e sem gravidade, nascida no vácuo e nele perecida. Não vale a pena falar em composições. Elas não existem. O que subsiste de Ash Ra Tempel é a espontaneidade, o experimentalismo e descompromisso que abraçam os seus lados A e B e cujo efeito é demolidor.
Amboss entra em cena como um big bang electrónico expandido pela bateria enorme de Klaus Schulze. Quando a inevitável explosão ocorre, destroços musicais espalham poeira cósmica por todo o lado, deixando Schulze a pulverizar o vazio com o seu ritmo impressionante e Göttsching a navegar por entre os detritos com a sua guitarra indomável e infinita. Ouvido bem alto, Amboss esmaga sem contemplações. Exige exercícios de aquecimento e de posterior relaxamento. Uma monstruosidade sónica, impiedosa e rarefeita...
Traummaschine é o reflexo invertido do seu antecessor. Contido e fechado, abandona a toada space jam para enclausurar-se na sua câmara mortuária mal iluminada. Basta ver a capa e o inlay de Ash Ra Tempel para conceber este imaginário. A pirâmide entreabre a sua porta e leva-nos pelo seu labirinto. No centro mais recôndito está o sarcófago. No seu interior está a química sublime de guitarra e percurssão, inalantes como vapor, inebriantes como incenso sagrado. Este tema assemelha-se a uma união entre céus e terra, caminha pelo limbo da realidade sem nunca deixar as trevas, sem nunca perder a luz de vista.
O imaginário da civilização mais fascinante da Antiguidade cruza-se com o space rock à moda germânica. O produto da experiência resulta em psicadelismo atmosférico com sussurros de blues intergalácticos. Poderia bem ser a banda sonora de Eram os Deuses Astronautas?, livro algo kitsch de Erich von Däniken muito popular na altura e que conjugava a Ufologia à evolução da espécie humana e das religiões. Silogismos à parte, entremos pois no escuro labirinto de Ash Ra Tempel. Tochas não incluídas...

9 de junho de 2011

Kosmische Kosmetik XXIV

Georg Deuter, conhecido artisticamente apenas como Deuter, é tido nos nossos dias como um dos expoentes máximos da New Age. Este rótulo, que provoca calafrios a muito boa gente devido às suas conotações bacoco-espirituais, não veda totalmente o universo deste artista. Deuter tem praticado um estilo de música meditativo e contemplativo desde a última metade dos anos 70, com a sua dose de incontinências (e inconsequências) pseudo-orientais, mas há um aspecto de sinceridade e pureza na sua obra que lhe confere crédito que baste.
No entanto, nem sempre foi assim e é isso que importa. O primeiro álbum do músico alemão, datado de 1971 e intitulado D, é justamente considerado um trabalho fulcral da primeira investida da kosmische musik.
A ponte Ocidente-Oriente que caracteriza os discos de Deuter começa já a ser projectada em D. Os cinco temas que o compõem assentam invariavelmente numa estrutura ritualística, propícia ao recolhimento e à meditação. Mas estas cinco krautragas não demontram grande simbiose com a divindade. A menos que o misticismo seja induzido por dietilamida do ácido lisérgico... D é um disco intoxicado e intoxicante, que nos leva a crer que a mente do músico não estaria certamente no mais limpo dos estados neste período.
Babylon é uma sinfonia psicadélica em quatro movimentos. Do alto do seu quarto-de-hora de duração, derrama guitarras aquosas e distorcidas, teclados crepusculares, percurssão em frémito e uma miscelânea desordenada de sons exteriores. O quarto andamento, em que tudo converge, é particularmente destabilizador.
Depois deste alucinante clássico cósmico, acreditamos que tudo é possível. Der Turm/Fluchtpunkt vem carregar ainda mais o ambiente irreal, com o ritmo salpicante, a guitarra em modo fuzz e as electrónicas em constante zumbido. É um ataque à nossa paz de espírito, é realmente bom. Krishna Eating Fish and Chips chega para a devolver, como um bálsamo depois do turbilhão. A cítara, circular e suspensa, aprisiona o tempo para libertar a mente. Uma guitarra dança com ela. A peça induz torpor, mas não estupor, e lembra os momentos igualmente transcendentes dos Popol Vuh. De águas escuras e profundas emerge Atlantis, envolta em suspiros electrónicos. É o tema mais experimental do disco e igualmente o mais sombrio. Gammastrahlen-Lamm continua a veia mais ambiental. Composto apenas por um solitário e minimal sintetizador, arrasta-nos devagar para o fim do disco, abstraindo-nos, subtraindo-nos...
D é uma obra totalmente descomprometida. A sua manifesta e bela anarquia parece deixar transparecer um cérebro comandado por estranhos poderes. Bem que deveria ter sido estudado nesta altura, o cérebro de Deuter... Discos assim escasseiam cada vez mais.

7 de junho de 2011

Fina Flor


O aspecto mais interessante da seminal revista Wire é a sua incompletude. Esta publicação britânica, a mais importante fonte de divulgação da música realmente nova, nunca se instalou no trono das verdades absolutas. A operar desde 1982, a Wire mantém-se eternamente jovem, constantemente deslumbrada com a originalidade e inovação das novas gerações de artistas que tem visto despontar.
The Wire Primers é um excelente livro editado sob a chancela da revista (e de selecções do seu regular colaborador Rob Young) e baseado numa rubrica inconstante da mesma. A temática destes Primers assenta na selecção e discussão de determinados estilos musicais, das suas obras e personagens de referência. É um óptimo guia na imensa espeleologia das cavernas musicais, principalmente as mais profundas. O livro propriamente dito faz um resumo do melhor e do mais importante editado nesta secção, subdividindo-se em quatro partes distintas: Avant Rock, Funk, Hiphop & Beyond, Jazz & Improvisation e Modern Composition. Cada um destes assuntos delicados é entregue à pena de variados escribas, mas o estilo mantém-se sempre uniforme e, especialmente, apelativo. Pela importância e pela capacidade de injectar vitalidade em áreas tradicionalmente rebuscadas, merecem destaque os capítulos sobre Captain Beefheart, Frank Zappa e Sonic Youth. Outros, como os dedicados a John Cage ou à cena Noise, são mais académicos e menos apaixonados, mas mesmo assim dão vontade de investigar.
Escusado será dizer que este livro é feito à medida dos seguidores da Wire, acarinhando com especial ternura os estilos e artistas que mais tem ajudado a divulgar ao longo dos últimos 30 anos. Foi publicitado como um complemento ao monumental The Rest is Noise de Alex Ross, mas não alcança o estatuto de clássico dessa importantíssima obra. The Wire Primers é, em suma, uma referência incompleta. Um estudo que indica caminhos, irradia influências e impele ele próprio a estudar. Filho de peixe sabe nadar.

4 de junho de 2011

Dieta Mediterrânica IX

Defraude-se quem vem aqui à procura dos góticos de Northampton. Cinco anos antes deles voltarem do mundo dos mortos, alguém se apropriou musicalmente do nome da escola de Gropius. Eram italianos, surgiram de rompante e assim se sumiram. A única prova da sua existência é Stairway to Escher, álbum gravado de uma assentada, ao vivo em estúdio, coisa inebriante e intensa. A arquitectura do jazz rock impregna o disco, uma música quente e suada, comunicativa e contagiante. Muito na senda dos Return to Forever ou dos Weather Report.
Stairway to Escher apresenta-se mais como uma raridade que como uma referência musical. Mas, como troféu de caça que é, a qualidade dos seus elementos, quer humanos quer artísticos, nao pode ser olvidada. Formado por alguns elementos dissidentes dos Buon Vecchio Charlie (já falados aqui), os Bauhaus distanciam-se do centro de gravidade do rock progressivo e passam à translacção em volta do jazz. As guitarras eléctricas ainda subsistem e a energia pulsa insistentemente. Mas o ouvido expande-se perante os empurrões do improviso, que fazem do disco uma espécie de saudável anarquia e uma espontânea demonstração de exuberância musical.
Tudo flui com método e improviso em Stairway to Escher. Não existem pontos fortes ou fracos. É um disco que abre buracos que ao mesmo tempo vão sendo tapados. The Lonious Gropious e Modulor são essencialmente geniais, jazz rock com botox a realçar as suas partes mais carnudas. Ri-Fusion e Tipi di Topi saltam fora do seu eixo e só são apanhados a tempo de evitar a projecção definitiva fora de órbita. O tema-título é escolástico na forma como aborda a fusão entre jazz e rock.
Belíssima fornalha musical, o único legado dos Bauhaus italianos é obrigatório para viciados em experiências híbridas dos anos 70 e para amantes da música em desalinho.

Dieta Mediterrânica VIII

Virtuosidade e paixão, eis a melhor forma de definir os Arti e Mestieri. Esta lendária banda italiana, cambaleante entre o jazz de fusão e o rock progressivo, ainda está no activo, produzindo música com algum interesse. No entanto, é no seu despontar e consolidação que reside o génio. Após a agradável e influente surpresa que foi Tilt - Immagini per un Orecchio, primeiro álbum que vale o seu peso em ouro, Giro di Valzer per Domani depura definitivamente os Arti e Mestieri como mestres europeus da fusão nos anos 70.
Enquanto Tilt... assentava em temas longos de estrutura complexa que se desenrolavam em regime de improviso, o segundo registo do grupo oferece composições mais curtas e directas, se bem que igualmente vertiginosas na entrega e no entrechoque de instrumentos. Apesar da complexidade inerente, Giro di Valzer per Domani é um disco extremamente audível e sedutor. Adiciona aos elementos jazzísticos e à precisão cerebral um irresistível perfume latino. Melodicamente imaculada, a música é luminosa e viva. Bebe tanto nas águas límpidas de Canterbury como no misticismo caloroso da Mahavishnu Orchestra. Poderia bem ser uma conversa musical entre Miles Davis e Herbie Hancock em Sirmione, circa 1975...
Alguns temas são vocalizados, o que aproxima os Arti e Mestieri de muita da produção prog italiana da altura (caso típico é o excelente Saper Sentire). Mas são as peças instrumentais, no seu dócil frenesim, que mais se agarram à pele e aí se incrustam, resistindo ao tempo. Valzer per Domani, Mirafiori ou Dimensione Terra são alguns dos melhores exemplos a dar. Energia contagiante, melodias soberbas e instrumentação irrepreensível (especialmente o violino em estado de graça). Em suma, uma obra-prima de fusão progressiva. Merece uma palavra especial de apreço Furio Chirico, um dos melhores bateristas de sempre, a catapulta do disco, que trata as peles com desvairada galhardia. A prova dos nove está em Sagra, Mescal, Da Nord a Sud...
Giro di Valzer per Domani é mais uma referência da Itália musical dos anos 70. A representação ideal do tratamento transalpino dado à música fusional. A arte está na sedução, o mistério no imprevisível.

3 de junho de 2011

Gene Dominante

Os Byrds foram pródigos na disseminação de grandes músicos norte-americanos. Roger McGuinn, David Crosby e Gram Parsons fizeram parte do seu concentrado sonoro, um dos mais ilustres da história. Mas é o seu génio mais obscuro e a sua melhor obra que falam mais alto hoje. Gene Clark - o verdadeiro cosmic cowboy - e o honorável No Other.
Imediatamente antecedido por dois excelentes álbuns (Roadmaster e o magnífico White Light) em que country rock e folk se misturavam com ingredientes mais elaborados e arranjos de subtil bom gosto, este registo de 1974 é o lado perfeito do triângulo. Ainda um disco que encontra no country rock e na folk a sua força motriz, No Other acaba por transcender os géneros e de ser, a espaços, inclassificável. Uma obra maior em todos os sentidos, em que arranjos quase barrocos dão as mãos a canções imensamente tristes e belas. Strenght of Strings conjuga harmonias vocais a la Byrds com uma orquestração de reminiscências orientais. Como em quase todo o disco, a voz de Clark quase dói ao ouvir. E o resultado é de uma melancolia tão transcendental que não admira que o tema fosse recuperado em Filigree & Shadow pelos 4AD all-stars This Mortal Coil. Céus negros abraçam o voo de Silver Raven, espectral e expansiva balada que cruza Neil Young e a atmosfera gótica e poética de Poe ou Hawthorne.
Tal como a beleza, a inspiração parece nunca esgotar-se ao longo de No Other. A quantidade de estranhos efeitos, de diferentes instrumentos e de overdubs propaga-se ao longo do disco. Se essa inspiração é ditada por substância ilícitas nunca saberemos, mas o que é certo é que influências country e folk raramente soaram tão etéreas e narcóticas como em Some Misunderstanding ou From a Silver Phial. E o arrasador tema-título tem cicatrizes de psicadelismo ao longo da sua pele. Os momentos mais límpidos e convencionais surgem nos temas que evocam o passado musical de Clark: Life's Greatest Fool e The True One. Ambos seriam a banda-sonora perfeita para ressoar entre as paredes de um honky-tonk sofisticado. A terminar, Lady of the North é outra estupenda balada barroca, romantismo de pradaria em estado puro. O álbum desvanece-se com o cowboy cósmico a desaparecer rumo ao pôr-do-sol...
É mais que recomendável a edição remasterizada de No Other que saiu em 2003. A soberba produção do disco ganha imenso com as novas roupagens. Gene Clark, infelizmente já falecido, pode ter uma certeza esteja onde estiver: There will be No Other like him.

2 de junho de 2011

Kosmische Kosmetik XXIII

A obra a solo de Edgar Froese sempre viveu à sombra do seu trabalho das 9 às 5, os Tangerine Dream. Mas o pai dos mestres da electrónica assinou, em nome próprio e nos anos 70, registos que rivalizam e até superam as conquistas do colectivo. As diferenças principais entre eles residem na implosão meditativa de Froese, que contrasta com as explosões espaciais dos Tangerine Dream. Epsilon in Malaysian Pale, disco de 1975, é uma magnífica porta de entrada para o imaginário do músico alemão, um mundo paralelo de planante mas exuberante beleza. Imagine-se uma floresta, virgem como todas as florestas perfeitas, um admirável mundo novo que se explora pela primeira vez. E que fascina. Assim é o tema-título do álbum, primeira de duas excursões tranquilas, hipnóticas e meditativas, a um verde exótico mais sonhado que real. A música é uma folhagem densa, bem exemplificada na capa do disco, mas que cede ao toque e se afasta para permitir a passagem da espiral de sintetizadores, flauta e mellotron. Os sons fluem com naturalidade, ora nostálgicos, ora melancólicos, revelando que o seu mais belo segredo é a simplicidade. Colam-se aos sons exteriores e conjuram um habitat quase edénico.
Maroubra Bay assoma-se com esgares de tempestade. Anuncia-se como um eclipse e avança como uma noite estranha mas não temível. A escuridão instalou-se e sente-se perto a imensidão do mar como um espelho negro. Ao desvanecer do prólogo, fica o embalo nas ondas sintetizadas, nos ritmos de laboratório e na elipse da melodia. A hipnose é novamente induzida e o núcleo dos Tangerine Dream arde sob este manto abstracto.
Maroubra Bay fica na Austrália. Epsilon in Malaysian Pale evoca, como o próprio nome indica, a Malásia. Ambos existem realmente, mas a percepção de Edgar Froese transforma-os em locais irreais, deturpados pela ebulição da sua mente criativa. E se a arte é a representação simbólica do mundo, este disco é uma obra de arte.