28 de dezembro de 2011

2011: A Soundtrack




Os tempos estão a mudar. Por poucos motivos positivos. O mundo regurgita ecos de uma caixa de Pandora económica, que se entreabre a cada rotação sobre o seu eixo. Dentro ou fora de tempo, mais ou menos sensível ao filme da vida real, a música seguiu o seu próprio curso. Referências continuam a confortar-nos com a sua presença (Tom Waits, Kate Bush, Paul Simon), promessas já cumpridas vieram provocar-nos com ideias frescas (Bon Iver, James Blake, Destroyer). Outras promessas surgiram, com raízes no futuro ou liquidadas à partida... Mas foi a sombra de Polly Jean Harvey que se projectou mais alto, envolvendo o ano que se aproxima do fim como um regresso a escuros e góticos tempos vitorianos, a memórias em letargia acordadas pelo génio e mordacidade do seu talento. O quadro dos males do mundo foi pintado na sua Inglaterra, mas, como toda a arte destinada a ser grande, transcendeu essas fronteiras insulares. Sucedem-lhe os restantes discos de 2011 que continuarei a ouvir para lá de 2011...

1. PJ Harvey - Let England Shake

2. Bon Iver - Bon Iver

3. James Blake - James Blake

4. Tom Waits - Bad As Me

5. The Horrors - Skying

6. The Weeknd - House of Baloons

7. Girls - Father, Son, Holy Ghost

8. Oneohtrix Point Never - Replica

9. The War on Drugs - Slave Ambient

10. St. Vincent - Strange Mercy

11. The Antlers - Burst Apart

12. Shabazz Palaces - Black Up

13. Real Estate - Days

14. Jonathan Wilson - Gentle Spirit

15. tUnE-yArDs - w h o k i l l

16. Destroyer - Kaputt

17. Fleet Foxes - Helplessness Blues

18. Kurt Vile - Smoke Ring For My Halo

19. Paul Simon - So Beautiful Or So What

20. Kate Bush - 50 Words For Snow

21. Josh T. Pearson - Last Of The Country Gentlemen

22. James Ferraro - Far Side Virtual

23. Grouper - A I A (Alien Observer / Dream Loss)

24. Rustie - Glass Swords

25. Radiohead - The King Of Limbs

26. Tim Hecker - Ravedeath, 1972

27. Nicolas Jaar - Space Is Only Noise

28. Wild Beasts - Smother

29. Bill Callahan - Apocalypse

30. Anna Calvi - Anna Calvi

31. The Field - Looping State Of Mind

32. Balam Acab - Wander / Wonder

33. EMA - Past Life Martyred Saints

34. M83 - Hurry Up, We're Dreaming

35. Colin Stetson - New History Warfare Vol. 2: Judges

36. Panda Bear - Tomboy

37. Gang Gang Dance - Eye Contact

38. Björk - Biophilia

39. Thurston Moore - Demolished Thoughts

40. The Black Keys - El Camino

41. Battles - Gloss Drop

42. Drake - Take Care

43. White Denim - D

44. Raphael Saadiq - Stone Rollin'

45. Demdike Stare - Tryptich

46. Frank Ocean - Nostalgia, Ultra

47. Iceage - New Brigade

48. Arbouretum - The Gathering

49. Toro Y Moi - Underneath The Pine

50. Washed Out - Within and Without

23 de dezembro de 2011

Kosmische Kosmetik XXX

A maneira mais fácil de definir os dois grupos musicais surgidos da comuna artística Amon Düül é a seguinte: uns sabiam tocar, os outros não. Uns elevavam o activismo político e a total liberdade experimental, outros aprimoravam a técnica e a complexidade musical. Falo hoje dos segundos, conhecidos como Amon Düül II.
Os anos 60 aprimoravam radicalismos, políticos, artísticos, filosóficos. A comuna sediada na Alemanha Ocidental dava o exemplo, convindo lembrar que foi dela que surgiram as bases do famigerado grupo terrorista Rote Armee Fraktion, igualmente conhecido como Baader-Meinhof. Mas podemos separar o trigo do joio, pois os Amon Düül II eram gente de paz. Relativamente. Quem escutou a sua música e viu os seus espectáculos, notou certamente que o conceito de ordem passava por mergulhar no caos.
Iniciaram o seu trajecto discográfico em 1969, com uma obra-prima alucinada chamada Phallus Dei (literalmente, O Falo de Deus), uma das pedras basilares do krautrock. Ao segundo disco, Yeti, alcançaram o estatuto de lenda. As quatro partes que (de)compõem Soap Shop Rock precipitam-se sem alerta, como uma bátega psicadélica pronta a encharcar-nos até aos ossos. O som sujo e pouco polido do rock de garagem funde-se a vozes transviadas e divaga livremente. Um violino em marcação cerrada durante todo o tema sobrevem, magnânimo, no quarto andamento - Flesh-Coloured Anti-Aircraft Alarm - e a orgia sonora termina como começou.
She Came Through the Chimney levanta uma brisa folk, que acaba por evoluir para uma aragem de violino desvairado e órgão sem travões. O tremendo Archangels Thunderbird devolve-nos aos braços da electricidade. Cerberus volta a raptar-nos para paisagens campestres intoxicantes. Estas intermitências entre a calma e a tempestade perduram por todo o disco. O tal caos organizado que só faz sentido quando não parece fazer sentido nenhum... e em que a liberdade escoa sem limites nem imposições estéticas. The Return of Ruebezahl, o poderoso Eye-Shaking King e Pale Gallery sucedem-se numa rajada de tempo difícil de cronometrar, impossível de controlar. A fechar, uma trindade de longas improvisações: os esmagadores Yeti, Yeti Talks to Yogi e Sandoz in the Rain. Três odisseias sónicas que levaram rock e folk onde poucos se atreveram a ir. Três panaceias para almas que estejam a levar a vida demasiado a sério e necessitem de bloquear o pensamento para abrir os poros da mente à sensação, a algo escuro mas libertador.
A capa de Yeti merece, obrigatoriamente, referência. O ceifeiro de vidas (em alemão, der sensenmann) que a ilustra dava pelo nome de Wolfgang Krischke, técnico de som da banda que morreu de hipotermia sob os efeitos do LSD. Este episódio tenebroso ajuda a acentuar ainda mais a atmosfera negra e densa do álbum, ao mesmo tempo que a icónica fotografia perdurou ao longo dos anos como uma das imagens de marca, quer dos Amon Düül II, quer do próprio folclore krautrock. Que o diga Julian Cope, cuja obra de culto Krautrocksampler a ostenta na capa. Abominável somente no título, Yeti persiste como um ritual envolvente e louco, que nos tira de uma espécie de nada para nos levar a uma vaga ideia de tudo.

5 de dezembro de 2011

Kosmische Kosmetik XXIX

Dentro do Dream Syndicate, Tony Conrad expandiu as possibilidades da música até ao infinito. Ludibriando o tempo, o colectivo norte-americano caracterizou-se pela teoria e prática dos drones, recorrentes do minimalismo e das alquimias de John Cage, suspensos em horas imperceptíveis e minutos intermináveis. Igualmente conhecido como Theatre of Eternal Music, o projecto vanguardista editou várias obras de referência em que participaram, para além de Conrad, nomes maiores como John Cale, La Monte Young ou Angus MacLise. Os volumes que compõem a trilogia Inside the Dream Syndicate são hoje bíblias das aventuras musicais vividas em Nova York nos anos 60.
Fora do Dream Syndicate, o primeiro registo a solo (ou quase) de Tony Conrad surge somente em 1973. Apoiado pelos fracturantes Faust, grava com estes no rural retiro da banda em Wümme. E a contra-cultura da banda alemã cai que nem ginjas nas estratégias do americano.
Outside the Dream Syndicate é o ponto onde o drone minimal e o krautrock radical se encontram. From the Side of Man and Womankind parece começar já a meio, em tom funéreo, com uma processional batida motorik. A monotonia rítmica, meditativa - provável fonte de desconforto para tímpanos incautos - entranha-se aos poucos, revelando pequenas nuances e subtis mudanças de tom. A estrutura é semelhante à da música indiana, mas aqui a cítara dá lugar a violino, baixo, bateria e órgão ocasional. É música microtonal, que corre ao sabor de uma só nota por largos períodos, apenas para sofrer uma ligeira inflexão no seu curso sonoro. E a nossa mente resvala com ela, se nos abandonarmos ao sabor da corrente...
From the Side of the Machine é menos sonâmbula, mais circular, igualmente absorvente. Em vez de linhas rectas, baixo e bateria traçam elipses que se reabrem ao serem fechadas. Opressiva e libertadora em simultâneo, a progressão do tema propicia alucinoses, derivativas da linhagem psicadélica que educou os seus executantes. O tempo não passa como o tempo deveria passar dentro desta narcose musical. A esfera da realidade é permeável...
From the Side of Woman and Mankind encerra a primeira edição em CD de Outside the Dream Syndicate. Rondando, como os seus pares, a meia-hora de duração, trata-se do primeiro tema do disco reflectido ao espelho, de violino restringido. A segunda dose de minimalismo cósmico, servida em prato sem fundo.
A edição comemorativa do trigésimo aniversário do disco, posta na rua em 2003, acrescentou-lhe mais dois extras, fruto das mesmas sessões: The Pyre of Angus Lies in Kathmandu e The Death of the Composer Was in 1962. Ambos remetem para a elegia do compositor e amigo de Conrad, Angus MacLise. Drasticamente mais curtas na duração, variam igualmente na forma. A primeira propaga os drones indo-minimais do grosso do álbum; a segunda inclina-se para o avant rock, assemelhando-se a um concubinato nada descabido entre os Faust e os Velvet Underground.
Ostracizado e desvalorizado por alturas do seu lançamento original, Outside the Dream Syndicate recuperou actualmente o lugar merecido. Pela exploração do minimalismo no rock, por brincar com o fogo e não ter medo de arder, por estar muito à frente do seu tempo. Música de sonho fora do sindicato do sonho...

2 de dezembro de 2011

Back in Black

Godbluff assinala o regresso dos Van der Graaf Generator, após um hiato de quatro anos. O seu antecessor, o monstruoso Pawn Hearts, pôs ponto final à primeira fase da existência da banda britânica. A separação, amigável, levou o líder Peter Hammill a mergulhar a solo em águas mais profundas, resultando nalgumas das suas obras mais romanticamente escuras e sonicamente extremas. Os seus três colaboradores constantes editariam apenas um longa-duração durante este interregno - um disco totalmente instrumental, sereno e atmosférico, nos antípodas dos VdGG e sob o pseudónimo The Long Hello.
Juntos novamente em 1975, os anjos negros do rock progressivo evoluíram e convergiram para uma sonoridade mais densa e coesa, revelando um certo abandono pela complexidade técnica a favor de sólidas ambiências. Num renascimento ponderado e subtil a partir de despojos bombásticos e viscerais, os VdGG de Godbluff voltaram mais sombrios que nunca. Mas sempre incatalogáveis, sem cedências e sem precisarem de guitarras para serem electrizantes.
Desta vez, será a música a descrever-se a si própria. Um imortal concerto captado na Bélgica em 1975, guardou para a posteridade a interpretação integral dos quatro temas de Godbluff. Este será, igualmente, o documento definitivo para apreciar os ingleses no início da sua melhor e mais prolífica fase - no espaço de um ano editariam ainda a obra-prima Still Life e o mais abrasivo World Record. Que as luzes se apaguem e se dê início ao espectáculo...