19 de abril de 2011

Kosmische Kosmetik XXII

Manuel Göttsching é um dos mais lendários guitarristas alemães. O seu estilo, um misto de ambiências etéreas e blues espaciais, enfeita com opulência os discos dos Cosmic Jokers, Walter Wegmüller e da sua banda de sempre, os Ash Ra Tempel. Assim sendo, é curioso que um dos mais influentes discos de electrónica de todos os tempos seja assinado por ele. Um homem das seis cordas que, inadvertidamente ou não, provoca um efeito borboleta com a sua obra a solo E2-E4: inventa o alfabeto através do qual se escreve muita da música de dança de hoje.
E2-E4 continua a ser um disco imbuído do espírito da kosmische musik. É um indutor de transe como o melhor dos Tangerine Dream e está lá a guitarra livre de amarras que se estilhaça nos Ash Ra Tempel. A diferença é que, desta vez, o ritmo impõe-se e é levado ao topo, enfatizando ainda mais as oferendas hipnóticas. Composto por um tema que raia os 60 minutos de duração e que se desdobra em 10 segmentos, o álbum é para ser ouvido como um contínuo. Após uma crescente introdução, o ritmo cibernético mas quente instala-se em definitivo. O convite ao movimento é óbvio, a vontade de resistir-lhe diminuta. Quiet Nervousness e Moderate Start são gâmetas que se fundem para formar o embrião da futura house music.
Em Promise emerge a guitarra de Göttsching, num balançar escorregadio e penetrante, quase afro-latino. A mescla entre o ritmo mecanizado, a electrónica repetitiva e a guitarra equatorial prolongam-se até ao fim do disco. E é curioso como uma atmosfera que nunca deixa de ser abstracta e minimal consegue causar tanto prazer auditivo. E2-E4 é paragem obrigatória para os amantes de electrónica. É um registo de extrema inovação (corria o ano de 1984 quando foi editado) e, acima de tudo, um álbum de culto. Que o diga James Murphy - mastermind dos LCD Soundsystem, alvo da indignação do próprio Göttsching por gostar tanto do disco e querer cloná-lo quase por inteiro...
O título desta obra essencial inspira-se na jogada de abertura mais clássica do xadrez. Tendo em conta os xeque-mates que conseguiu ao longo dos anos, tudo indica que Manuel Göttsching sabia bem o que estava a congeminar...

18 de abril de 2011

Five Aces


Não há confraria folk que se preze sem a comparência dos Fairport Convention. Com mais de 40 anos de história e mais de 25 membros nas suas fileiras, a mítica banda britânica, pioneira no tratamento eléctrico da música tradicional, não dá mostras de desistir. Mas os Fairport Convention de hoje são um agradável anacronismo. Um jarrão que fica bem continuar exposto mas cuja criatividade e importância empalideceu há décadas.
A eternidade e sacralização dos Fairport Convention erguem-se em apenas três anos. De 1968 a 1970, cinco discos magníficos chegam e sobram para sustentar e justificar a influência do grupo. É a música da América que começa por agitá-los, em emanações intermitentes de Bob Dylan e Joni Mitchell. Mas, para lá das reverências aos mestres, o primeiro álbum da banda revela sensibilidades mais psicadélicas que folk e é a obra mais fragmentada da sua quase interminável discografia.


Fairport Convention oscila entre o Sol e a Lua, entre o imediatismo de Time Will Show The Wiser ou If (Stomp) e temas mais contemplativos, como One Sure Thing, I Don't Know Where I Stand e o sublime Decameron. O igualmente excelente The Lobster mergulha-nos num escuro aquário psicadélico, enquanto Sun Shade flui como as ondas da west coast californiana. A primeira exposição dos Fairport Convention tem tanto de ingénuo como de experimental. A banda é ainda refém das suas influências, mas as composições em nome próprio vincam já algum do seu carácter. Richard Thompson sai lentamente da crisálida como um dos melhores guitarristas e compositores britânicos das últimas décadas. Este é, igualmente, o único disco do grupo que conta com Judy Dyble como vocalista. O seu registo aproxima-se de Joni Mitchell e Grace Slick, o que, apesar de agradável, não nos prepara para o assombro que estava para vir: uma doce tempestade chamada Sandy Denny.


Indubitavelmente uma das melhores vozes que a Inglaterra deu ao mundo, a jovem de formas robustas e look campestre injectou energia renovada nos Fairport Convention. What We Did On Our Holidays, segundo álbum da banda, é uma obra mais directa e sólida, em que a timidez e introspecção que povoavam grande parte do seu antecessor dão lugar a um som mais expansivo. A sombra da folk encobre cada vez mais o colectivo e o tema que abre este segundo capítulo da sua vida discográfica é a melhor porta de entrada possível. Fotheringay é o seu nome e a conjunção da voz de Sandy com a guitarra acústica parece ter sido criada para sustentar a expressão pele de galinha. Sublime, etérea e mística, Fotheringay seria suficiente para garantir o Olimpo aos Fairport Convention. Depois de recompostos da triste história de Mary, Queen of Scots, há outras delícias para descobrir. Duas versões bem conseguidas de Joni Mitchell e Bob Dylan (esta última - I'll Keep It With Mine - especialmente saborosa). Blues insular em Mr. Lacey, rock com f de folk no clássico Meet On The Ledge e duas abordagens inovadoras e igualmente electrificadas de canções tradicionais inglesas (Nottamun Town e She Moves Through The Fair). A capa do disco possui igualmente a sua história: foi desenhada a giz pelos membros da banda no quadro de uma escola, antes de um concerto.


Poucos meses depois, Unhalfbricking avança progressivamente pelos territórios da folk, quer britânica, quer americana, deixando o rock de lado em tudo excepto no suporte instrumental. Infalível do princípio ao fim, o terceiro álbum dos Fairport Convention guarda muitos dos seus melhores temas. É o disco de A Sailor's Life, revisitação épica e oceânica da canção tradicional com o mesmo nome e um dos marcos primordiais no surgimento da folk eléctrica. As revisitações e subversões do reportório dylanesco continuam, desta feita com realce para a espantosa versão de Percy's Song e a transformação de If You Gotta Go, Go Now numa espécie de canção folclórica da Bretanha francesa chamada Si Tu Dois Partir. Os dois membros mais proeminentes da banda oferecem prestações superlativas e contribuem com criações próprias da mais fina safra: Sandy Denny com os excelsos Autopsy e Who Knows Where The Time Goes?; Richard Thompson com Cajun Woman e o belíssimo (e favorito pessoal...) Genesis Hall. Se a música de Unhalfbricking é lendária, a capa que lhe dá rosto também quase algo de mítico. Os senhores da foto são os pais de Sandy Denny. A banda aparece por entre os buracos da vedação e é possível discernir com facilidade as cabeças de todos os elementos. Muita gente diz que foi propositado, os próprios dizem que foi pura coincidência. Eu também prefiro acreditar na segunda...


Ainda em 1969, um novo álbum vê a luz do dia. Os Fairport Convention viviam um período de euforia criativa e ao quarto disco alcançam o seu momento definitivo. Liege & Lief é o melhor álbum de sempre a ser rotulado folk rock. O efeito é o de um bando de jograis medievais metidos numa máquina do tempo e a quem deram instrumentos eléctricos e uma bateria para tocar umas cantigas lá do feudo. Somente três dos oito temas originais foram compostos internamente. Os restantes são adaptações ao universo rock do legado musical britânico. É isto que faz de Liege & Lief um disco único, um objecto estranhamente familiar e belo, mas igualmente atavístico e pesado como as areias do tempo. Torna-se quase impossível distinguir os temas novos dos antigos, pois todos estão embebidos no mistério da música alimentada por lendas e mitos. Matty Groves e Tam Lin são épicos e intensos, narrativas que brotam das fogueiras das muitas noites em que foram contadas e que continuam a atravessar gerações. Reynardine e The Deserter são lamentos forjados na pedra dos castelos e no verde da Inglaterra rural. Os temas compostos pela banda são igualmente afectados por este regresso ao campo, aos segredos dos bosques e ao animismo da Natureza. Come All Ye é um convite à dança sob o luar, por oposição ao recolhimento solitário de Farewell, Farewell e à melancolia outonal de Crazy Man Michael. Uma obra-prima da música inglesa, Liege & Lief mudou para sempre a forma como a música tradicional foi vista, deixando de ser uma curiosidade cultural para se tornar um elemento passível de fusão e aberto à modernidade.


É difícil para qualquer banda recuperar da perda de alguém como Sandy Denny. Os Fairport Convention não foram excepção. Esta perda (primeiro musical, depois definitiva, pois Sandy viria a falecer em 1977) é notória no quinto álbum do colectivo, Full House. Editado em 1970, é o disco feito pelos homens deixados sozinhos sem a mulher para orientar a casa. Isso resulta num trabalho mais musculado, o mais orientado para o rock até então na sua carreira, mas sem perder nada do espírito folk do seu antecessor.
Full House é estranhamente viciante. É um registo tendencialmente mais sombrio, sem a luminosidade projectada por Sandy Denny e em que as vozes são agora repartidas pelos vários membros da banda. Não faltam momentos de comunhão perfeita entre os músicos, especialmente em Doctor of Physick e Sir Patrick Spens, ambas com um violino irresistível - culpa de Dave Swabrick. Magnífico é também o entrosamento nos momentos mais sombrios e introspectivos, como Poor Will & The Jolly Hangman, Now Be Thankful e o majestosamente inebriante Sloth (muito graças à guitarra em êxtase contido de Richard Thompson). Para espíritos festivos, recomenda-se Walk Awhile e duas danças tradicionais transformadas em folk rock: Dirty Linen e a frugalmente intitulada Sir B. McKenzie's Daughter's Lament For The 77th Mounted Lancer's Retreat From The Straits Of Loch Knombe, In The Year Of Our Lord 1727, On The Occasion Of The Announcement Of Her Marriage To The Laird Of Kinleakie...
Após Full House, o percurso dos Fairport Convention tornou-se erraticamente estável. A sua história discográfica até aos dias de hoje é feita de trabalhos mais ou menos interessantes mas incomparavelmente menores que estes cinco ases saídos do mesmo baralho. De todos os elementos da banda, será Richard Thompson (que saiu logo após o término de Full House) aquele que ainda produz música relevante. E apenas Simon Nicol resta deste período imaculado...

P.S.: Este post é dedicado a um amigo que perdi hoje. Chamava-se Jimmy e era um cocker spaniel muito especial. Vivemos excelentes momentos de companheirismo. E ouvimos muitas vezes juntos os Fairport Convention...

3 de abril de 2011

Garage Days III

"Their name is Love but they are Hate." Esta expressão foi usada para definir os Love, uma das bandas mais geniais de sempre, que fundiu elementos de garagem, psicadelismo e barroquismo pop como mais ninguém. Os Belle & Sebastian não existiriam sem eles, assim como o reverenciado primeiro disco dos Stone Roses e Michael Head teria sido mais um post-punker inconsequente em vez de criar os belíssimos Pale Fountains / Shack. O colectivo que nos levou a um passeio pela perfeição no intocável Forever Changes brotou de poderosas ervas daninhas e começou por florescer num álbum homónimo do tipo bikini: curto, atraente e que focou os pontos essenciais.
Love, editado em 1966, é um disco que cruza o imediatismo e a urgência do Garage Rock com a sensibilidade da melodia e a arquitectura da canção concisa e perfeita. O malogrado Arthur Lee, eterno símbolo desta entidade, projecta já a sua mente torturada em temas agridoces, de sol enganador e sombras ominosas. O ódio dos Love sente-se nas palavras que repercutem o Vietname, as drogas pesadas ou a inutilidade do emergente sonho hippie. A música crava as unhas em elementos que vão da folk ao que agora é politicamente correcto chamar proto-punk (e que mais não era que raiva latente).
My Little Red Book transforma a temática pinga-amor do original de Burt Bacharach em sátira política, graças à compatibilidade com o Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung e à carga eléctrica que lhe é inflingida. Signed D.C. é uma sombria incursão pela câmara escura da heroína, homenagem ao falecido ex-baterista Don Conka. O quarto é escuro e frio, mas há um prazer algo voyeurista em ficar à porta a contemplá-lo, pois a canção é memorável. E a memória mais propensa a néctares musicais nunca poderá descurar peças intrépidas como A Message to Pretty, Softly to Me ou You'll Be Following. Can't Explain e o ataque de nervos à clássica murder ballad Hey Joe apresentam-se menos polidas e mais garagistas na entrega.
Tudo é sangue na guelra neste disco, o prenúncio de mágicas, mas tortuosas, glórias futuras. Arthur Lee e o seu clã olham-nos de frente na capa de Love, rodeados de pedra e vegetação em seu redor. O local era a antiga casa de Bela Lugosi, onde o grupo viveu em comunhão os seus primeiros anos. Os olhares parecem dizer que, tal como a melhor encarnação de Drácula, esperam pacientemente para nos sugar o sangue. E nós, sofregamente, oferecemos o pescoço...

2 de abril de 2011

Long Live BBC 4

No programa 60 Minutos da SIC Notícias, Mário Crespo costuma enfatizar a excelência de conteúdos da estação. Pegando nesse termo, louva-se hoje aqui a excelência de conteúdos do canal 4 da BBC. Especialmente no que diz respeito a documentários dedicados às artes e às ciências. Musicalmente, a estação britânica mantém o rigor, a qualidade e a variedade nas temáticas que transmite. Nunca poderia escapar ao Escrito no Som o excelente e completíssimo programa dedicado ao popularmente designado Krautrock. Trata-se de uma magnífica história visual desta corrente musical e da própria cultura alemã entre 1968 e 1977, onde proliferam sequências lendárias e não faltam testemunhos de personagens de culto. Um belo resumo para os iniciados, mais um motivo de júbilo para os convertidos. Aqui vai a série completa, para ver com olhos de ver...