28 de dezembro de 2010

2010: A Soundtrack



2010 não foi o Ano do Contacto. Talvez tenha sido, graças a tanto compromisso de austeridade, o Ano do Contrato. A música não escapou à crise e à letargia colectiva, pelo que o ano que agora termina não ficará reconhecido pelo boom de clássicos absolutos. Mesmo com o seu quinhão de belas e inescapáveis obras discográficas, é difícil ser consensual no que concerne ao álbum do ano. Segue abaixo a lista dos mais ouvidos e apreciados por este escriba, neste 2010 que nos tirou Captain Beefheart mas nos deu John Grant. Ou que nos confirmou Joanna Newsom e nos preparou para a provável (e indesejável) retirada de James Murphy como LCD Soundsystem. Como se o ADN musical se renovasse e replicasse em permanente equilíbrio. Num ano estranho, revolto e atípico, o disco mais ambicioso surge de territórios hip-hop. É impossível não ficar enfeitiçado e esmagado pela produção assombrosa e pela incandescência épica que crepita ao longo da obra megalómana que encabeça esta escolha.

1. Kanye West - My Beautiful Dark Twisted Fantasy

2. John Grant - Queen of Denmark

3. Joanna Newsom - Have One on Me

4. Deerhunter - Halcyon Digest

5. Ariel Pink's Haunted Grafitti - Before Today

6. The National - High Violet

7. LCD Soundsystem - This is Happening

8. Arcade Fire - The Suburbs

9. Beach House - Teen Dream

10. Gil Scott-Heron - I'm New Here

11. Vampire Weekend - Contra

12. Janelle Monáe - The ArchAndroid

13. Oneohtrix Point Never - Returnal

14. These New Puritans - Hidden

15. The Walkmen - Lisbon

16. Grinderman - Grinderman 2

17. Emeralds - Does It Look Like I'm Here?

18. Swans - My Father Will Guide Me Up a Rope To The Sky

19. Caribou - Swim

20. Rangers - Suburban Tours

21. Four Tet - There is Love in You

22. Actress - Splazsh

23. Gonjasufi - A Sufi and a Killer

24. Sun Araw - On Patrol

25. Julian Lynch - Mare

26. Neil Young - Le Noise

27. Flying Lotus - Cosmogramma

28. Field Music - Field Music (Measure)

29. Robert Plant - Band of Joy

30. Twin Shadow - Forget

31. Midlake - The Courage of Others

32. Gorillaz - Plastic Beach

33. The Fall - Our Future Your Clutter

34. Ali Farka Touré & Toumani Diabaté – Ali & Toumani

35. Yeasayer – Odd Blood

36. MGMT – Congratulations

37. Wyatt / Atzmon / Stephen – For the Ghosts Within

38. Hot Chip – One Life Stand

39. Foals - Total Life Forever

40. Sufjan Stevens - The Age of Adz

41. Big Boi - Sir Lucious Left Foot: The Son of Chico Dusty

42. Sun City Girls – Funeral Mariachi

43. Zola Jesus – Stridulum II

44. Paul Weller - Wake Up The Nation

45. The Black Keys – Brothers

46. The-Dream – Love King

47. Mike Patton – Mondo Cane

48. Arp – The Soft Wave

49. Expo 70 – Where does your Mind go?

50. Brian Eno – Small Craft on a Milk Sea

27 de dezembro de 2010

Folk with a View

Se Jimmie Spheeris não tivesse morrido num acidente de mota em 1984, quem sabe o que faria hoje. Ilustre desconhecido, debitando talento em cada um dos cinco álbuns de originais que deixou como legado, Spheeris começou como baladeiro ensopado em néctares folk e terminou como uma das figuras mais imponderáveis da New Wave dos anos 80. Arrepiou caminho pelos trilhos do jazz e do rock, fundiu-os com estilo e alma, mas será sempre a sua faceta acústica a mais celebrada. O primeiro álbum, Isle of View, é uma raridade em permanente clausura, a que poucos acederam, mas que encanta quando se deixa descobrir.
A sonoridade de Isle of View é introspectiva, serena e crepuscular. Impregnado de ambiências outonais e de flutuantes melodias, é parente próximo dos primeiros álbuns de Tim Buckley ou dos momentos mais carregados de David Ackles. Traz com ele o rasto dos finais de Verão, de entardeceres sob céus avermelhados e mares dourados pelo pôr-do-sol. Em suma, um punhado da magia que os músicos da West Coast tão bem sabiam dominar nesta época (estávamos em 1971).
As canções sucedem-se em catadupa, numa doce irrealidade. Parecem chegadas de um mundo imaginário, conquistando e entranhando-se. As cinco primeiras são intocáveis, especialmente For Roach, Monte Luna e a excepcional I am the Mercury. Os movimentos alargam-se em momentos seleccionados, como Long Way Down ou nas reminiscências de Gram Parsons avivadas por Seven Virgins. Mas são apenas aguaceiros que estancam perante a tirania apaziguadora de Come Back e o transcendente tema final, Esmaria.
O resgate para a luz de Jimmie Spheeris tem sido levado a cabo por gente tão consagrada como Midlake ou Bon Iver. Outra influência difusa pressente-se no genial Queen of Denmark, devastador primeiro disco de John Grant, editado há poucos meses. É certo afirmar que quem ouviu Isle of View não tem como escapar à expressão homófona que o título esconde: I Love You. Esta e outras revelações estão no único local da Web inteiramente dedicado ao homem e à sua arte.

13 de dezembro de 2010

Kosmische Kosmetik XIX

Os Annexus Quam são mais um dos imensos enigmas que povoam a galáxia do krautrock. Assim como emergiram, da periferia de Düsseldörf, eclipsaram-se sem deixar outro rasto que não dois discos de culto da música alemã mais arrojada e inovadora. E o destaque óbvio vai para o primeiro álbum, Osmose, de 1970.
Osmose é um conjunto de quatro temas que partilham o mesmo título, mas que não se ramificam nem interligam. A sensação que perdura é a de um disco de jazz alucinogéneo, esquartejado por golpes de psicadelismo e de um rock transfigurado. Imagine-se o espírito de Ummagumma ou Atom Earth Mother dos Pink Floyd conjurado em terras germânicas, bafejado pela chama criativa do krautrock e projectado para fora da órbita terrestre.
A espaços sinistro, denso e meditativo, Osmose I irrompe como se da lama se erguesse, todo ele guitarras viscosas e pesadas, ritmo lento mas forte e sopros sombrios. A segunda parte vira completamente o bico ao prego, revelando tendências ritualísticas, batuques tribais e vozes em êxtase flutuante. As influências africanas são notórias e o ritmo não pára de fervilhar, entranhando-se com sedutora precisão. Fogueiras nocturnas e figuras em dança frenética parecem completar o cenário.
Osmose III reencontra-se com a serenidade e apodera-se aos poucos da nossa resistência. O torpor jazzístico e o transe psicadélico vergam qualquer inibição ao puro prazer que a música transparece. Este é um daqueles temas em que os próprios músicos parecem estar tão relaxados que só nos resta seguir-lhes o trilho. Acendam-se velas ou liberte-se lentamente incenso e a mente viajará. Enfim, uma suave e gloriosa freakalhada...
A música engrossa ao chegar à quarta parte. Um piano em tons menores é o prelúdio a um exercício inteligente e bem doseado, um groove sinfónico possuído pelo jazz. Ecoam novamente cânticos livres de palavras e um trémulo improviso instala-se aos soluços até arrebatar o tema e o arrastar para áreas limítrofes. Eis que a sensação de gozo dá lugar a um caleidoscópio lentamente estilhaçado em que instrumentos serpenteiam em todas as direcções. Pelo meio, interjeições de música concreta entrecruzam-se com excertos adulterados de um Concierto de Aranjuez que juntam os fantasmas de Rodrígo e Miles Davis. É neste pandemónio sensorial que a osmose se revela em pleno.
Paradigma de uma época e de um estilo que caminhava para a flor da idade, o primeiro álbum dos Annexus Quam é uma curiosa relíquia de música irreverente e livre. O jazz e o rock são os condimentos principais, mas o que fica no ouvido é a aventura avant-garde descomprometida que estes alemães tiveram o prazer e a habilidade de produzir.

Mitologias

Erik Davis é um dos pensadores mais interessantes e estimulantes da actualidade. Escreve com exuberância e fala como escreve. Gosta de improvisar na guitarra. Numa era em que a informação navega à velocidade da luz e em que o acesso ao conhecimento se tornou corriqueiro para a maioria dos mortais graças aos suportes tecnológicos em constante evolução, este homem ainda crê no conceito de gnose. Gnose no sentido em que o conhecimento pode ser transcendente e provir do misticismo e da intuição. O seu livro TechGnosis: Myth, Magic + Mysticism in the Age of Information é um magnífico retrato de como tecnologia e religião continuam, mais que nunca, a repelir-se e a atrair-se em simultâneo. Outra excelente obra é The Visionary State: A Journey Through California's Spiritual Landscape, um ensaio debruçado sobre o mito e o fascínio que o estado do oeste americano exerce nas gentes e mentes de todo o planeta.
No site http://www.techgnosis.com/ está guardada a súmula das actividades de um intelectual que consegue ser futurista sem abdicar da sua espiritualidade. É um espaço interessantíssimo e que vale a pena percorrer para aceder ao que de novo e alternativo se vai processando na cultura norte-americana, bem como para vaguear por um mundo paralelo e fascinante. Um portal que se encontra a um click de distância dos comuns PC's, mas que permanece oculto para a maioria dos terráqueos. Em complemento, é igualmente proveitoso dispender algum tempo a visitar o blog de Erik Davis, parte integrante da webzine Reality Sandwich. Se ainda há quem pense que nada se está a passar no mundo para além da deprimente e corporativa realidade em que nos movemos, estes projectos visionários, alternativos e inspiradores podem ajudar a dissipar algum cinzentismo. Parece que ainda há quem se importe e consiga projectar alguma luz no pântano insalubre da cultura massificada. Quiçá a prova que o inconsciente colectivo postulado por Carl Jung existe realmente...

12 de dezembro de 2010

Life & Death & Rock 'n' Roll

Um livro cuja abertura é assinada por Iggy Pop só pode ser especial. Mas The Dark Stuff não é somente especial. É um poderoso e extraordinário insight de algumas das mais carismáticas existências da história do rock. Esse carisma, essa capacidade de sedução e encanto, de causar admiração e espanto, não é retratado candidamente. Pelo contrário, The Dark Stuff inflecte para o obscuro, desvela a face oculta, repousa sobre o lado negro.
Nick Kent nunca preferiu boas companhias, sempre percorreu as ruas mais sujas e escuras do jornalismo musical. Felizmente para nós. Quem acredita que, se nos juntarmos aos maus, nos tornaremos piores que eles, não deve ler este livro. Até porque os maus assemelham-se mais a vítimas na prosa de Kent, ele mesmo um jornalista que cometeu e viveu por dentro os excessos do estilo de vida alucinante do rock'n'roll. Eis um pequeno excerto da sua atribulada biografia, coincidente com o lançamento do seu mais recente livro, Apathy for the Devil...
The Dark Stuff é um acumulado de ensaios e entrevistas, tudo material de primeira mão do autor, reunido ao longo de mais de 30 anos de jornalismo militante. Originalmente publicado em 1994, é a versão expandida de 2007 que se pode considerar definitiva. Termina com uma peça intitulada Self-destruction in Rock and Elsewhere, o que resume essencialmente o que ficou para trás. Histórias de auto-destruição, morte, glória, alienação e megalomania que lançam uma perspectiva quase poética sobre vidas em parte perdidas ou perdidas para sempre. Por amor à arte, por amor à ribalta, por ódio a elas mesmas, por ódio à realidade. Todos os relatos são imensamente fortes e reveladores, fazendo com que a música dos visados desperte um culto ainda maior. Os artigos dedicados a Phil Spector, Syd Barrett e Serge Gainsbourg desassossegam e perturbam, especialmente o retrato decadente do músico francês. Lá estão suspeitos do costume nestas quedas no abismo, como Kurt Cobain ou Sid Vicious. Mas também se encontram casos de pontuais comportamentos desviantes que não levaram a encontros prematuros com o Todo-Poderoso (ou seja, John Malkovich), casos de Elvis Costello e Neil Young.
Uma excelente obra de um mítico jornalista britânico, The Dark Stuff é literatura obrigatória para percorrer o lado negro da personalidade de gente que admiramos, mas nunca podemos pensar que conhecemos.

3 de dezembro de 2010

Get your Kinks

O meu primeiro contacto com uma das melhores bandas de sempre estabeleceu-se com este disco. Essa banda, de nome Kinks, manteve-se até hoje entranhada nos meus ossos. O disco, The Kink Kronikles, continua a ser alvo de constante revisitação.
No seu período dourado, mais ou menos situado entre finais da década de 60 e princípios de 70, os Kinks obrearam e, por vezes, superaram Golias como os Beatles ou os Rolling Stones. Se, comercialmente, não foram tão bem sucedidos, ao nível de escrita e da composição apresentaram ao mundo um enorme artesão de canções, um génio irónico, sarcástico e acutilante chamado Ray Davies. O líder do quarteto londrino injectou na música popular um liricismo crítico, satírico, de ataque às instituições, ao poder, às desigualdades sociais. Ao contrário das tendências da época, que abraçavam, em larga medida, as temáticas boy meets girl ou as experiências com drogas, os Kinks falavam de novos-ricos, desemprego e alcoolismo, desancando forte e feio nos vícios e cinismos da sociedade britânica. Um quarto de século mais tarde, Damon Albarn e os seus Blur actualizaram este género de cantigas de escárnio e maldizer, maquilhando-as com o delírio jornalístico chamado Britpop. E fizeram-no muito bem.
The Kink Kronikles pode muito bem ser a compilação mais perfeitamente equilibrada dos Kinks. Originalmente editada em 1972, balança magistralmente grandes êxitos com temas mais obscuros, mas igualmente sólidos. E o segredo do seu encanto está, por exemplo, em misturar She's Got Everything com Get Back in the Line. Ou Sunny Afternoon com Mindless Child of Motherhood. Por todo o lado brotam canções sem as quais nenhum Kinksiano convicto consegue passar: Days, This is Where I Belong, Shangri-la e, da autoria do mano mais novo, Dave Davies, as magníficas Susannah's Still Alive e Death of a Clown.
A compilação foi lançada primordialmente (e em exclusivo) no mercado norte-americano. Sabendo como a maioria do público dessas paragens é conservador e convencional, não deixa de ser admirável a proliferação de composições tremendamente arreigadas na tradição britânica, plenas de recados subliminares e de subtil, mas viperino, humor. Waterloo Sunset, The Village Green Preservation Society ou Holiday in Waikiki são tão inglesas como um Gammon Steak ou uma pint de Old Speckled Hen. Mas resultam em qualquer parte do mundo, pois os alicerces da música são inabaláveis e a qualidade intocável. Como no caso de Lola. A aventura de um jovem rapaz provinciano no Soho, seduzido por uma misteriosa senhora. A história completa segue dentro de momentos...
Para terminar, muito se tem falado no mais recente disco de Ray Davies, que congrega várias personalidades, dos Metallica a Jackson Browne, em novas versões de velhinhos temas dos Kinks. Tem a sua piada, mas nada bate belíssimas e marcantes obras como The Kink Kronikles. Em suma, respeitemos eternamente o homem, mas devoremos essencialmente o original.

2 de dezembro de 2010

Blow the Whistle

Emitido pela primeira vez em 1971, o programa musical The Old Grey Whistle Test é considerado ainda hoje como um dos momentos mais revolucionários e influentes da música televisionada. Fortemente focado na vertente mais séria e menos comercial do pop rock, ao contrário do universalmente conhecido Top of the Pops, o programa atravessou anos imutável, esteticamente fiel à ambiência esparsa e despida de adereços de um pequeno estúdio da BBC. O espaço era mínimo e as bandas e artistas convidados não podiam enveredar por prestações mais feéricas, correndo o risco de fazer desmoronar o cenário. Mesmo assim, The Old Grey Whistle Test continua a ser um autêntico museu de prestações musicais, muitas delas raras e únicas na história da televisão. Por lá passaram Tim Buckley, Judee Sill, Roy Harper ou Kevin Ayers, todos em lendárias aparições. Foi possível assistir a actuações gargantuanas e marcantes de gente tão diferente como os Public Image Ltd., Edgar Winter Group, Focus ou Lynyrd Skynyrd. Infelizmente, e devido à abrangência do programa, também por lá passaram tiros ao lado como Meatloaf ou Simply Red. Coisas que podem ter prometido algo vago no início, mas todos sabemos no que se tornaram...
A última emissão do Whistle Test ocorreu em 1988, deixando influência e descendência em futuros programas britânicos como The Tube ou o excelente Later... with Jools Holland. Numa época em que a maioria dos actos vive do videoclip e de uma imagem ultra-saturada que acaba por mascarar a realidade, é com alguma nostalgia que se assiste à recuperação destas pioneiras e improvisadas apresentações. O despojamento e o enfoque exclusivo na música, tornam-nas documentos históricos ímpares na saga da música popular.
Sugere-se a aquisição do magnífico DVD The Old Grey Whistle Test - The Definitive Collection para percorrer estes 17 anos de sons. São 4 discos com mais de 100 performances, entrevistas e extras interessantes. Da categoria que preenche a maioria das prestações, destaco um favorito pessoal: Relay, dos Who, em que o baterista Keith Moon destila o seu estilo animalesco como nunca. Simplesmente, the real thing...

24 de novembro de 2010

Embuste Galáctico

O agrupamento alemão conhecido como Cosmic Jokers editou cinco álbuns em 1974, sem nunca realmente ter existido. Esta história, incongruente e insólita, merece sempre ser contada.
Em 1973, o ex-patrão da editora Öhr, Rolf-Ulrich Kaiser, decidiu congregar a ínclita geração da Kosmische Musik para uma série de sessões de estúdio. Eram eles os Kosmische Kuriere, o poderoso combo que emprestou o seu génio aos discos míticos de Walter Wegmüller, Sergius Golowin e à colaboração entre os Ash Ra Tempel e Timothy Leary. Composta, entre outras, por luminárias como Klaus Schulze e Manuel Göttsching, esta unidade reuniu-se para uma série de jam sessions espaciais e alucinantes, desconhecendo que estava a gravar para a posteridade algumas das peças mais fora de órbita que o rock alguma vez conheceu.
Rezam as crónicas que Rolf-Ulrich Kaiser aliciou os músicos para o estúdio oferecendo-lhes alucinogéneos gratuitos em troca de improvisos inspirados. Sendo os ácidos motor de arranque para as musas de muitos dos músicos desta era, os mesmos não se fizeram rogados. Após a conclusão do festim, o produtor Dieter Derks tratou de transformar o caos em ordem e a música foi lançada em disco. Meses depois, o guitarrista Manuel Göttsching decidiu ir a uma discoteca de Berlim para ouvir as novidades. Ao ouvir um som novo a transbordar das colunas, perguntou o que era. Ficou a saber que aquela guitarra bluesy, spacey, freaky, que estava a ouvir, era ele mesmo e a sua nova banda: The Cosmic Jokers. E a peixeirada estalou.

Para além do extravagante Kaiser, a usurpação musical teve o conluio da sua não menos colorida namorada, Gille Lettman. A senhora auto-intitulava-se artisticamente Sternenmädchen, ou Dama das Estrelas. Deu a voz e a cara no último disco da pseudo-banda, Gilles Zeitschiff, construído a partir de gravações pré-feitas e muito provavelmente o primeiro álbum de remisturas da história. E o resto sucedeu-se em catadupa: Processos em tribunal, os discos retirados do circuito e Kaiser e a luz dos seus olhos a fugirem da Alemanha. Felizmente, as gravações foram conservadas e podemos ainda apreciar a fabulosa, inovadora e única sonoridade dos Cosmic Jokers em toda a sua plenitude.

No que realmente interessa, ou seja, a música, os Cosmic Jokers deixaram um dos legados mais incríveis e extasiantes do rock alemão de setentas. Cada disco, mas especialmente os três primeiros, são obras-primas do psicadelismo cósmico e trippy (como já foi dito, o quinto álbum é um disco de remisturas, sendo o quarto uma espécie de sampler de vários actos que convergem na banda que nunca existiu). São discos quase hardcore na abordagem despudorada feita à música sob a influência de alucinogéneos. Guitarras lânguidas, que parecem projectar a aura dos blues no vácuo do espaço sideral, teclados faiscantes que cortam o negro como raios luminosos, bateria em constante elipse e pontuais vozes femininas que murmuram como sereias no Mar da Tranquilidade.

Galactic Joke, Cosmic Joy, Kinder des Alls, Galactic Supermarket... Momentos de absoluta rêverie, que invadem e conquistam a mente, deixando o ouvinte num estado de semi-torpor, interrompido por despertares electrónicos e batidas meteóricas. A lei da gravidade não impera aqui, o que reina é um transe contínuo e total, um carrossel imparável que gira a anos-luz deste mundo. É o som de buracos negros, quasares e nebulosas.
Verdade ou mito, a história dos Cosmic Jokers é a história de músicos geniais e inventivos, quebrando barreiras, ultrapassando fronteiras e tornando o próprio som uma contínua experiência lisérgica, detentora do poder de alterar consciências. Se o cérebro tivesse um ponto G, esta música titilá-lo-ia com pétalas e vibrações de seda.

Expo 70

O objecto voador identificado como Expo 70 é uma one man band veiculada por Justin Wright, californiano amante de cavalgadas cósmicas. Em rotação desde 2003, o projecto tem concebido gravações em catadupa, carregando já o peso de mais de 12 álbuns lançados, muitos deles em edição limitada e feitura artesanal. O segredo é simples, a estética complexa. Reside sobretudo na criação de longas peças instrumentais em improviso, perpétuos drones que descendem em linha directa do space rock ou da primeira e mais hermética vaga da kosmische musik. A música é sempre meditativa, minimalista, transcendental. Materializa-se do nada e evapora-se sem sabermos qual é o fim. Podemos atirar nomes, como quem lança cartas num truque de ilusionismo: Klaus Schulze, Kluster, Tangerine Dream, Hawkwind, Brian Eno, Sunn O))), Pink Floyd... Expo 70 é tão somente mais uma designação a juntar a esta metafísica congregação.
Os títulos e a imagética também não iludem. Infinite Macrocosm, Galaxy of Misticism ou Journey Through Astral Projection são discos que prometem o que cumprem: Longos minutos de abandono e hipnose sonora, para mentes disponíveis que procurem vaguear sem destino. As capas, apelativas simbioses de desenho e fotografia, de real e de imaginário, remetem-nos imediatamente para o grafismo garrido e psicadélico das edições da Brain, Ohr ou Sky na longínqua mas imortal década de 70. A quase totalidade do design é da autoria de Justin Wright, nitidamente um artista que depura no seu tempo o melhor de outro tempo. Tudo para seguir com maior detalhe em http://www.exposeventy.com/.
Um último parágrafo para destacar o mais recente (e soberbo!) lançamento deste projecto: Where Does Your Mind Go?. A avaliar pelo som que lá está guardado, para todo o lado e para lado nenhum em simultâneo. O álbum é constituído por quatro longos temas, quatro trajectos cósmicos e planantes, em que a noção do tempo é deliciosamente perdida. Podemos ouvir 10 minutos de uma peça e ter a sensação de que ela ainda agora começou... A música paira, como névoa, esticando e encolhendo os seus limites, convidando-nos tanto à abstracção como a esgueirarmo-nos para o portal que ela entreabre subliminarmente. A escolha é do ouvinte. Eu prefiro a segunda hipótese, bastando apenas seguir o conselho que dá título ao primeiro tema: Close Your Eyes and Effortly Drift Away...

9 de novembro de 2010

The Blue Nile Waltz

Em quase 30 anos de existência, a obra dos escoceses Blue Nile resume-se a quatro álbuns de estúdio. Os longos interregnos entre os lançamentos deixam intuir, para além da postura descontraída, uma banda mais preocupada com intenções artísticas que comerciais. E é certo que todos eles revelam preocupação com os detalhes, fazendo do trio de Glasgow autênticos mestres das possibilidades sonoras e técnicas do estúdio de gravação. Filhos da primeira geração do compact disc, os Blue Nile usaram e abusaram do digital nos primeiros discos, mas conseguiram sempre fugir à obesa e saturada produção que infectou os anos 80. O seu som é maduro, contemplativo, quase cinemático. É o som das grandes cidades à noite, imensas e solitárias, artificialmente luminosas mas sempre mergulhadas na escuridão. Vai beber ao jazz e à soul, sem deixar de ser pop alternativa para gente crescida e cansada de descargas hormonais eléctricas e descontroladas.

O primeiro longa-duração de Paul Buchanan e seus pares data de 1984 e intitula-se A Walk Across the Rooftops. Bateria é coisa que não existe por estas paragens. Os ritmos sintetizados são arrastados ou hesitantes. Somente nos dois singles extraídos do disco as coisas aceleram ligeiramente. De ambos, Tinseltown in the Rain é nitidamente o mais conseguido, um excelente pedaço de sofisticação pop, ao mesmo tempo emocionalmente exposto. O seu companheiro de 45 rotações, Stay, não é tão memorável, valendo pela sempre bela e sentida voz de Buchanan. O tema-título é um excelente exemplo de exploração do recente som digital da época. Uma escultura de estúdio, tecnicamente perfeita, mas arejada e penetrante em cada novo som que inventa. From Rags to Riches experimenta sons alienantes e que, opondo-se ao conceito de canção, acabam por tornar o tema mais misterioso e cativante. Mas os tesouros deste disco estão guardados nos temas mais lentos, que calha serem os três últimos. Heatwave e Automobile Noise são retratos perfeitos de solidão urbana, cinzentos blocos sonoros, de agridoce melancolia e contida lamentação. O ponto alto do disco é, definitivamente, Easter Parade. À mercê de um piano que soa como pingos de chuva, é uma monumental e triste canção, com Paul Buchanan mergulhado num esparso e poético solilóquio. Um momento de lindíssima solenidade.

Cinco anos volvidos, os Blue Nile regressam à suave carga com Hats. E este segundo álbum é, verdadeiramente, de se lhe tirar o chapéu. Estamos perante um discreto colosso, mas que é um dos melhores discos da década de 80. Mais atmosférico e denso que o seu antecessor, é perspicaz que uma livre descrição no YouTube o defina como o melhor disco para conduzir pela cidade à noite. Apesar de encaixar parcialmente na leitura da música, este rótulo é mais que redutor, pois Hats é, acima de tudo um disco para preencher a noite. Até muito tarde. Até que a solidão não doa. Até que a insónia cante vitória.
Hats ouve-se como um filme em widescreen que capta ruas nocturnas, molhadas de chuva, em que o asfalto reflecte néons azuis e vermelhos e em que automóveis se sucedem em câmara lenta. Uma noite anónima, que nos abre os braços com mil possibilidades de a atravessar, mas que, quando o abraço se fecha, apenas deixa resquícios de vazio. Não vale a pena apontar altos e baixos, pois todas as canções são clássicos distintos e sofisticados, vestidos a rigor para uma noite romântica cujo par é uma incógnita e pode até ser ninguém. Over the Hillside, Seven A.M., Saturday Night, projectam-nos para os solitários e nocturnos quadros urbanos de Edward Hopper, como Nighthawks, New York Movie ou Automat. Os dois singles, Headlights on the Parade e o fabuloso The Downtown Lights são melódicos e acessíveis sem perder o toque artístico e a elegância que percorre o álbum. Na melancolia escura e arrastada de Let's Go Out Tonight e From a Late Night Train somos engolidos pela noite, que nos gela o coração e nos arranha os ossos. Trazem-me à ideia a primeira quadra do poema O Sentimento de um Ocidental de Cesário Verde: Nas nossas ruas ao anoitecer/Há tal soturnidade, há tal melancolia/Que as sombras, a maresia, o Tejo, a melancolia/ Despertam-me um desejo absurdo de sofrer. Se Paul Buchanan lesse estas estrofes, aprovaria certamente. A sua sublime e emotiva prestação vocal é uma das mais sofridas e doridas que já ouvi. Sempre no limite da contenção, sem trair o gentleman ferido mas fleumático que narra estes épicos de solidão, romantismo e abandono. Hats é um disco enorme, que deve ser resgatado do esquecimento a que parece votado nos últimos anos.




Sete anos depois, Peace at Last apresenta-nos uns Blue Nile totalmente transfigurados. Longe das alquimias de estúdio, o álbum é maioritariamente acústico, com fortes influências country, gospel e soul. Happiness e Tomorrow Morning poderiam ser baladas de Bruce Springsteen da fase The River... Depois temos temas como Sentimental Man, Family Life ou God Bless You Kid, em que Paul Buchanan soa torturado como sempre, mas que ruminam as delícias da vida doméstica. É cruel dizê-lo, mas as melhores canções surgem em vivências de crise. Para os Blue Nile isto não é excepção. Estas odes de quem finalmente encontrou a paz são belas e bem arranjadas, mas demasiado mornas perante o fogo e o gelo de Hats.
Mais oito anos foram necessários para a banda dar à luz o seu quarto rebento. High de seu nome, é um disco de brando ardor, pleno de canções nocturnas e frágeis, mas sempre sofisticadas, como só os Blue Nile sabem fazer, apresentando-se como o real e digníssimo sucessor de Hats. O estilo e o bom gosto pululam por toda a obra, com arquitecturas electrónicas e acústicas em perfeito convívio. De Days of our Lives a Stay Close, passando por I Would Never, Because of Toledo ou Soul Boy, High será, talvez, um dos melhores discos de canções de 2004 que ninguém ouviu. Mais fica. Quem descobrir os Blue Nile agora, percebe que não perdeu nada. Toda a música foi preservada no âmbar que ultrapassa o tempo.

6 de novembro de 2010

Jazz Trip

Pelo que se ouve no começo, bem poderia ser uma composição de Albert Ayler ou Anthony Braxton. Mas a súbita e impiedosa invasão electrónica coloca-nos num limbo onde é estranho e intrigante permanecer. Esta coisa chama-se Triptik 2, espantosa primeira faixa do único álbum do francês Jean Guérin. Guérin costumava ser baterista de jazz nos finais dos anos 60. Free jazz para ser mais preciso. Como se a audácia e o experimentalismo dessa escola não lhe bastassem, o músico decidiu temperar o seu estilo com fortes injecções electroacústicas (Stockhausen e Xenakis perseguem-no com o olhar...) e adicionar-lhe ainda fortes pitadas de musique concréte.
Tacet, disco de 1971, é uma pérola na obscuridade, um dos mais surreais e originais discos de jazz do século XX. A base assenta nos alicerces usuais do género: bateria, trompete, saxofone e contrabaixo. Mas a intrusão poderosíssima da electrónica primitiva e a utilização da voz (neste caso a da senhora Françoise Achard) como uma interjeição instrumental a juntar às demais, colocam Tacet num plano mais elevado. No plano da música incatalogável.
Será jazz o que se ouve em Maochat? Será música clássica contemporânea o que se ouve em Ça va Lecomte? É tudo isto e ao mesmo tempo não é nada. O jazz empalidece até à transfiguração gerada pelas máquinas, a atonal estrutura das composições é mantida em lume brando por sopros esqueléticos de trompete ou cambaleantes swings de contrabaixo. Na Itália, os Dedalus esculpiam pedra similar. Tal como a electrónica abstracta dos alemães Kluster, que aqui parece encontrar uma alma gémea. Permitimos a entrada a Interminable Hommage a Zaza e a voz que nos sopra aos ouvidos parece tão inumana (em linguagem sensitiva e não no sentido filosófico de Lyotard) como a bizarra e estilhaçada instrumentação parece lisérgica. O melhor é deixado para o fim. Gaub 71 resume exemplarmente a trip à qual acedemos e da qual é difícil despertar. Nebuloso e centrífugo, leva o jazz (se é que se pode chamar a isto jazz) a mares nunca dantes navegados.
Depois desta experiência extrema, Jean Guérin nunca mais voltou. Tacet foi a banda-sonora de um esquecido fime de autor (Bof, de Claude Faraldo), mas o seu arrojo e ambição artística mantém-no até à data como banda-sonora para a mente. Um dos discos mais estranhos, vanguardistas e imprevisíveis que ouvi até hoje, em qualquer estilo. Continua a ser fundamental para o entendimento de como as linguagens electrónicas mudaram o rumo da música do século XX, radicalizando até o que parecia imutável. Uma lição e uma cartilha para os experimentalistas da actualidade.

4 de novembro de 2010

Kosmische Kosmetik XVIII

Nascido em Praga, mas tornado suíço, Sergius Golowin foi um dos nomes maiores da contra-cultura germanófila. Operando quase sempre na sombra, mas extraordinariamente influente nas mentes mais livre-pensadoras dos anos 60 e 70, o denominado Timothy Leary germânico foi personagem-chave na implementação e defesa da cultura jovem na Suíça e na Alemanha. Escritor por essência e investigador de temas esotéricos e enraízados no folclore teutónico, não tardou que Golowin fosse adoptado pela emergente vaga do rock cósmico e psicadélico nesses territórios. Essa associação acabou por gerar um fruto, que se tornou numa das obras de culto mais lendárias, mas pouco divulgadas, do krautrock: Lord Krishna von Goloka. Construído em 1973 e tendo como principais obreiros os membros dos Cosmic Couriers (congeminados pelo cérebro dominante do produtor Ralf-Ulrich Kaiser), Lord Krishna von Goloka é um disco que funciona como uma experiência religiosa, quase mística. Uma missa psicadélica e pagã, em que a música espacial serve na perfeição as declamações mântricas de Golowin. Segundo é apregoado, o guru vivia nos Alpes e tinha três mulheres, pelo que as musas parecem estar reunidas para uma forte dose de inspiração...
Três temas compõem o álbum. Der Reigen abre o portal para esta dimensão paralela, mergulhando-nos desde logo num mantra ritualístico e hipnótico. Os teclados ecoam em suspenso, circulares e penetrantes, até que surge Golowin, a sua voz em transe imperturbável, ecoando poesia cósmica. Flauta e guitarra acústica embalam-lhe as palavras até meio da viagem, altura em que o domínio folk é destronado pela invasão de uma percurssão primitiva e tribal, iluminada pelo piano cadente e cristalino de Klaus Schulze. Uma peça verdadeiramente do outro mundo! Die Weisse Alm parece espraiar-se ao longo dos Alpes, a melodia acústica e angelical a penetrar os ouvidos como de ar puro das montanhas se tratasse. E Golowin evoca a Edelweiss, a bela flor alpina, símbolo de pureza. Assim, toda a canção exala essa pureza e simplicidade, irradiando luz a cada movimento. Um hino à união entre a natureza e o divino, que convida a escapar para longe da asfixia urbana, rumo à meditação e à paz interior.
O improviso astral regressa com redobrada força em Die Hoch-Zeit. A congregação orgiástica dos instrumentos varia entre a aridez e a opulência, com destaque para as ondas planantes de mellotron e para os espasmos libertadores da percurssão, uma espécie de tambores do Punjab ecoantes e distorcidos. E não é preciso saber alemão para entender a mensagem, pois ela é universal.
Lord Krishna von Goloka assemelha-se, em menor dimensão, a outra obra concebida pela fina flor do krautrock: o monumental e soberbo Tarot de Walter Wegmüller, mais um helvético. Mas enquanto este oscila entre a iluminação e o oculto, o sagrado e o profano, Sergius Golowin revela uma experiência mística total. Um toque germânico dos deuses do firmamento a oriente.

Luzes Sombrias

O primeiro disco de Richard & Linda Thompson é o melhor de uma obra extraordinariamente consistente. Uma verdadeira obra-prima e um dos melhores álbuns de folk rock de sempre. É um disco tão belo quanto doloroso de ouvir. E o segredo da sua magia cortante como o frio de uma noite de Inverno reside na convergência entre beleza e dor.
Richard Thompson, um dos grandes guitarristas da história da música britânica, já não fazia parte dos seminais Fairport Convention. Linda, a futura esposa, era uma cantora de estúdio que ele abraçou sentimental e musicalmente. O primogénito fruto artístico da colaboração, I Want to See the Bright Lights Tonight, datado de 1973, é um disco praticamente intocável, comovente até para um coração empedrenido, espiritual até para um físico quântico.
Não há um tema que desponte acima dos seus pares. Persiste apenas a teimosia da perfeição. Richard dá voz a temas mais vincadamente tradicionais, como o sonho de fuga à opressão de When I Get to the Border e We Sing Hallelujah. A Linda e à sua forte e expressiva voz ficam entregues baladas lindíssimas como Withered and Died ou a solidão desesperada de Has He Got a Friend for Me. Favoritos pessoais, que toldam grandemente o discernimento, são a marcha lenta intitulada The Calvary Cross e o austero e sombrio tema final, The Great Valerio.
Sobra a grandeza dos restantes. E persevera a poesia em todos. Se a música prende pela melancolia, as palavras apertam ainda mais o nó com os seus relatos de vencidos da vida, amores impossíveis, fantasias proletárias e falsas esperanças. E basta aceder ao soturno The End of the Rainbow para ficar refém de um refrão que parece resumir a intencionalidade das letras do disco: Life seems so rosy in the cradle / But I'll be a friend, I'll tell you what's in store / There's nothing at the end of the rainbow / There's nothing to grow up for any more. Enfim, um tema apropriado ao Portugal de 2010...
Mais cinco álbuns sucederam a este. Viria a bizarra conversão do casal ao islamismo no excelente Pour Down Like Silver. E viria Shoot Out the Lights, a última estação antes do divórcio deste casamento que nunca poderia ser apenas musical. E foi este último o disco que mais se aproximou do estatuto de obra-prima alcançado por I Want to See the Bright Lights Tonight. Mais uma prova da grande arte que tanto brota do nascimento como da morte do amor.

Blues Attack

Reza a lenda que Jon Spencer cresceu quase sem acesso à música na casa onde vivia. Que as únicas sonoridades que permeavam as paredes eram de velhos discos de blues e programas de rock'n'roll debitados pelas rádios locais de New Hampshire. Isto tem um fundo de verdade tão consistente como qualquer rumor, mas é romântico imaginar que o futuro líder dos radicalmente ruidosos Pussy Galore e membro honorário da banda da esposa, os Boss Hog, angariou a crueza da sua música a partir dessas primárias sonoridades.
Em boa hora temos assistido, durante o corrente ano, às reedições da obra da Jon Spencer Blues Explosion, o mais vistoso projecto do norte-americano. Tem a peculiariedade de ser um trio sem baixista e com uso consistente de theremin. Apresenta música embebida no petróleo dos blues e do rock'n'roll e incendiada pela chama do punk e do noise, libertando a energia básica das primeiras e mantendo-se igualmente vanguardista e experimental. Álbuns de genial e provocante delírio associados a electricidade demoníaca como Orange, Now I Got Worry ou Acme, têm sido revistos e expandidos, para gáudio dos adeptos deste colectivo subversivo. Quem não conhece, está mais que na hora de deslizar para este pântano infestado e assombrado igualmente por Gun Club, Cramps, Dead Moon ou White Stripes. Ah, quem me dera ver estes rapazes a abrilhantar uma gala dos Ídolos ou um programa de Júlio Isidro com a serenidade e presença dos grandes artistas. Mais ou menos assim:

30 de outubro de 2010

Kosmische Kosmetik XVII

Pouco se sabe dos misteriosos E.M.A.K., sigla que resume Elektronische Musik Aus Köln. Pioneiros na definição da música electrónica moderna, este quarteto de Colónia transpira influências óbvias dos Kraftwerk e dos Cluster mais convencionais, acrescentando-lhes uma cristalina abstracção e um cinzentismo melódico tipicamente pós-punk.
Datado de 1982 e surgindo num período em que os grandes nomes da grande música alemã se desvaneciam ou entravam em lenta retracção, o primeiro álbum dos E.M.A.K. é um excelente e influente tomo da melhor sonoridade electrónica surgida no país da sauerkraut. E não há muito a dizer perante o génio dos dois temas que começam por brotar desta obra. Duas micro-sinfonias electrónicas, frias na estrutura mas contagiantes na forma, a primeira Alhara e a segunda Filmmusik. Se a primeira serpenteia à nossa volta, aprisionando-nos numa espiral de arabescos digitais, a segunda transfigura o clássico ritmo motorik dos Neu! ou Harmonia para encher o espaço circundante e assumir-se, desde logo, como o melhor tema do disco.
Ohne Titel é um belíssimo e visionário tema, um pedaço de electrónica futurista, tão dançável como meditativa, curto na duração, mas persistente na intenção. Reminiscências reformuladas das lendárias gravações de Brian Eno com os Cluster e do mesmo com David Byrne surgem, respectivamente, em Biela e em Was Kann Der Papst Da Sagen. Wenn Mr. Reagan Es Will é o único tema cantado do álbum, uma monolítica e paranóica ode à ameaça nuclear latente na alvorada dos anos 80. Uma certa desolação nocturna e urbana estrangula a maioria dos temas do disco, tornando-o ainda mais sombrio e anónimo. Gewitterluft e Schlammgang são assombrados por espectros industriais e solitária alienação. Tanz In Den Himmel é o protótipo da Neue Deutsche Welle, a nova vaga da música alemã, preenchida por ritmos robóticos e fraseados tão belos como melancolicamente gélidos. Por último, Bote Des Herbst abandona-nos na periferia opressiva e invernosa de uma noite sem destino. Este tema é como apanhar o último metro para casa e assistir, sozinho, à rotação sucessiva de estações desprovidas de vida. Se Ian Curtis fosse vivo, teria aplaudido de pé. Os New Order tê-lo-ão feito, se o escutaram. Sim, porque não há como escapar à imagética muito Factory da capa minimalista e artesanal do álbum.
O primeiro disco dos E.M.A.K. surge numa altura em que influências germânicas e britânicas convergiam, em bandas emblemáticas como os D.A.F., Cabaret Voltaire ou Throbbing Gristle. A partir daqui, começou a ser esculpida a melhor e mais inteligente música embebida em electrónica que se ramificou até à actualidade. E, seguindo a compulsão namedropping das linhas acima, basta citar nomes menos recorrentes mas de inegável qualidade como Schneider TM, Schlammpeitziger ou Kreidler para comprovar o legado dos E.M.A.K. e deste extraordinário disco. Merecedor, indubitável e independentemente da data em que viu a luz, de um lugar no panteão da mais selecta e refinada kosmische musik...

Welcome to our 21st Century

Desconheço o autor, mas não resisti à crueza irónica das palavras. Obrigado à amiga que mas revelou.

Our communication: wireless

Our phones: cordless

Our cooking: fireless

Our food: fatless

Our sweets: sugarless

Our labor: effortless

Our relations: fruitless

Our attitude: careless

Our feelings: heartless

Our politics: shameless

Our education: worthless

Our mistakes: countless

Our arguments: baseless

Our youth: jobless

Our ladies: topless

Our boss: brainless

Our jobs: thankless

Our need: sendless

Our situation: hopeless

Our salaries: less & less

Our protests: useless

27 de outubro de 2010

Fragments of a Sabotage

Em 1977, por alturas da edição do EP Animal Justice, John Cale era um homem de extremos. Um homem de excessos. Personagem fulcral na génese do punk rock, revestia as suas prestações ao vivo de agressividade e energia primárias e triturantes. Mergulhado em cocaína e de nervos esfrangalhados, Cale transportava as suas paranóias para o palco, fazendo dele um autêntico cenário de guerra. O episódio mais memorável destas investidas descontroladas será certamente o concerto em que Cale decapitou uma galinha. A banda abandonou-o em palco e ele cristalizou o instante na pragmática canção Chicken Shit. Os defensores dos animais insurgiram-se e a sua resposta é lendária: I didn't hurt it, I killed it.
Igualmente animalesco a espaços, Sabotage/Live, de 1979, é um excelente documento deste período tempestuoso da carreira de John Cale. Reunido em torno de um conjunto de temas originais gravados ao vivo no lendário club nova-iorquino CBGB's, é um disco visceral, crú e cavernoso, debitando metralha a cada instante e com poucos episódios de cessar-fogo. Esta linguagem militarizada aplica-se perfeitamente ao álbum: basta olhar a capa e ficar exposto ao primeiro tema, Mercenaries (Ready for War). Nota-se a paranóia nuclear do auge da guerra fria e a luminosidade mortiça e doentia de bunkers pós-holocausto. A voz de Cale está mais gutural e enrouquecida que nunca, trazendo até pontuais reminiscências do Motörhead Lemmy. Baby You Know e Sabotage enterram-nos essa aspereza tímpanos abaixo, sem dó nem piedade, envolta em rock pesado e urgente.
Captain Hook merece um parágrafo por si só. O melhor tema do álbum e um dos mais penetrantes do compositor galês, avança como um navio fantasma na noite ao longo de 12 minutos. A letra tanto nos aponta para uma metáfora da decadência do imperialismo britânico, como para as malhas da dependência de narcóticos. No final, após uma trémula e tétrica introdução e uma melodia vagueante e sofrida, Cale surge à beira do colapso, anunciando: By hook or by crook, I am the captain of this life. Acme supremo para uma grande, grande canção, da qual é impossível escapar ileso.
Momentos de acalmia surgem apenas em Only Time will Tell, doce melopeia cantada por uma misteriosa senhora de nome Deerfrance, e em Chorale, lindíssimo e agridoce tema a cappella que encerra as festividades. O supracitado Animal Justice EP foi (e bem) acoplado à reedição de Sabotage/Live. Vale sobretudo pela magnífica e arrastadamente sombria Hedda Gabler e pelo claustrofóbico e provocador Rose Garden Funeral of Sores, mais tarde alvo de uma versão mais histriónica que assustadora dos góticos Bauhaus.

Europa, 1992. No rescaldo de uma tournée continental, John Cale edita Fragments of a Rainy Season. Nele, a sua obra é revisitada num registo totalmente acústico, ao piano e à guitarra, resultando num disco plácido e contemplativo, mas sempre belo e emotivo. Clássicos como (I Keep a) Close Watch, Paris 1919 ou Fear (Is a Man's Best Friend) mantém a sua retorcida espinha dorsal, enquanto o despojamento acentua a angústia que as caracteriza. Dying on the Vine ou Cordoba, libertos dos arranjos originais, revelam uma beleza simples e penetrante. Do mesmo modo, a electricidade de Guts e a paranóia de Leaving It Up To You, vêem maximizada a tensão que as assombra com esta nova roupagem. E nunca será demais exaltar a excelência que domina a versão absolutamente arrebatadora de Hallelujah de Leonard Cohen (melhor, só a leitura de Jeff Buckley), bem como a escuridão desolada de Heartbreak Hotel. Surgida pela primeira vez em 1975, no álbum Slow Dazzle, a versão do original de Elvis Presley rapidamente se tornou trademark nos concertos de John Cale. Alvo de vários arranjos ao longo do tempo, a variante oferecida em Fragments of a Rainy Season é a mais surpreendente. Longe da atmosfera paranóica e rarefeita de 75, este Heartbreak Hotel é uma lenta e arrastada queda no poço profundo da solidão. Arrepiante e perturbadora.
John Cale é único, é um dos grandes. Nunca haverá mais ninguém como ele. Estes dois discos retratam fielmente o homem mais insano e o homem mais introspectivo. São obras de música verdadeira, talhadas na pedra por mãos que não param mesmo quando sangram. E, quando a dor é insuportável e o medo o melhor conselheiro, é possível amparar a queda com o pára-quedas da arte.



24 de outubro de 2010

No Wave, James

James Siegfried, ou James Chance, ou James White, é um dos nomes flagrantes do movimento No Wave nova-iorquino de finais de 70. Co-fundador (com Lydia Lunch) dos Teenage Jesus & the Jerks e mentor dos Contortions e dos Blacks, James (...) foi um dos pioneiros na fusão entre punk e jazz, entre punk e funk.
Off White, primeira de duas obras editadas sob o nome James White & The Blacks, é a obra onde melhor se expõem as entranhas desta osmose. Disco de 1979, tresanda a uma Nova Iorque nocturna, vampírica, escura e suja por todos os poros. Se James Brown salta à vista pelas razões óbvias do heterónimo escolhido pelo vocalista / saxman, o jazz mais visceral e libertário de Albert Ayler ou Eric Dolphy pulula pelas desconjuntadas composições do álbum.
Se fosse feita justiça a Contort Yourself, esta seria um clássico em qualquer pista de dança inteligente (e intemporal) do mundo. Mistura perfeita entre disco sound viperino e o pontual látego do free jazz, é um dos melhores temas de sempre da No Wave. Entranha-se sem explicação, enquanto a letra bombeia questões insofismáveis como Why don't you try being stupid instead of smart?.
Stained Sheets podia ser banda-sonora de filme pornográfico low budget. Uma conversa telefónica entre um macho man e uma senhora (neste caso, Lydia Lunch) que responde apenas com gemidos. Sentem-se os néons vermelhos a piscar, iluminando quartos minúsculos com camas desfeitas e cinzeiros cheios de beatas em pirâmide. A bipartida Almost Black é uma delícia sleazy, um escapismo nocturno pelas ruas de Brooklyn ou Harlem, ignorando ou encarando o olhar das prostitutas, enquanto o fumo emerge das caves onde o jazz se esvai como baforadas vulcânicas.
Off White acentua a vertigem nocturna e fumarenta, carregada de bourbon e batôn vermelho sobre golas brancas. Apagam-se cigarros no tablier, entornam-se garrafas no banco de trás. Alguém terá algo filosófico a dizer, um quadro para mostrar, um poema instantâneo para recitar, nesta Big Apple fora de horas, mas que nunca dorme. O saxofone de James White guincha e intriga sobre a teia rítmica, que se confronta cara a cara. O panorama não muda, parecendo até acentuar-se, num disco que avança como uma noite avariada, carregada de personagens estranhas e ambientes densos e irreais. Basta penetrar de ouvidos bem abertos na estilhaçada arritmía de White Devil ou na música de fundo de strip-tease para zombies de Bleached Black. Mas há sempre espaço de sobra para o humor negro neste álbum transgressor. Basta ouvir o jazz funk apunkalhado do magistralmente endiabrado tema que o encerra, intitulado Christmas with Satan. E até o calypso se imiscui nesta paisagem opressivamente urbana, no belíssimo e detached (Tropical) Heat Wave. Claro que os estilhaços dissonantes do saxofone flagelam a melodia ensolarada, senão isto não seria Nova Iorque em 1979.
O colectivo conhecido como James White & The Blacks editaria mais um disco de impacto, Sax Maniac, em 1982. Entretanto, a banda acabaria por metamorfosear-se nos Defunkt e James Siegfried (ou Chance, ou White) prosseguiria a sua saga só ou (melhor ou pior) acompanhado. Até hoje, sendo que a recente e excelente compilação Twist Your Soul - The Definitive Collection, fornece uma importante súmula deste músico tão rebelde e inovador. Um maníaco do saxofone, como se assiste neste excerto da obra de culto Downtown 81, filme obrigatório e que regista em regime free form o movimento No Wave.


Leituras de Pessoa

Tem sido amplamente noticiado, mas nunca é demais regozijarmo-nos com a disponibilização online da biblioteca pessoal do maior poeta português. A mesma contém mais de mil livros, e percorre transversalmente géneros e estilos, que vão da psicologia ao ocultismo.
É uma acção mais que louvável e uma chance única para percorrer de fio a pavio as leituras de Fernando Pessoa e conhecer o que inspirou e influenciou o autor d' O Livro do Dessassossego. A mastodôntica obra, que poderá levar anos a desbravar, está arrumada e catalogada no site da casa Fernando Pessoa, que é o mesmo que dizer aqui...

15 de outubro de 2010

Here are The Walkmen


Não é isto que o rótulo indie rock devia proporcionar? Grandes canções para gente que não entra na porta grande da vida? Se é, os norte-americanos The Walkmen fazem-no na perfeição. Encetaram o trajecto com urgência e arrebatamento:



Ao arrebatamento adicionaram um desespero adulto e contido, quase majestoso:



Sim, o som roça o clássico e o vocalista assemelha-se a um Rod Stewart jovem, antes de se dedicar à arte do foleiro e ao estupro de canções alheias. Mas o arrebatamento e a majestade perduram, sendo que o seu álbum mais recente, insondavelmente intitulado Lisbon, é um dos melhores discos do ano. A guitarra de Juveniles é um ferrão agridoce numa trôpega celebração; Angela Surf City é uma vibrante canção que evoca as influências surf-rock da banda e gira até se escapar do eixo que a equilibra; Woe is Me bebe do mesmo cálice, sucessivos shots, para tentar esquecer; Stranded é outro tema divinal, algures entre as alucinoses desérticas dos Triffids e o inescapável dédalo de betão nova-iorquino; Lisbon meneia movimentos de abandono e ostenta um meio sorriso ébrio, dançando tremulamente em direcção à madrugada. Assim se faz um disco soberbo com nome de cidade estrangeira em Nova Iorque. Um disco intemporal como os melhores o são, pleno de momentos que nos transfiguram e arrepiam. Cheio de guitarras ecoantes, penetrantes, vocalizações que irrompem de desditas almas e atmosferas nocturnas, arcaicas na sua angústia. Talvez streetwise seja o termo ideal para as descrever. The Walkmen: Uma das melhores (senão a melhor) bandas norte-americanas da actualidade. Esperemos que se mantenham a cirandar à noite pelas ruas...

7 de outubro de 2010

Rising Anger

Kenneth Anger, 83 anos, é um dos maiores realizadores de culto da história da sétima arte. Um cineasta vanguardista, experimental e, acima de tudo, anti-establishment. Homossexual assumido desde a época em que esta orientação era ilegal nos E.U.A., Anger sempre maquilhou os seus filmes, como Fireworks ou Scorpio Rising com uma enorme carga homoerótica. Codificada e mascarada, como não podia deixar de ser em tempos obscurantistas. Mas o sentido subversivo e subterrâneo da sua arte não se reteve nesta restrita área. O melhor da sua filmografia, composta exclusivamente por curtas metragens, assenta numa peculiar abordagem de temas ocultistas e esotéricos. Na linha divisória entre o místico e o kitsch, películas como Inauguration of the Pleasure Dome, Invocation of My Demon Brother e Lucifer Rising, são um misto de criatividade cénica e de paganismo moderno. O imaginário de Aleister Crowley e da religião por ele fundada - Thelema - carrega as obras de um flamejar ritualístico e os filmes são autênticos ícones da cultura pop mais transgressiva. Lucifer Rising, por exemplo, imiscui magistralmente rock e cinema e contribui para percebermos o porquê de Kenneth Anger ser próximo de Mick Jagger, Marianne Faithfull ou Jimmy Page. Para além do culto que a envolve, a obra possui uma banda-sonora magnífica da autoria do problemático (e preso há quase 40 anos por assassinato...) Bobby Beausoleil. Aqui ficam Beausoleil in his own words (Fallen Angel Blues – the story of LUCIFER RISING) e a mítica obra.



Personagem algo ascética, apesar da sua vida intensa, Anger esteve retirado do cinema mais de 20 anos. O culto não esmoreceu, fazendo do realizador um dos mais prestigiados outsiders do universo cinéfilo. A sua última criação, um filme promocional para a casa de moda Missoni prova que ainda não perdeu o assombro. Aliás, a obra é tão absorvente que é difícil alguém lembrar-se da Missoni. Still iconic after all these years...

O Alfarrabista

O facto de ter nascido em Itália pode ter contribuído para o facto de Piero Scaruffi ser um autêntico Homem do Renascimento. Conhecido por ser um perito em tudo quanto é música, Scaruffi é igualmente pródigo noutras áreas, opinando e dissertando acerca de ciências, filosofia e viagens. E ainda lhe sobra tempo para ser poeta...
Não me recordo de mais ninguém que tenha construído uma base de dados do conhecimento. Para além de ser um projecto visionário, não deixa de ser um pouco megalómano. Mas, na sua essência, é extremamente vasto e interessante, ao ponto do New York Times o considerar The Greatest Web Site of All Time.
A obra notável deste verdadeiro intelectual, um dos poucos idealistas que sobrevivem à superficialidade e mediocridade culturais propagadas hoje dia está toda aqui: http://www.scaruffi.com/. Escusado será frisar a obrigatoriedade de uma visita prolongada...

Desconcerto

Bem-aventurados os que lá estiveram, pois foram recompensados. A estreia dos Faust em terras lusitanas, mais de 40 anos depois da sua formação, roçou a perfeição. Divergente, bizarro, abrasivo e diferente de tudo, como sempre foi, o conjunto hamburguês presenteou-nos com um espectáculo no limiar da liberdade e do descompromisso artístico. Por lá girou a betoneira costumeira, troaram bidões e uivaram berbequins. Um microfone deu voz a um balde de entulho. James Johnson foi catártico; Geraldine Swayne pintou um quadro; Jean-Hervé Péron regou-o com vinho; "Zappi" Diermaier completou o painel com ritmos do outro mundo. A música, essa, transcendeu limites e convenções. Temas da primeira encarnação dos Faust como Miss Fortune ou Mamie is Blue cruzaram-se com as texturas mais industriais e punitivas das últimas edições. Surrealismo, descontrução, imprevisto e uma enorme comunhão com a audiência culminaram numa interpretação devastadora do clássico Krautrock. Um concerto de sonho? Para mim, um memorável desconcerto! É urgente que voltem depressa, para assombrar e deixar em escombros outra sala lisboeta. Entretanto, nunca é cansativo recordar...

6 de outubro de 2010

Camion Blanc

Para quem gosta de biografias ou ensaios musicais e sente-se confortável para lê-los em francês, a editora gaulesa Camion Blanc fornece uma grande ajuda. O seu catálogo actual é constituído por inúmeras e variadas obras, transversais a todos os géneros do rock. Dos Einstürzende Neubauten aos Motörhead, de Ian Curtis a Johnny Cash, as propostas são imensas. Ensaios alternativos, tais como uma antropologia do metal extremo, ou uma obra dedicada à obscura editora Sordide Sentimentale, compõem igualmente a estante. A totalidade das edições estão disponíveis para consulta e aquisição em http://www.camionblanc.com/.

24 de setembro de 2010

25 Labirintos

A obra de Peter Hammill assemelha-se a uma biblioteca labiríntica, percorrida por intermináveis corredores, recantos obscuros e passagens secretas que não levam a lado nenhum ou desembocam em novos e escuros dédalos. Hiperactivo a solo desde os finais da década de 60, o pontual líder dos Van der Graaf Generator tem deixado atrás de si um trilho interminável de composições complexas e sem cedências comerciais. Dono de uma voz única, capaz de emocionar num segundo e aterrorizar no outro, o trovador londrino dos tempos modernos é, muitas vezes, um caso de amor-ódio, ou de paixão-frieza. Aqui é exposta uma parte da sua extensa obra. Os 25 melhores e mais celebrados discos da carreira discreta, mas influente, de um dos verdadeiramente originais compositores do rock do século XX (e, porque não?, do século XXI). Quem os conhece e admira, sabe que nunca é demais voltar a eles. Quem desconhece ou ignora o homem e a sua obra, é de lamentar, mas nunca será tarde para entrar como iniciático no culto Hamilliano... Uma aliciante são as recentes remisturas com faixas extra dos mais emblemáticos discos do músico, que destilam e muito a qualidade do som. Novidades acerca de Peter Hammill, bem como a discografia detalhada e as letras (soberbas) das suas canções, encontram-se em http://www.sofasound.com/.

I - Fools Mate (1971). Um clássico como estreia. É um disco único na carreira de Peter Hammill, feito de temas directos, curtos e melódicos. Nunca mais haveria uma obra assim no seu historial, um disco que parece emergir dos jardins labirínticos e das sombras complexas dos VdGG em direcção à claridade. Aliás, este deve ser o único disco de Hammill que apetece ouvir de dia, até num dia límpido. A genialidade sucede-se, canção após canção. Candle e o seu embalo levemente psicadélico; a intrincada intensidade de Re-Awakening; Viking e o drakkar romântico que o transporta na bruma. E, na primeira linha, as lindíssimas e inesquecíveis baladas, o cartão de visita do bardo. Vision é perfeita. As estrofes Let me die in your arms / So the vision may never shatter e o modo como são cantadas anunciam já um homem que canta o amor como mais ninguém. The Birds: igualmente perfeita. Um canto à Primavera murmurado por um coração outonal, que já não a sabe sentir. Solitude, Child e I Once Wrote Some Poems são belíssimos prenúncios da evocação de ambiências medievais, austeras e melancolicamente trovadorescas, feitas de amores impossíveis ou falhados que pontificam invariavelmente nos discos de Hammill.

II - Chameleon in the Shadow of the Night (1973). Adensam-se as sombras e a complexidade instala-se. Hammill mantém-se um artista acústico, mas as composições pouco possuem de folk, deambulando em variações mais próximas do progressivo. Composto e gravado no hiato dos VdGG, mas com a sua participação, é um disco que reflecte sobre as relações, a amizade, as separações e, agora e sempre, o amor. É o primeiro álbum do cantor a ostentar o logotipo a ele associado: o signo do Escorpião. Mas é mais bílis poética que veneno letal, o que é cuspido de temas como os brilhantes German Overalls, In the End ou o febril Rock and Role. Easy to Slip Away é uma escura e solitária balada sobre amigos que se esvaem no tempo. A frase So, dear friends, as we grow on we feel to grow away fala por si. O último tema, (In the) Black Room, recupera a teatralidade sombria, operática e estilhaçada dos VdGG com toda a intensidade avassaladora que está no seu ADN. É uma peça claustrofóbica, agonicamente solitária, uma confrontação do Ser consigo próprio e a sua existência. Mais um tema querido e esmiuçado no universo Hamilliano. O camaleão não consegue mudar de cor na sombra da noite. Assim o artista se revela despojado.

III - The Silent Corner and the Empty Stage (1974). A sombra alastra. Um dos melhores álbuns de sempre de Peter Hammill, esta obra de 74 adiciona esoterismo, religião e existencialismo à cartilha já cerebral do cantor. A temática do isolamento e da alienação urbana despontam no absorvente e apocalíptico Modern, uma das mais resistentes canções de Hammill. A vocalização roça o possesso, a música é um Leviatã que nos absorve. Aconteceu em meados dos anos 70 que concertos de Peter Hammill e dos VdGG terminassem em motins. O caos asfixiante de Modern é um importante contributo para essa finalidade. The Lie (Bernini's Saint Theresa) evoca, como o título sugere, O Êxtase de Santa Teresa, escultura de Bernini. Um piano atroador antecede a estrofe Genuflexion, Erection in Church. Segue-se um pêndulo que oscila entre o carnal e o místico, suspenso de um tecto esmagador, entre quatro paredes de pedra. Como é habitual, os restantes três membros dos VdGG tocam no álbum, fazendo deste quase uma obra da banda em nome próprio. Este apêndice musical nota-se de sobremaneira no pulsante e fumarento Red Shift e no abismal A Louse is not a Home, um mergulho nas trevas que só não arrepia um comatoso. É notória a influência de Edgar Allan Poe e a angústia gótica que Peter Hammill sempre empregou magistralmente no rock progressivo alcança aqui proporções vertiginosas. A juntar ao cardápio, três temas maioritariamente acústicos, geniais como os demais e que contribuem para a excelência do disco: a súplica a Wilhelmina para que não perca a juventude, a introspecção de Rubicon e a melancolia face ao vazio das sociedades modernas de Forsaken Gardens. Em suma, um disco grandioso e misterioso, tal como a capa concebida por Bettina Hohls, uma ex-residente dos Ash-Ra Tempel. Para ouvir alto, em reclusão.

IV - In Camera (1974). Claustrofóbico e negro, In Camera abre de forma enganadora com a bela e envolvente balada Ferret and Featherbird. (No More) The Sub-Mariner carrega nas teclas pretas do órgão e solta poeira antiga de um piano tétrico, numa conjunção fatalista e de contido desespero. Prosseguem as agruras da existência humana em exercícios progressivos soberbos como Faint-heart and the Sermon e, especialmente, The Comet, the Course, the Tail. Uma dorida balada parece querer passar sem se fazer notar, mas a voz ecoa fundo demais para passar despercebida. Chama-se Again.
Gog é o tema mais dantesco que Hammill alguma vez engendrou. Um poema e uma melodia arrepiantes, uma entrega vocal nos limites de romper a laringe. Perturbante e dissonante, é o mais parecido com uma queda nos vapores sulfurosos do Inferno que terá sido gravado até hoje. Faz o black metal nórdico parecer minúsculo na amálgama da sua cacofonia... A prossegui-lo surge o igualmente niilista Magog (in Bromine Chambers). O mesmo consiste em 10 minutos surreais, encarcerados numa masmorra de música concreta, ruídos percurssivos e voz artificialmente alterada. Pode ser demasiado para alguns, pode fazer a delícia de outros tantos. Certo é que In Camera é um dos álbuns mais radicais de Peter Hammill, sendo ao mesmo tempo um dos mais amados pelos seus devotos.

V - Nadir's Big Chance (1975). Peter Hammill, o punk. Ricky Nadir, o alter-ego. É provável que se tenha fartado da aura negra que o envolvia desde os últimos lançamentos. Que lançasse um olhar mais cínico por cima dos alfarrábios de Jorge Luis Borges ou Edgar Allan Poe que consumiam e assombravam a sua escrita. Nadir's Big Chance é o álbum mais directo do artista desde Fools Mate. Chega a ser considerado como uma das obras-chave no surgimento do movimento punk em Inglaterra. John Lydon, dos Sex Pistols, cita Hammill como grande influência, assim como David Bowie o fez (o que é óbvio, sendo o caso mais flagrante Station to Station).
Quanto ao disco em si, temas curtos e musculados misturam-se com baladas moldadas com mestria e algum experimentalismo. Realce para o tema-título, Open Your Eyes e Nobody's Business. Been Alone so Long é uma das baladas mais tocantes do reportório Hamilliano. Shingle e Airport são outros dois temas arrastados, cobertos de nuvens cinzentas. Destaque obrigatório para a tepidez quase soul de Pompeii e para o provável melhor tema escondido do álbum, The Institute Of Mental Health, Burning.

VI - Over (1977). A obra-prima do amor perdido. Da frustração e desorientação. Muitos tentaram algo assim, pouquíssimos conseguiram. A dor que transborda de Over é tão forte e tão real que mais nenhum disco lhe chega aos calcanhares em termos de intensidade e exposição das entranhas dilaceradas pela infidelidade feminina. A senhora que Hammill identifica como Alice dá-lhe água pela barba e temas nús e crus como (On Tuesdays She Used To Do) Yoga e Alice (Letting Go) são quase psicanalíticos na assumpção do trauma, na procura dos seus motivos, no desespero da sua resolução. O músico aparece indefeso e amargo em Betrayed; envolto em raiva e ruminações em Crying Wolf. A música é sempre magistral, acompanhando a preceito cada variação emocional, num misto de frieza e flagelação. Somente no último tema, o denso e funesto Lost and Found, parece começar o luto e, com ele, a procura de uma saída. Até lá, há que atravessar momentos dolorosos e cortantes como os do magnífico Time Heals e do admirável This Side of the Looking-Glass. This Side of the Looking-Glass é o momento alto do álbum. Talvez até o momento alto da carreira de Hammill. A sua voz solitária é acompanhada por uma orquestra em crescendo e é das mais sinceras, sofridas e belas canções de amor que ouvi até hoje. Chegou a ser considerada a melhor utilização de uma orquestra sinfónica levada a cabo por um artista externo a este universo. Um poema na fronteira entre a tristeza e a loucura, uma instrumentação de ir às lágrimas, uma ária gótica e suicida. A Itália ama e sempre amou o trovador e os seus VdGG. De todos os actos do progressivo britânico, são aqueles que mais comungam do mesmo sentido composicional e teatral. Hammill chegou a traduzir um álbum inteiro dos italianos Le Orme para inglês e o que se ouve nesta canção é uma intensidade melódica e dramática digna de Puccini. O equivalente rock de Nessun Dorma...
Somente um tema parece afastar-se da temática destroçada do disco. Trata-se da segunda canção, Autumn, que reflecte sobre o envelhecimento e a solidão que acarreta. É igualmente poderosa e não menos inesquecível que as suas depressivas irmãs. Over não é um disco para todos os dias. É para os dias em que precisamos de sentir alguém a sofrer no mesmo espaço que nós.

VII - The Future Now (1978). Se Peter Hammill não tivesse sentido o rude golpe da separação, é provável que este disco fosse o sucessor natural de Nadir's Big Chance. The Future Now percorre um território paralelo, mas corre mais riscos, nomeadamente a nível da experimentação e da inovação, o que faz dele uma das obras mais variadas e interessantes da discografia do músico. Como existe cinema de autor, assim esta música é de autor. Ainda hoje é um disco que surpreende pelo arrojo e frescura, um disco que prova que Peter Hammill foi (e continua a ser) um homem à frente do seu tempo. Muitas das letras são impenetráveis e a sua capa, será, certamente, a mais iconográfica... Um misto de temas adjacentes a uma estranha e bizarra visão da new wave (Pushing Thirty, The Second Hand) juntam-se a baladas outonais (The Mousetrap (Caught in), Still in the Dark) e a experimentos mais ou menos cerebrais. Este últimos são a verdadeira lufada de ar fresco do álbum, e soam diferentes de tudo o que Hammill deixou para trás. É interessantíssimo e desconcertante ouvir temas tremendamente desafiantes e arty como Energy Vampires, A Motor-bike in Africa, The Cut ou Palinurus (Castaway). Um último destaque para os dois clássicos que o disco encerra: a genial balada If I Could e a canção de protesto The Future Now, criações que, ainda hoje, são recriadas nos concertos do artista.

VIII - PH7 (1979). Envergando uma capa que parece saída do expressionismo alemão e que agradaria decerto a Conrad Schnitzler ou aos Kraftwerk, PH7 retorna a espaços mais acessíveis que o disco do ano anterior. Mesmo assim mantém o cinzentismo urbano que tomou conta de Hammill desde 1975. Abre com uma aprazível e trovadoresca balada (My Favourite) e fecha a porta atrás de si com um complexo engenho progressivo de nome Faculty X. Mr X (gets Tense) anda lá perto. De lembrar que os VdGG tinham reduzido o nome para Van der Graaf e a música do colectivo mudou drasticamente para temas mais directos, sem nunca perder a complexidade. Muito ao estilo dos King Crimson, banda que também nunca se deixou atraiçoar pelos clichés do progressivo. Há pistas que intuem a contaminação de arquitecturas pós-punk em grandes temas como Porton Down, The Old School Tie ou Imperial Walls. No lado negro do disco, Mirror Images, a elegíaca Not for Keith e Time for a Change não dão tréguas ao pessimismo e revolvem a massa encefálica do ouvinte que as receba em crise.

IX - A Black Box (1980). Há uns 15 anos atrás, privei uns meses com um inglês, Hammilliano convicto, que me disse que este é o disco mais reclusivo e pessoal de Peter Hammill, surgido depois de uma suspeita de cancro que, felizmente, não deu em nada. Palavras leva-as o vento e não há provas que isso tenha acontecido. Mas o disco é povoado por uma aura angustiante, o que não é estranho ao universo do músico. Todos os temas são fortes e pungentes. Hammill soa urgente, as melodias variam entre o nebuloso e o agressivo, fazendo de A Black Box quase um disco on the raw. Golden Promises e Losing Faith in Words parecem saídos de uma banda rock de garagem, ou melhor, de uma caverna, tal a rudeza e pureza da entrega. Jargon King e The Wipe são quase demenciais, parecendo a última um complemento instrumental da primeira, um objecto descarnado e efeverescente. The Spirit é o mais próximo que o cantor alguma vez se aproximou do rock americano. Dir-se-ia que nas suas costas estariam os Crazy Horse. Fogwalking será o ponto alto do disco. Um passeio nocturno por ruas envoltas em nevoeiro (as da londrina Whitechapel), das quais só se discerne o brilho translúcido dos candeeiros. É poético e sinistro ao mesmo tempo, como se nos convidasse a sair de casa numa noite de Inverno para percorrermos sozinhos as ruas da incerteza. O multipartido e vertiginoso Flight vem encerrar este magnífico álbum, sendo o maior tema que Hammill oferece desde 1974. Espera-se uma miríade de momentos magistrais e não somos defraudados. O cantor assegura praticamente todos os instrumentos neste disco, mas o destaque neste tema vai para o magnífico trabalho no saxofone do Van der Graaf David Jackson, outro músico de créditos firmados.

X - Sitting Targets (1981). Os Van der Graaf estão irremediavelmente extintos. Até 25 anos mais tarde. Os anos 80 parecem ter invadido as edições de Peter Hammill, pelo menos ao nível da produção. Sitting Targets é o disco mais pop do músico. Exigências dos tempos. Há sintetizadores, caixas de ritmos e sons electrónicos que aparecem e desaparecem. Uma estranha sensação instala-se perante a primeira audição de Breakthrough e My Experience. A parafernália técnica é uma bola de neve a crescer na nossa direcção. Mas o conforto é que as composições mantém-se excelentes para além do polimento. Hammill continua a ser Hammill. Ophelia surge como uma das suas grandes baladas, uma canção de amor para as tardes douradas de Outono, aquosa e pastoral. Glue é glacial, uma peça de electrónica distante que parece fora do universo emotivo do músico, mas que resulta magnificamente. Uma palavra de apreço para as igualmente excelentes Empress's Clothes, Stranger Still e Central Hotel. As duas últimas ainda envergam, amiúde, uma pelagem acústica ao vivo que provoca arrepios na espinha pela intensidade da interpretação.

XI - Enter K (1982). Peter Hammill convoca uma banda, The K-Group, que o tem acompanhado ao vivo durante a promoção dos dois álbuns antecedentes. Para o efeito, cada membro da confraria adopta um heterónimo: Hammill será K; o guitarrista John Ellis será Fury; o baixista Nic Potter será Mozart; o baterista Guy Evans será Brain. Paradox Drive parece germinar de um álbum de Lou Reed, com o seu gingar urbano e guitarras a direito. Imediatamente a seguir, a fabulosa The Unconscious Life fecha-nos sozinhos no quarto escuro que procuramos sempre que procuramos Hammill. Enter K será, provavelmente, o primeiro da estética que ainda hoje pontua as suas obras. Um disco de art rock, tão cerebral como envolvente que seduz e ostraciza o ouvinte, provocando-o e desafiando-o, forçando-o a abrir compartimentos mentais fechados ou pouco procurados. Perturbador, mas, em última instância, libertador e catártico. Ouça-se e sinta-se Don't Tell Me para obter um resultado óptimo neste aspecto. Mas a arte ainda viria a ser mais depurada, sendo que objectos como Accidents sofrem ainda da produção obstipada dos anos 80 que deformou igualmente peças de Bowie ou John Cale. Há que gastar mais umas linhas para louvar Happy Hour, canção extensa e intoxicante, ainda e sempre embebida no progressivo da melhor safra e que se arrasta por entre assaltos de algo reminiscente de um flamenco eléctrico e distorcido.

XII - And Close as This (1986). Extintas as últimas chamas do K-Group, Hammill fecha-se na sua ostra para gravar um belíssimo e introspectivo disco de voz, piano e quejandos. Apaziguador e atmosférico, And Close as This reúne um conjunto de oito baladas, clássicas e sem maniqueísmos, das quais é dificílimo extrair um ponto alto. Too Many of My Yesterdays e Beside the One You Love são incontornáveis, coroando o músico como um dos melhores artesãos de canções dos últimos 40 anos. Faith e Sleep Now vergam-nos em pouco tempo, com a entrega e paixão que transbordam. Empire of Delight é mais uma (e já são tantas!) dorida, crepuscular e violentamente poética canção de amor. Os três temas restantes são igualmente consistentes, pelo que não podem ser secundarizados. O disco no seu todo é um contínuo de excelência, uma reunião de canções que crescem a cada audição e que não pretendem ser mais que isso: canções sinceras, maduras e reclusivas, que só pretendem a nossa procura para as fazer viver.

XIII - Spur of the Moment (1988). O nome assim o intui e a audição comprova-o. Este é um disco improvisado, na sua totalidade, um disco experimental construído ao sabor do momento e a meias com o baterista Guy Evans, ex-companheiro dos VdGG. Totalmente instrumental, é o disco mais incatalogável e inadjectivável da obra de Peter Hammill. As sonoridades variam entre o orgânico e o mecânico, mas resultam sempre sedutoras na sua abstracção. Por vezes fazem lembrar Brian Eno, Steve Roach ou Robert Rich. No segundo a seguir, não se parecem com nada disto. Em comum fica o gosto intelectual em arrastar a música para além dos seus limites e convenções. Spur of the Moment é, em suma, um inspirado disco de música contemporânea, que testa a musicalidade da tecnologia e a liberdade composicional que a mesma permite. Não há altos e baixos, da mesma forma como não há meios improvisos.

XIV - Out of Water (1990). Os anos 90 começam bem para Hammill. Trazem-lhe, provavelmente, a obra mais consistente dos últimos dez anos. Após alguns tiros (fora do alvo) ao mainstream ocorridos na década falecida de fresco, nada como o artista assumir que não é popular, porque nunca o foi. Assim sendo, concentrar-se no que melhor sabe fazer é uma excelente solução e Out of Water uma prova indelével desse facto. Enérgico e emotivo, mas não dando descanso aos neurónios, este disco encerra um punhado de clássicos Hammillianos, que ainda são rebuscados e transfigurados nos seus concertos ao vivo. Os devotos agradecem ser abraçados pela teia magistral de Something About Ysabel's Dance. Quase que apetece acusar os Tindersticks de plágio, pois a capa do seu primeiro álbum é uma epifania deste tema épico, que arde lentamente. Evidently Goldfish envereda pelo típico traçado arty do rock de Peter Hammill, mesclando a base deste género com variações rítmicas e líricas do arco da velha e adicionando-lhe as dúvidas existenciais que nunca o abandonam. Not the Man mantém a mesma senda, parecendo que o sentido da existência e as crises de identidade são a eterna demanda do Santo Graal de Hammill. Se o forem, melhor ainda, porque o desassossego filosófico resulta em temas gloriosos como este. No Moon in the Water é um cântico majestoso, idealista perante a evidência da solidão. A concluir, o genial A Way Out é o melhor momento do disco. É aqui que a angústia existencial se ergue numa melodia e letra memoráveis. Há quem diga que o poema fala sobre o suicídio do irmão de Hammill. Se a Wikipedia necessita de citações acerca desta matéria, quem sou eu para a corroborar? Mas as pistas levam-nos a esse triste evento. E deixam-nos lá a contemplar o fim...
Perante um disco sublime, a louvaminhice em excesso pode tornar-se lamechice. E porque Out of Water é uma das grandes obras do músico, o melhor mesmo é levá-lo para casa e apreciá-lo por inteiro.

XV - Room Temperature:Live (1990). Tendo em conta as avassaladoras e emotivas prestações de Peter Hammill em concerto, é complicado apontar uma referência física neste campo. Room Temperature: Live é, talvez, a mais emblemática gravação ao vivo do trovador londrino, muito graças à desconstrução estilística de que a maioria dos temas é alvo. Com a presença do baixista Nic Potter e do expressivo violinista Stuart Gordon (que se tornaria num dos comparsas inseparáveis de Hammill para os anos vindouros), este disco, gravado em público, mas esparso e intimista, dá novas roupagens a clássicos como Vision, Modern e The Future Now. The Wave e Cat's Eye/Yellow Fever (Running) dos Van der Graaf são também conjurados. Temas mais lentos como a lúgubre canção de amor Just Good Friends ou a recente A Way Out ganham em momentum e Patient é entregue numa ambiência totalmente demencial. Para quem já ouviu falar na intensidade dos espectáculos de Peter Hammill mas não teve oportunidade de comprovar, este álbum é um excelente ponto de partida.

XVI - Fireships (1992). Começando na beleza da capa e estendendo-se ao longo de todo o disco, Fireships é uma das obras mais sofisticadamente românticas de Peter Hammill. Não será excessivo afirmar que é, na globalidade, o mais belo dos seus discos. Os temas sucedem-se magistralmente, numa ambiência geral de música de câmara, poética e envolvente. O amor é o cerne da questão, envolto em sóbrias orquestrações e arranjos de ímpar bom gosto. Fireships parece ser o disco de Hammill mais orientado para o público feminino. Não se ouve muita gritaria angustiante e muita prosa existencialista por aqui, mas também não se vislumbram finais felizes nestas vinhetas de doce intensidade e suave inquietação. Dos nove temas, cinco são geniais e nenhuma descrição para além do que oferecem poderá fazer-hes justiça: I Will Find You, Curtains, Oasis, Gaia e, a cereja no topo do bolo, o cinemático e belíssimo His Best Girl.
O tema-título é o único que escapa à tonalidade geral, mas, ao não desviar-se em excesso da rota traçada, assenta que nem uma luva na elegância do todo. Given Time demonstra que a nota inserida no inlay do álbum é verídica: Number One in BeCalm Series. Esta calmaria onírica e de absoluta beleza não duraria muito. Não haveriam números subsequentes nesta jornada. Mas se há algo que Fireships será sempre é um número um. Um vencedor da música bela, erudita, emocionante e de extrema qualidade.

XVII - X My Heart (1996). Após alguns experimentos vagos e flutuantes, o músico regressa às composições clássicas no retorno à forma que é X My Heart, ou, simbologias à parte, Cross My Heart. Tal como o vinho do Porto, a voz de Hammill envelhece graciosamente e torna-se mais apurada. A prova está em A Better Time, magnífica canção com direito a duas versões (a cappella e com banda). A flauta de David Jackson empresta a Amnesiac uma trascendência algo celta e Earthbound é mais uma imaculada pérola a encher a arca das canções de amor Hammillianas. O restante disco assenta na solidez composicional, plena de variações complexas e reviravoltas inesperadas. É um disco para fãs, como todos os seus álbuns mais tardios, um disco que já não se preocupa em evangelizar neófitos, mas somente em pregar aos convertidos. Narcissus (Bar & Grill) foca a veia mais experimental e hermética do músico, o seu estilo único e impossível de replicar. Come Clean desvela o seu lado mais old fashioned e romântico. Ainda e sempre, emerge um torturado trovador às voltas com o amor pelos seus demónios e os seus demónios de amor.

XVIII - Everyone You Hold (1997). Mais um sólido conjunto de canções de Hammill. O disco não foge à dieta imposta pelo seu antecessor. O som é, no geral, esparso mas espacial, como se pretendesse encafuar um céu nocturno e parcamente estrelado num quarto vazio. O tema homónimo é mais um atestado do brilhantismo do músico, capaz de soltar belas canções em catadupa sem fugir ao seu estilo habitual e sem cair na teia da inconsequência. Nothing Comes é uma doce elegia à perda da capacidade de deslumbramento que a idade vem envenenar. Sublime, Phosphorecence tem algo de épico e contido em simultâneo. Algo de angelical e obscuro, como uma melancolia que ilumina o espírito.
E o disco avança, voa lentamente pelo firmamento escuro, arrastando-nos para imensidões góticas e fantasmagoricamente operáticas como Bubble ou para o berço estelar de Tenderness. Quando a aurora desponta, aproxima-se a hora de adormecer.

XIX - The Fall Of The House Of Usher (Deconstructed & Rebuilt) (1999). É sabido que Peter Hammill sempre possuiu um fetiche por temas operáticos e revestidos por uma discreta teatralidade. Essa tendência atingiu o seu auge com a composição da ópera derivada da obra homónima de Edgar Allan Poe. Originalmente editada em 1991, é a versão de 1999 de The Fall Of The House Of Usher que se pode considerar como definitiva. A criação está para a música como um filme de Dario Argento está para o cinema, mas menos sangrenta, obviamente. De qualquer forma, esvai-se das melodias, densas e funestas, um rigor gótico e afectado. Terror psicológico e ambiências tétricas entrelaçam-se sadiamente. O elenco foi composto por:
- Peter Hammill - Roderick Usher e The House- Lene Lovich - Madeline Usher
- Andy Bell - Montresor- Sarah Jane Morris - The Chorus
- Herbert Grönemeyer - The Herbalist
Talvez o nome mais surpreendente aqui seja o de Andy Bell, vocalista dos bombásticos Erasure. Mas a sua voz, forte e expressiva, adequa-se na perfeição ao dramatismo da história. História essa que é, ou deveria ser, sobejamente conhecida. Quem está a leste, pode orientar-se ao longo das trevas com esta versão sonora, que honra tremendamente o conto que lhe serviu de inspiração.

XX - None of the Above (2000). As primeiras notas do século XXI saídas dos estúdios Terra Incognita são vaporosas e melancólicas. Seria difícil começar melhor o milénio, que através da majestosa Touch and Go. Depois, a melancolia acentua-se no amor para além da morte da poética Naming the Rose. O resto decorre no seio da mesma ambiência acústica, entrecortada por brisas operáticas e progressivas e bafejos de música de câmara. Business as usual, portanto. Parente muito próximo de Everything you Hold, None of the Above prossegue o caminho das estrelas. Mas o negro firmamento nocturno parece apenas repelir-nos, distante demais para nos resgatar do ocaso deste mundo. A calma propaga-se lentamente ao longo das oito peças do disco. Apetece que seja Inverno, só para fugir do frio ou acender uma lareira. Para olhar o crepitar do fogo ao som de Tango for One. Ou saborear um whisky velho na companhia do adequadamente intitulado In a Bottle. Peter Hammill não costuma ceder na totalidade a crises existenciais ou a invernos rigorosos. E Astart termina o disco com esgares de alvorada, de um novo começo, da hipótese de redenção. O novo milénio traz o velho Hammill, solitário como sempre, como sempre deliciando os seus fiéis seguidores.

XXI - What, Now? (2001). Mais uma viagem às profundezas da existência, das suas agruras e dos seus absurdos. Se a poesia de Hammill se mantém intocável, a música recupera uma certa aspereza e torna mais vibrantes as palavras. Por esta altura, o cantor é detentor de um estatuto quase indestronável, e cada obra vem apenas prolongar o que, ano após ano, disco após disco, tem vindo a ser apurado. Principiando com uma longa deambulação, reminiscente dos VdGG, Here Come the Talkies é um grande pedaço do melhor rock progressivo. Este pico de intensidade será somente alcançado pelo fortíssimo Lunatic in Knots. Enough premia-nos no final com as vagas vocais de Hammill, ecoando e vagueando, como se clones espectrais o acompanhassem. Percorrendo outro álbum sólido e adulto, pouco mais há a realçar na sua elevada categoria. Lá está a costumeira balada romântica, sendo que desta vez a bela Wendy & The Lost Boy chega e sobra para as despesas. E, na gélida Fed to the Wolves, Hammill abraça o seu papel de crítico das Instituições, descrevendo a sórdida aliança entre Igreja e pedofilia.

XXII - Clutch (2002). Na estrada antiga e familiar que Peter Hammill tem vindo a percorrer nos últimos anos, Clutch é uma curva de brilhantismo. Um assomo de génio puro e de frescura criativa que não se via desde Fireships. Inteiramente acústico, para além de intromissões pontuais de Stuart Gordon nas cordas e David Jackson nos sopros, este é o disco que recupera o bardo de inícios de 70, ou seja, o mais emotivo, delirante e penetrante. Não será demais afirmar que Driven é uma das melhores canções jamais criadas pela paleta de Hammill. We are Written e as ruminações acerca da paternidade de Once you called me são igualmente intensas e memoráveis. This is the Fall encontra-o novamente às voltas com a religião. Just a Child com a pedofilia. Skinny com a anorexia. E, continuamente, as cordas da guitarra pendem como estalactites, geladas e tão distantes como cortantes. Os assuntos escolhidos mergulham no mais fundo e escuro da psique humana. Que mais pode fazer a música senão estremecer tanto como as palavras? O belíssimo momento de forma de Hammill estende-se até ao final, sendo o épico Bareknuckle Trade o canto do cisne perfeito para um disco superlativo e frio como a geada de Dezembro. De referir que este disco granjeou ao músico uma atenção que há muito lhe fugia. As Uncuts e as Mojos deste mundo não se cansaram de o gabar. Coisa que o homem é mais que merecedor. Assim, é pertinente informar que Clutch será, actualmente, a porta de entrada ideal para a música de Peter Hammill e, definitivamente, para os seus trabalhos dos últimos 10 anos.

XXIII - Incoherence (2004). Tendo em conta os padrões de estilo e a proliferação quase matemática dos seus novos lançamentos, algo de que Peter Hammill não pode ser acusado é de incoerência. O título deste álbum parece quase ser um golpe de rins, uma reacção ao sucesso inesperado de Clutch. Mais desafiante e exigente que os recentes discos do artista, Incoherence é, essencialmente, um único tema dividido em 14 partes, que tanto se podem ouvir em conjunto como em separado. Hammill observou que o disco é um álbum conceptual dedicado à linguagem. Os teclados imperam e Stuart Gordon e David Jackson são os suspeitos do costume. Mas, sendo uma obra focada na linguagem, é natural que o ênfase máximo assente na voz. Elástica e expressiva como sempre, a voz de Hammill domina indubitavelmente o disco. Apetece quase recordar a lendária afirmação segundo a qual o cantor faz com a voz aquilo que Jimi Hendrix fazia com a guitarra.
Na sequência sem pausas do álbum, merecem destaque momentos mais plácidos como Gone Ahead ou Babel. O arrojo sobrevém em temas mais cerebrais como Logodaedalus, Cretans Always Lie ou All Greek. Em termos globais, esta incoerência é uma agradabilíssima surpresa de um artista que envelhece mas não cede a facilitismos e continua a saber romper com as tendências, quando estas se tornam demasiado confortáveis.

XXIV - Singularity (2006). É quase impossível não associar a batida seca que franqueia as portas a Our Eyes Give it Shape a batimentos cardíacos. E à lembrança do ataque cardíaco sofrido por Hammill em 2003, pouco tempo após a conclusão de Incoherence. Perante tal evento, não é de espantar que a temática da mortalidade se projecte como uma sombra em todo o disco. Esta peça do jornal Independent, merece ser lida, não só pelo assustador episódio, mas porque permite vislumbrar o que tem sido de Peter Hammill nestes últimos anos.
Voltando à música, Singularity continua a trazer de volta reminiscências do escorpião dos anos 70, no limiar da emotividade e com as entranhas expostas aos elementos. A excelência composicional e lírica assiste a um belíssimo crescendo. Event Horizon e Famous Last Words são do melhor e mais tocante, sinceras mesmo para um artista com 40 anos de carreira. Meanwhile my Mother vê-o a assistir, impotente, ao declínio inevitável da figura materna. É triste, enternecedor e introspectivo. Friday Afternoon é um epitáfio dorido a um amigo prematuramente morto, em que até a melodia parece não querer prosseguir. Para além da supracitada primeira faixa, apenas Vainglorous Boy injecta um pouco de electricidade neste disco hermético, mas igualmente apelativo. E o Hammill mais demencial surge, sem aviso prévio, no tema final, o fabuloso White Dot. Há muito que não o ouvíamos assim. Desde os delírios de In Camera ou da claustrofobia de A Black Box. Como se a morte tivesse espreitado, mas a tivessem feito recuar para as trevas durante um período indeterminado...

XXV - Thin Air (2009). Hammill volta com o seu menino mais novo e, tal como ocorreu no seu irmão mais velho, a controlar na totalidade as operações. Todos os instrumentos e a produção são assegurados por ele. A coesão musical do disco pode assentar nesse facto. É a mesma mente criativa que domina as notas e o ambiente em que são debitadas. Neste campo, Thin Air é um disco ainda mais rarefeito e circunspecto que o seu antecessor. Talvez o facto de os VdGG se terem reunido novamente não exigir que Hammill exercite o seu lado mais bombástico. Talvez a sua vida e o planeta em geral não estejam a precisar de gritos e energia, mas sim de calma e meditação...
Especulações à parte, a mais recente oferta do músico mantém o pico criativo atingido em Clutch e continua a expandi-lo e a dissecá-lo. Há que notar que pouquíssimos dos seus contemporâneos ainda conseguem compôr com este génio, paixão e pertinência. E é um prazer constatar, para um seguidor de longa data como eu, que Thin Air não tem um único ponto fraco. São nove grandes canções, plenas de engenho e arte, tão oblíquas quanto apaixonantes. The Mercy, Your Face in The Street (belíssima e hipnótica), Stumbled, Diminished, a docemente trágica The Top of the World Club... Nesta altura do campeonato não se pode pedir mais a este enorme artista. Com a qualidade que teima em presentear-nos, agradeço que construa mais 25 labirintos...