26 de abril de 2009

Meditations

Tornou-se um lugar-comum afirmar que, por detrás de um grande homem, existe uma grande mulher. Na maioria dos casos, no entanto, essa mulher permanence na sombra, como uma presença latente e obscura, oráculo que ilumina e orienta, mas nunca é banhada pelo spotlight. O trabalho de Alice Coltrane como compositora e intérprete de jazz sempre foi ofuscado pelo génio e brilhantismo do seu esposo, o gigante John Coltrane. Ambas as obras se regem por uma espiritualidade imensa, mas, ao mesmo tempo, por uma dualidade masculina e feminina, pelo yin e yang que faz com que pólos opostos se atraiam. Se John era a força e a energia, a comunicação com o divino pela prostração e pela exaustão, Alice era o misticismo e a clausura, a flor que desabrocha ao sol e se fecha à noite. Ptah, the El Daoud, majestoso álbum de 1970, e o seu terceiro a solo, é um disco de revelações. A melodia austera e solene que abre caminho à improvisação em lume brando do tema-título é, desde logo, convite a uma meditação que, para além da exégese, injecta sucessivamente doses de prazer auditivo a quem se deixar levitar. Tomando a levitação como mote, o jazz cósmico, nocturno e nebuloso de Turiya and Ramakrishna, comandado pelo piano dolente de Coltrane e pelo chocalhar tibetano dos sinos, é balsâmico e envolvente. Blue Nile faz jus ao nome, com a harpa multicolorida da senhora e as flautas serpenteantes e misteriosas de Pharoah Sanders e Joe Henderson a transportar-nos numa viagem onírica ao longo do Nilo, iluminados por um sol incandescente e opulento. Um jogo de luz e sombras, verdadeiro alimento para a alma... No fim, Mantra, peça que nos arrasta na corrente emotiva dos saxofones tenor de Sanders e Henderson, em duelo e em transe, a espalhar caos como um turíbulo até ao final, onde o círculo se fecha e a união das partes é total. Numa altura em que o jazz se voltava para Oriente ou para civilizações arcaicas e para o seu misticismo em busca de inspiração, este disco continua a ser uma experiência única, especialmente pela busca dos intérpretes em alcançar a transcendência através da música e de como algo de realmente espiritual se manifesta a quem mergulha nestas melodias e intrincadas improvisações que escorrem como lava...

9 de abril de 2009

Krautrockbible

Em 1995, o excêntrico Julian Cope publicou um livro seminal e fonte de inesgotável deleite para quem se interessa pela música alemã dos anos 60 e 70. Krautrocksampler: One Head's Guide to the Great Kosmische Musik - 1968 Onwards é uma obra que descreve a génese e a expansão da cena underground alemã, assim como as suas personagens mais emblemáticas e discos de referência.
O ex-vocalista dos Teardrop Explodes escreve sobre esta música e sobre o folclore que a rodeia com um entusiasmo e uma subjectividade ao mesmo tempo sinceros e coloridos, o que torna o livro um acto de reverência de um adepto fervoroso do krautrock, ao invés de mais uma insípida verborreia de qualquer crítico musical.
Para além da narração apaixonada de episódios lendários, orgias massivas, uso e abuso de psicotrópicos e tarologia, Cope elabora a sua lista dos 50 melhores discos de sempre dentro deste género, mostrando alguns deles ao mundo pela primeira vez como as obras-primas inestimáveis e insubstituíveis que são, da genialidade musical que encerram às belíssimas capas que as guardam...
Infelizmente, o livro encontra-se esgotado há bastante tempo, não havendo previsões para a sua reedição. É possível encontrar cópias usadas no e-Bay ou no Amazon, ou, se o culto roçar o fanatismo, tentar a sorte em qualquer alfarrabista da londrina Charing Cross. À guisa de conclusão, apresento um guia descritivo, mas sem alma, desta corrente, denominado The Crack In The Cosmic Egg. Um resumo significativo do mesmo pode ser encontrado aqui. Ninguém lhe tira o mérito de ser um compêndio exaustivo, mas não pode ser comparado à obra fundamental e dedicada do druída de Tamworth.

8 de abril de 2009

Par-delà la Moule



Os belgas dEUS constituíram uma das maiores surpresas musicais dos inícios da década de 90. O seu primeiro álbum, Worst Case Scenario, debitava ambiências várias e uma amálgama de influências e estilos numa catadupa vertiginosa. Captain Beefheart, Tom Waits, Velvet Underground e Sonic Youth pareciam ter sido apanhados em Antuérpia por uma rede de borboleta e cristalizados para a posteridade em 14 canções. O tom arty elegante e decadentemente europeu característico de temas como Suds & Soda, Let's Get Lost ou a espiral melancólica de Hotellounge (Be The Death of Me) impregnou (felizmente) muito bar do Bairro Alto e desviou algumas inteligentes atenções de coisas como o datado grunge... Após tão auspiciosa estreia, os dEUS superaram a corriqueira crise do segundo álbum, lançando o excelso In A Bar, Under The Sea, em tudo superior ao anterior registo e um dos melhores álbuns dos anos 90. Pelo meio fica o curioso EP My Sister = My Clock (ideal para brincar às escondidas com o nosso próprio cérebro). Compêndio de excelentes canções e experiências sónicas, é difícil encontrar destaque no meio de tanta coerência... Fell Off The Floor, Man é um delírio surrealista e intoxicante, música virada do avesso em que o inesperado surge a cada esquina; Little Arithmetics é fluída como chuva a escorrer por telhas; Gimme The Heat é uma micro-sinfonia em crescendo, tal como o conflito amoroso que lhe dá mote e que nunca é resolvido; Serpentine é uma elegia cinzenta, em que a solidão parece algo intermitente mas resignável; Nine Threads possui elementos nocturnos e fumarentos característicos de qualquer jazz, mas, neste caso específico, de jazz do Benelux; For The Roses é tensão latente, film noir melódico com anti-clímax mais que provável; Theme From Turnpike é um groove escuro e pleno de inflexões jazzísticas, que serviu de tema à curiosa película que antecede este desabafo. A partir daqui, os dEUS foram enveredando por vias mais convencionais, curiosamente agradando sempre ao público universitário lusitano... The Ideal Crash é um álbum sólido em qualquer parte do mundo, mas sem arriscar tanto como os seus antecessores. O mesmo se pode dizer dos dois que lhe seguiram e que ficam bem em qualquer estante, mas não se tornam obsessivamente imperiosos em termos de escuta. Para obsessão auditiva, mais vale o único e lunar álbum dos Moondog Jr. de Stef Kamil Carlens, ponto de paragem entre o seu abandono dos dEUS (curiosa conjunção...) e a formação dos Zita Swoon. Para além da música magistral, um álbum intitulado Everyday I Wear A Greasy Black Feather On My Hat merece certamente uma audição...