The Pale Fountains:
As Fontes Pálidas. Enamorei-me do nome mesmo antes de os ter ouvido. Lembrava-me pureza, frescura e riachos primaveris. E a música não me defraudou. Escutei-os pela primeira vez a caminho do Bairro Alto, no carro de um amigo alentejano, mas moscavidense por imposição, que detinha uma velha e passada
cassette do primeiro álbum. Foi um caso de paixão à primeira audição. Desde esse altura, nunca mais os esqueci.
Os Pale Fountains nasceram para ser uma banda de culto. Tinham tudo contra eles. Na época em que lançaram o seu primeiro LP, reinavam colectivos como os urbano-depressivos Echo & The Bunnymen, os divinos mas miserabilistas Smiths e os
gottico ma non troppo Cure. Os Pale Fountains pareciam ser
felizes, logo, carta fora do baralho. No cinzentismo dominante,
Pacific Street, o registo de estreia do grupo, injectava
flashes de luz e cor, influenciados maioritariamente pelos Love, pelos Byrds e pela
bossa nova, com arranjos opulentos e expressivos na melhor tradição de Burt Bacharach.
Pacific Street é um álbum ímpar no panorama dos anos 80, rivalizado apenas pelo ingénuo mas loquaz
You Can't Hide Your Love Forever dos Orange Juice e pela
pop existencial e adolescente, imberbe mas afectada, de
High Land, Hard Rain dos Aztec Camera. Enquanto a maioria das bandas britânicas se escondia dentro das suas gabardinas e aspirava os ares herméticos e fumarentos da cidade em busca da sua musa, os Pale Fountains eram seres sacrílegos, vistos a passear de canoa, envergando calções e bonés e munidos de canas de pesca.
Pacific Street é um álbum radioso e optimista, rasgado por momentos mais circunspectos e melancólicos, mas nunca soturnos. É a banda sonora de uma vida sem mácula, que nos remete para uma adolescência eterna, para uma juventude despreocupada, em que os amigos eram verdadeiros e omnipresentes e o amor era um caleidoscópio de emoções difícil de entender, mas delicioso de sentir. Um disco de idealizações e de reminiscências, de fuga e de nostalgia, com as hormonas à flor da pele. Iluminado por excelentes canções, torna-se tarefa difícil apontar pontos altos neste disco, se bem que o pôr-do-sol à beira-mar que emana de
Something On My Mind e
Unless mereçam destaque. A
folk com laivos de
soul de
Southbound Excursion é igualmente assinalável, tal como a placidez primaveril e campestre de
Beyond Friday's Field e a estival e exuberante
You'll Start a War. O brilhante uso dos sopros, constantes e carnais, fazem de
Pacific Street um disco ainda mais caloroso. Prova disso são dois breves e súbitos trechos instrumentais que arrebatam completamente pela sua genialidade:
Faithful Pillow (Pts. I & II). Só o que está intuído nestas pequenas peças lindas de morrer dava para construir uma sinfonia completa.
A complementar a edição em CD desta pérola, surgem os primeiros
singles gravados pela banda, e que se desviam ligeira e esteticamente da edição original. São temas mais acessíveis, possuídos pelo espectro do
easy listening, via Bacharach, o que afasta ainda mais os Pale Fountains das tendências da época.
Palm Of My Hand poderia ter sido cantada por Dionne Warwick e a açucarada
Thank You, com a sua orquestração em cascata, poderia ter concorrido ao Festival da Eurovisão de 1982. Autênticos OVNI resplandecentes a sobrevoar a urbe negra e poluída... Os Belle & Sebastian não seriam nada se este disco não tivesse existido.
Em 1985, e em resposta à falha comercial do primeiro àlbum, os Pale Fountains regressam com uma produção menos subtil e um som mais endurecido em
...From Across The Kitchen Table. Disco mais directo, não possui a beleza tranquila do seu antecessor, revelando-se mais atrevido e musculado. A sólida e focada produção de Ian Broudie não dá muito espaço para ler nas entrelinhas, mas arrancam-se momentos memoráveis no cantarolável
Jean´s Not Happening, no urgente tema-título e no ambiente frustrado de
cabaret vazio de
Bicycle Thieves. Mais uma vez, o disco não teve o sucesso esperado e a banda de Liverpool separou-se. O líder Michael Head formou os Shack com o seu irmão John e o fabuloso trompetista Andy Diagram juntou-se aos ainda verdinhos James.
O primeiro álbum dos Shack, editado em 1988, e intitulado
Zilch, é uma obra embrionária no que haveria de ser esta banda. As influências de Michael Head continuam imutáveis, nomeadamente os Love e os obrigatórios Beatles, e a tendência para compôr melodias clássicas e intemporais, deliciosas para os ouvidos, dão os primeiros e tímidos passos neste disco praticamente esquecido. O melhor ainda estava para vir, mas tomara muitas bandas conseguirem momentos como
Emergency,
High Rise Low Life,
I Need You ou
Someone's Knocking, esta última profetizando a ascenção dos marcantes Stone Roses.
Filhos do azar, para além de serem uma excelente banda ignorada comercialmente, os Shack sofrem um enorme revés quando, após a conclusão do seu segundo LP,
Waterpistol, o estúdio arde, consumindo a maior parte das bobines que o continham. Uma única cópia do resultado final do álbum foi encontrada num carro alugado pelo produtor, mas ninguém o quis destribuir. Em 1995, quatro anos depois de ser gravado, o belíssimo
Waterpistol foi finalmente editado pela alemã Marina Records, falhando novamente o sucesso. E belíssimo é a palavra exacta para um disco desta qualidade, uma jóia no meio de tanta mediocridade que, amiúde, é anunciada pela histérica imprensa musical britânica como
the next big thing.
Preenchido por um ambiente geral de melancolia e desencanto, apesar das melodias graciosas e cristalinas, num planeta normal, este disco deveria ser uma lição para bandas como os Oasis. Aqui está tudo o que de melhor foi feito nas últimas quatro décadas de bandas de guitarras. Love, Beatles, Byrds, Stone Roses, todos eles se encontram neste disco como num labirinto de espelhos.
Neighbours consegue enveredar pelos mesmos trilhos dos Pale Fountains e, ao mesmo tempo, fazer com que nos esqueçamos deles.
Time Machine é uma brilhante composição, uma canção com C grande, plena de entrega e génio. Tal como o génio que habita a sublime balada
Undecided, provavelmente a melhor canção que Michael Head compôs até à data.
Hazy é um belíssimo exercício em tons de
country rock e
Stranger uma valsa intoxicada e sonolenta. Este disco parece ter sido feito para ser ouvido naquele período em que acordámos, mas ainda nos mantemos no limbo, num misto de sonho e realidade. E foi mais um disco que passou como um fantasma pelo universo melómano dos anos 90...
Após uma
tournée a acompanhar
os seus ídolos Love, Michael Head fez uma pausa nos Shack em 1997, e editou em conjunto com os Strands, banda propositadamente reunida para o efeito, mais um álbum de avassaladora e genial beleza denominado
The Magical World of The Strands. O disco parece ter pegado na suave faixa acústica que fecha
Waterpistol, a balada
London Town, e seguir esse rumo para fabricar um disco outonal e recatado,
pop de câmara, como foi já denominado. Esta obra é o corolário definitivo de Head como grande escritor e intérprete de canções. A sombra de Nick Drake, o lado mais sensível de Roger McGuinn e as texturas orquestrais dos Tindersticks marulham ao longo das onze canções do álbum.
Queen Matilda,
Something Like You e
Fontilan são canções de elevadíssimo gabarito e que merecem tudo menos o esquecimento. Mas o génio de Michael Head continuava a não ter o reconhecimento merecido e as intermitentes malhas da heroína tornam-se uma mandíbula que o aprisiona cada vez com mais força. É pertinente questionar o que leva o homem a compôr, perante tanta adversidade e indiferença...
Em 1999, os Shack editam o seu terceiro álbum e conseguem o seu, ainda que modesto, pico de sucesso. A produção é eficiente e os temas são fortes, como se o líder da banda conseguisse ainda encontrar força na adversidade e responder com canções que são positivas e autênticos testemunhos de uma vida de revéses e droga.
H.M.S. Fable é mais um grande disco, não tão orgânico como os anteriores, mas que debita diversas pérolas, em hinos como
Natalie's Party e
Beautiful, ou harmonias magníficas como o esmagador
Comedy. A aura sombria de Nick Drake ainda se sente na canção que serve de título ao álbum e
Daniella encerra-o de forma arrepiante e funesta, como se Arthur Lee fosse fechado num quarto escuro com a sua guitarra acústica e só lhe permitissem sair depois de compôr uma balada acerca do assunto.
Após os primeiros raios de sol do reconhecimento massivo, os Shack voltaram a ser a banda de culto que sempre foram. Quem gosta, gosta sempre, e este grupo não defrauda as expectativas dos seus conhecedores.
Here´s Tom With The Weather, o álbum que se seguiu em 2003, optou por caminhos menos concorridos, por temas mais acústicos e por tonalidades mais sóbrias e maduras, mas com todos os elementos-chave que enfeitiçam a música presentes. A brisa de
bossa nova que sopra de
Soldier Man e a languidez de
The Girl With The Long Brown Hair tornam o disco relaxante e, ao mesmo tempo, elegante. Uma obra de irrepreensível bom gosto, muito bem composta e executada, para disfrutar como se de um bom vinho se tratasse, sem pressas e trago após trago. Realce também para
Carousel, interpretada pelo
mano John Head, para o rastilho melódico de
Meant To Be e para a declarada homenagem aos Byrds no terno
Byrds Turn To Stone.
A suculenta receita prossegue com o último álbum da banda, datado de 2006 e intitulado
On The Corner Of Miles And Gil. Com um nome que funciona como óbvia piscadela de olho a Miles Davis e Gil Evans, dois monstros do
jazz, o disco não é propriamente uma obra derivada do que estes músicos produziram nos anos 50. Agora e sempre, os Shack conseguem ser a banda que mais se aproxima da herança que os Love nos legou. Com a morte de Arthur Lee, isso só pode ser coisa boa. Quem aprecia música feita com paixão, mestria e sob tão nobres influências, já deve ter um cantinho do coração guardado para estes senhores de Liverpool. De qualquer forma, nunca é demais empolar a qualidade de temas tão fabulosos e cativantes como
Miles Away,
Tie Me Down,
Cup Of Tea e
Closer, a já tradicional balada que finaliza este capítulo discográfico da banda. Espero sinceramente que o próximo não tarde.
Sempre que ouço os Pale Fountains / Shack, lembro-me de como a maior das misérias ou a maior das adversidades pode ser sublimada pela arte de criar e de como isso pode fazer com que uma chance perdida se transforme numa perseverante esperança renovada. Uma banda a lembrar, outra a estimar, respeitosamente...