15 de janeiro de 2014

Às Armas

A música dos Gun Club entranha-se como o calor da sua Califórnia natal. Mas é um calor nocturno, que rasteja pelo deserto e se infiltra na cidade, acordando vícios e transgressões. É música urgente e vibrante, mas que carrega o peso das raízes americanas, fantasmas do passado que encarnam no esqueleto do punk e do rock de garagem.
O grupo de Los Angeles foi formado em 1979 por Jeffrey Lee Pierce e Brian Tristan, em breve rebaptizado Kid Congo Powers. O melting pot entre a energia do punk, a visceralidade dos blues e a atmosfera ao vivo quase tribal que os Gun Club exibiam lançou as primeiras sementes para subgéneros como o punk blues e o psychobilly.
Aquando da edição de Fire of Love, o guitarrista Kid Congo Powers tinha-se tornado membro das principais referências deste último, os Cramps. Mas isso não impediu que o primeiro álbum dos Gun Club fosse um prodígio vertiginoso e venenoso de urgência, desespero e intensidade. Os seus 40 minutos passam como um ritual voodoo alimentado a guitarras extáticas e ritmos inquietos, em que a atmosfera alterna entre o transe arrebatado e o torpor narcótico.
Sex Beat é, em si, uma referência. Um frenesim diabólico de sexo, drogas e country fustigado pelo punk. Um som crú mas refrescante em simultâneo, expelindo fantasmas das trevas musicais americanas à luz de 1981. A sedução com odor a morte é uma constante ao longo do disco. She's Like Heroin To Me, pulsante e intoxicante, contém a mesma mensagem dúbia, o vício como mulher ou uma mulher como vício. Impossível não relembrar as palavras de Keith Richards na sua biografia quando diz heroin is the most seductive bitch in the world. 
For the Love of Ivy é coberta por uma mortalha gótica, uma história de amor e morte entre a surdina paranóica e o estouro descontrolado que soa a antepassada remota dos tremendos 16 Horsepower. A mesma sombra gótica, sulista e fatalista, paira sobre a cavalgada espectral de Ghost on a Highway. Uma versão demolidora de Preaching the Blues transforma o original de Robert Johnson num lança-chamas musical, tão contagiante como infernal. Goodbye Johnny despede-se como um outlaw country tocado por cowboys demoníacos que inflingem descargas eléctricas de guitarra como se fossem chicotadas.
Ao longo do disco, Jeffrey Lee Pierce estraçalha a laringe que nem um perdido e a temática das suas letras não deixam muito espaço à imaginação quanto ao seu estilo de vida e ao destino que o aguardava. Pierce morreria em 1996, depois de anos de abuso de drogas e álcool, seropositivo e cirrótico. O seu legado musical com os Gun Club, que começou a ser escrito de forma brilhante e influente em Fire of Love, depurou-se e transmutou-se ao longo de mais seis álbuns. Com altos e baixos, mortes e ressurreições até ao estertor final. O legado é notório e salta à vista, mas nada excede o pecado original.