28 de dezembro de 2017

2017: A Soundtrack

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Mais um ano que termina, mais uma volta na Geringonça, que sacou da cartola um presidente do Eurogrupo. Num país ardido e traumatizado, valeu a chama imensa do Sport Lisboa e Benfica, que conquistou um inédito tetracampeonato. Lá fora, nostalgias da Guerra Fria no Paralelo 38 e um presidente norte-americano cujo cabelo muda de cor. Uma mistura que não augura nada de bom.
A música, essa, foi sempre a mesma. Mas também foi outra. Os LCD Soundsystem causaram polémica com um regresso prematuro, mas provaram que James Murphy nunca devia ter desistido da ideia. American Dream é a prova concludente que o projecto nova-iorquino continua a ser uma das máquinas musicais mais interessantes, pertinentes e influentes do século XXI. De saudar igualmente o regresso em belíssima forma dos seminais Slowdive, cujo álbum homónimo constituiu uma das surpresas mais sólidas e agradáveis do ano discográfico. Os National deram um golpe de rins e lançaram-se a mares nunca dantes navegados. O sétimo álbum do grupo é a mais exigente e experimental das suas obras, mas igualmente a mais entranhável e recompensadora. Björk continua a produzir sons que não parecem ser deste mundo, motivo pelo qual os nossos corações devem regozijar-se. Kendrick Lamar assinou um dos melhores discos de Rap que há memória, um trabalho assombroso, ao qual é impossível ficar indiferente e que torna o género ainda mais transversal.
2017 foi, assim, um ano de muita, variada e inspirada oferta musical. A lista que se segue foi a que mais me acompanhou e inspirou.



1. LCD Soundsystem - American Dream

2. The National - Sleep Well Beast

3. Kendrick Lamar - DAMN.

4. The War on Drugs - A Deeper Understanding

5. Slowdive - Slowdive

6. Mount Eerie - A Crow Looked At Me

7. St. Vincent - Masseduction

8. Björk - Utopia

9. Lorde - Melodrama

10. SZA - CTRL
  
11. Fever Ray - Plunge
       
12. Arca - Arca

13. Jlin - Black Origami

14. Perfume Genius - No Shape

15. Father John Misty - Pure Comedy

16. Richard Dawson - Peasant

17. Kelela - Take Me Apart

18. Vince Staples - Big Fish Theory

19. King Krule - The OOZ

20. Thundercat - Drunk

21. Brand New - Science Fiction

22. Cigarettes After Sex - Cigarettes After Sex

23. The Magnetic Fields - 50 Song Memoir

24. Sampha - Process

25. Ibeyi - Ash

26. Big Thief - Capacity

27. Moses Sumney - Aromanticism

28. Chino Amobi - Paradiso

29. Juana Molina - Halo

30. The XX - I See You

31. Kaitlyn Aurelia Smith - The Kid

32. Protomartyr - Relatives In Descent

33. Actress - AZD

34. Jane Weaver - Modern Kosmology

35. Robert Plant - Carry Fire

36. Laurel Halo - Dust

37. Fleet Foxes - Crack-Up

38. Alvvays - Antisocialites

39. Queens of the Stone Age - Villains

40. Do Make Say Think - Stubborn Persistent Illusions

41. Circuit des Yeux - Reaching For Indigo

42. Laura Marling - Semper Femina

43. Grizzly Bear - Painted Ruins
   
44. Ariel Pink - Dedicated To Bobby Jameson

45. Four Tet - New Energy

46. Wolf Alice - Visions Of A Life     
    
47. Sharon Jones & The Dap-Kings - Soul Of A Woman   
       
48. Andrew Weatherall - Qualia

49. Arcade Fire  - Everything Now
      
50. The Weather Station - The Weather Station

24 de dezembro de 2017

Lone Folk


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F.J. McMahon (O é de Fred) editou apenas um álbum durante a sua breve carreira. Um disco com menos de 30 minutos de duração, gravado em apenas 36 horas, mas que se tornou uma pérola obscura da folk moderna norte-americana.
Spirit of the Golden Juice foi composto e editado em 1969, na ressaca da experiência de McMahon na guerra do Vietname. Pese embora ser uma primeira obra, o disco revela uma maturidade criativa e uma profundidade lírica cuja ressonância se mantém intacta e capaz de afectar os corações mais empedrenidos.
São, sobretudo, canções de guerra e canções de amor. Do que foi visto e sentido em terras do Oriente, do regresso a casa, do fim dos idealismos da juventude, de forçados recomeços.
A omnipresente guitarra acústica do cantor é maioritariamente acompanhada por um baixo e uma bateria, esparsos e discretos, deixando os temas fluir numa cadência constante e dolente, envolvente mas não soporífera. Tendo em conta as vivências de F.J. McMahon, não é de estranhar o apelo e o desejo de paz que transpira do primeiro tema, Sister, Brother e que nos conquista de imediato pela bela melodia e a sinceridade da entrega.
Seguem-se mais oito canções, pungentes e superlativas na sua qualidade e simplicidade. Por vezes McMahon remete-nos para um Nick Drake nascido na Califórnia, para as ruminações solitárias de Fred Neil, ou para um Arthur Lee em regime ascético. Todavia, as suas composições são únicas e possuem um crivo de experiência pessoal que as torna realmente genuínas.
É difícil destacar algum tema em particular ao longo da audição de Spirit of the Golden Juice, sendo que todos eles reflectem experiências profundamente pessoais. O belíssimo Early Blue entranha-se imediato, na sua cálida e luminosa melancolia. A poética Black Night Woman conta a história de um amor impossível em tempo de guerra. A poeirenta The Road Back Home remete-nos para o contraste entre a imensidão solitária do deserto e a alienação de cidades hiperpopuladas. O tema-título inspira-se no bourbon bebido pelos soldados no Vietname para relatar o ambiente alucinado vivido na iminência da ameaça constante.
Ao contrário do que McMahon esperava, apesar do louvor da crítica, Spirit of the Golden Juice não teve o sucesso comercial esperado. Tal desapontamento, associado à mudança do paradigma musical no início dos anos 70, levou a que o cantor abandonasse a sua musa em definitivo. Nas palavras do próprio, glitter glam rock came in and I'm looking at this on TV thinking, uh I think my time is done.
É impossível não ficar algo sedento face ao que F.J. McMahon poderia ter continuado a criar musicalmente. A sua única obra deixa intuir que muito ficou por cantar, ao mesmo tempo que o consagra com um dos artistas de culto mais notórios da sua era.

23 de dezembro de 2017

Kosmische Kosmetik LII


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Em 1976, o krautrock evidenciava um declínio no seu florescimento. A maior parte dos nomes que catapultaram o estilo para o seu acme criativo encontravam-se extintos ou atravessavam fases de menor lampejo artístico e inspiração.
Todavia, à margem dos nomes que ajudaram à expansão da vertente mais vanguardista e arrojada do rock alemão, certos grupos e individualidades entendiam ter ainda algo a acrescentar a um lote artístico já digno de destaque na música mais original e influente do século XX.
Günter Schickert, Axel Struck e Michael Leske eram três desses idealistas/inconformados, que decidiram reavivar a velha chama e continuar a espalhar brasas pela música germânica. Com a inicial de cada um dos seus nomes selaram o projecto que os tornou num dos mais radicais nomes de culto do género: GAM.
O primeiro dos dois álbuns editados pelo grupo - simplesmente intitulado 1976 - é uma obra endiabrada e extrema. Criada a partir de três improvisações em estúdio, consegue ir mais além das excursões lisérgicas, espaciais e hipnóticas encetadas por Ash Ra Tempel ou Guru Guru, a título de exemplo.
O primeiro tema, GAM Jam, abate-se sobre o ouvinte como uma borrasca sem tréguas, arrastando-o para a dimensão paralela onde se desenrola, sem esperanças de regresso. Seja qual for a substância que inspirou o trio, a qualidade não deixa margem para dúvidas...
Apricot Brandy deixa para trás a toada ciclónica e deambula por caminhos sombrios e labirínticos. O ritmo é opressivo, a guitarra tensa, a voz paranóica. A produção rude e artesanal torna o tema ainda mais agressivo, mas há algo que nos puxa e nos impele a continuar a desbravar estas cavernosas galerias.
Für Elise und Alice é a queda final no abismo demencial que se escancarou perante nós logo ao princípio. O que começa por ser uma desconstrução perversa da clássica peça para piano de Beethoven evolui para um devaneio rock fora de órbita que os Cosmic Jokers não desdenhariam. Fustigante e fascinante, a peça apodera-se do ouvinte sem misericórdia e o som crú e pouco polido acentua a veracidade e a intencionalidade do monstro que se faz ouvir.
1976 não é um disco exemplificativo do lado mais congregacional do krautrock, nem sequer da qualidade técnica ou melódica da música germânica. É preferível assumi-lo e consumi-lo como um retorno ao seu inconsciente primordial, pagão e puro. 


Kosmische Kosmetik LI

Image result for grobschnitt rockpommel's landRockpommel's Land será, muito provavelmente, o ponto de total convergência entre o comummente denominado krautrock e o rock progressivo. O quarto álbum dos Grobschnitt, editado em 1977, depura liminarmente o estilo musical que o colectivo alemão abraçou desde o início, inflectindo para uma riqueza de formas e arranjos que o tornou um caso sério de culto para os amantes dos desvios mais sinfónicos e utópicos do rock.
O disco padece de uma temática pontualmente transversal às obras do género: o álbum conceptual. Narrativas carregadas de momentos épicos e idealistas, fora da realidade ou demasiado absurdos para serem levados a sério. Nesse aspecto, Rockpommel's Land  não constitui excepção. Senão, vejamos a história que encerra: Um rapaz, chamado Ernie, sedento de fantasia, estabelece amizade com um ser alado gigante chamado Maraboo, e ambos partem numa jornada conjunta que os fará conhecer o Bem e o Mal. Tolkien sorri, Pratchett cofia a barba, mas o melómano franze o sobrolho com desconfiança. Porém, pode ficar descansado. Por mais estapafúrdia que a narrativa seja, a música que lhe serve de base é algo que roça o sublime. E ainda bem, pois é isso que perdura.
Ernie's Rise, tema que principia o disco, fá-lo sem piedade. Na sua melodia luminescente, algures entre Mike Oldfield e os Yes mais dinâmicos, as magistrais variações dos cinco primeiros minutos do tema conseguem arrebatar o ouvinte mais aguerrido. Os restantes cinco fundamentam o postulado.
Severity Town arranca em toada infanto-juvenil, cristalina e bucólica, enveredando aos poucos por uma complexidade assertiva que não lhe retira qualquer graça ou poder. Anywhere é uma balada pastoral e orvalhada, que nos fecha na sua ostra solicitando recolhimento e oferecendo refrigério a meio da jornada.
Rockpommel's Land, a canção, fecha a edição original do disco e constitui, certamente, o seu ponto alto. Ao longo dos seus vinte minutos de duração, o tema consegue manter viva a chama artística, imiscuindo-se por diversas variações sem nunca perder o azimute. Os minutos finais são verdadeiramente espantosos, com a progressiva implosão da energia a dar lugar a uma longa, crepuscular e arrebatadora coda.
Rockpommel's Land tem sido alvo de várias reedições ao longo dos anos, mas merece especial destaque a ocorrida em 1998, especialmente pela faixa extra que encerra. Trata-se de Tontillon, um belíssimo e envolvente tema instrumental, que aparenta ser o prolongamento de um excerto de Ernie's Rise, mas que ganha vida própria e uma gravitas que chega a ser terapêutica. Excelsa é a  prestação do baterista Joachim Ehrig, que recuperou esta peça no seu terceiro trabalho a solo e já sob o pseudónimo Eroc.
Ao longo da sua carreira, os Grobschnitt sempre se pautaram pela liberdade criativa e uma certa forma humorística de abordar a música. Assim sendo, fica sempre no ar a dúvida se os devaneios estilísticos de Rockpommel's Land  deverão ser levados excessivamente a sério ou se constituem apenas mais um tentáculo criativo da banda germânica. Seja como for, enquanto testamento das suas capacidades composicionais e interpretativas, este continua a ser o seu porta-estandarte.

Das Sombras

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IN-SHADOW: A Modern Odyssey é uma curta metragem de animação desenvolvida e realizada por Lubomir Arsov e que pretende transportar o espectador através do inconsciente fragmentado do mundo ocidental.
Pleno de sátira, humor negro e referências jungianas, o filme pinta um quadro negro e perturbador das sociedades do mundo civilizado, desconstruindo o capitalismo e desmascarando as falsas percepções de quem habita a sua realidade, cultivadas via panis et circenses, materialismo e competição amoral.
Obra de enorme pertinência e clarividência na área dos filmes activistas, IN-SHADOW exige visionamento obrigatório e obrigatória divulgação. 



   

Kosmische Kosmetik L

Image result for michael bundt neonA capa de Neon, segundo álbum do alemão Michael Bundt é, literalmente, de fugir. Algures entre o futurismo kitsch e o erotismo azeiteiro, o invólucro da obra não deixa antever bons augúrios para a música que encerra. Quem o levou para casa de forma incauta e sem pré-aviso no ano de 1979, esperando uma soul máscula a la Tom Jones ou uma histérica dose de hard rock, viu certamente os seus intentos defraudados.
A capa de Neon é, efetivamente, o pior elemento do disco, que constitui uma peça curiosa e de elevado interesse arqueológico no que toca à era dourada da música electrónica em geral e germânica em particular. O que está lá dentro poderia funcionar perfeitamente como banda-sonora para um Blade Runner dirigido por Russ Meyer. Música nocturna e lânguida, urbana e lasciva, rítmica mas pouco convidativa à dança, preferindo abrir caminhos para a imaginação e a introspecção. O tema-título é disso prova, abrindo o álbum de forma panorâmica, porém minimalista, com a sua melodia expansiva a penetrar lentamente cada poro auditivo. Michael Bundt leva a cabo uma récita sobre as luzes da cidade, a sua frieza, o seu fascínio, os vícios que disfarçam. A entrega lembra John Cale. O que é sempre bom. Flashes de guitarra eléctrica e saxofone invadem a camada minimal do tema, como interlúdios luminosos sobre a toada penumbrenta.
O registo dolente e sombrio prossegue com This Beautiful Ray Gun, modulado por trechos que parecem saídos de um qualquer lobby de hotel de terceira  categoria. Future Street No. 7 assemelha-se a um funk em câmara lenta, esquelético e frio na camada electrónica que o cobre, mas envolvente na rendição vocal de Bundt. Em conjunto com o tema-título é a peça que mais aguentou a erosão do tempo, mantendo intacta a sua traça futurista.
Flying in a Thunderstorm soa quase a elegia, exalando uma inesperada e plástica melancolia. A atmosfera glacial é somente interrompida por intermitentes arpejos de teclas e flauta, que acabam por carregar o tema até à sua conclusão. Death of a Friend é uma estranha e tétrica catarse, assente em guitarra e piano rotativos, que coloca Michael Bundt novamente em plano recitativo e parece saída de um conto de Edgar Allan Poe. Pelo meio ficam dois exercícios de menor intensidade, mas que contribuem igualmente para a coesa desconexão de Neon: o movimento em suspensão de Welcome the Astral Dancer e Midnight Orange Juice, breve exercício de electrónica cósmica vergastada por guitarra. Em suma, um curioso artefacto musical, que merece estima e contida devoção.


3 de dezembro de 2017

Improvisos Elementares

Image result for third ear band 1970Os Third Ear Band foram um colectivo britânico, formado em Londres em meados dos anos 60, imbuído de elevar a música popular a mais altas esferas. Com muito pouco de convencional no que toca à abordagem composicional e à paleta de instrumentos escolhida, o grupo acabou por granjear relativo sucesso à sua época, muito graças ao regime flower power vigente e ao pleno franqueio de portas a todas as abordagens e liberdades musicais.
Longe das fronteiras demarcadas pelo rock, os elementos dos Third Ear Band reclamaram como influências sonoridades oriundas da música indiana, do experimentalismo e da folk mais arcaica.
Se o primeiro álbum da banda - Alchemy, de 1969, que contou com a participação do lendário John Peel - foi uma inovadora pedrada no charco musical do seu período, o seu sucessor consolidou-a como pilar definitivo na vanguarda sonora inglesa.
Editado em 1970, Third Ear Band tornou-se conhecido mais prosaicamente como Elements. A temática é conceptual e centra-se nos quatro elementos terrestres Ar, Terra, Fogo e Água. Os instrumentos que a animam envolvem apenas violino, violoncelo, viola, oboé e percussão. Tudo parece intuir que nos dirigimos de forma incauta para a new age mais pedante e anódina, mas felizmente a obra prova o contrário, mantendo ao longo das suas quatro peças a notável capacidade de abraçar e arrastar o ouvinte na sua cadência hipnótica, contudo sem nunca descurar um núcleo ardente e orgânico, que torna a experiência tão física como espiritual.
Air principia com um sopro forte, que estende a passadeira ao oboé de Paul Minns e ao violino de Ursula Smith, suspensos como folhas ao vento e aguardadas no solo por um ritmo circular, leve mas insistente.
Earth avança pelas sombras de uma dança medieval, lentamente ao princípio, depois num crescendo que a transporta para territórios do folclore balcânico. Um casamento belo e encantatório, que termina tão fugazmente como começou.
Fire surge envolta na transcendência de uma raga indiana, exalando exoticismo em elevadas doses psicadélicas. É a peça mais densa do álbum, mesmérica e penetrante, um convite ao abandono meditativo pelos confins da nossa mente.
Ao tema mais incandescente, segue-se o mais cristalino. Water constitui o culminar beatífico do disco, espargindo uma doce e envolvente melodia que nos transporta para o embalo de ondas marinhas.
Pese embora Third Ear Band entroncar plenamente no zeitgeist que lhe trouxe inspiração e vida, o lirismo musical que guarda continua a ser deveras intemporal e imensamente cativante. Após a sua edição, o grupo enveredou pela feitura de música para filmes e, entre aparições esporádicas e desaparições espontâneas, cessou oficialmente actividades em 1993. Além de irrepetível na história da Third Ear Band, a sua segunda obra merece justamente figurar no panteão dos discos mais singularmente belos e inovadores da sua era.

1 de dezembro de 2017

Aqui d'El Jazz

Related imageO flautista e compositor Bob Downes assumiu-se como uma das figuras mais criativas e inovadoras da cena jazz britânica, projectando a sua sombra numa miríade de contribuições em variados estilos contaminados por este género, que vão da música clássica contemporânea ao rock e à livre improvisação.
O artista de Plymouth foi um dos nomes sonantes e indissociáveis da revolução jazzística ocorrida na Europa nos finais dos anos 60 e que emancipou em definitivo o Velho Continente de décadas de influência e domínio norte-americanos.
Bob Downes participou como músico de estúdio em inúmeras obras seminais gravadas durante esse período dourado. As suas actividades foram, amiúde, executadas sob a égide da baptizada  Open Music, entidade transmutável de trio a big band e que, como a denominação sugere, se encontrava livre de quaisquer restrições ou amarras estilísticas.
Após gravar algumas obras para editoras mais voltadas para o mainstream, Downes arriscou a criação da sua própria editora, chamada Openian Records, na qual principiou o lançamento dos seus projectos, sendo um dos primeiros músicos deste período a avançar com tal empreitada. O álbum de 1970 intitulado Electric City, trabalho curioso, bizarro e, a espaços, genial, apresenta o compositor como um artífice do jazz rock, criando peças curtas, carregadas de energia e ornadas por arranjos intrincados.
A lista dos músicos participantes neste festim é capaz de fazer salivar os amantes do género à época, apresentando sumidades como os trompetistas Ian Carr e Kenny Wheeler, o baixista Harry Miller e o prodigioso guitarrista Chris Spedding. A música é constantemente brilhante e cativante, sugerindo um bulício urbano e nocturno, e as performances virtuosas constituem amplas expressões das várias correntes sonoras que circulam sem restrições pelo disco. Grooves rechonchudos como Crush Hour, inflexões abrasivas pelo rhythm'n'blues como Walking e frescos cinemáticos como o fantástico Dawn Until Dawn são exemplos flagrantes da versatilidade e ecletismo de Electric City. O ritmo quente e propulsante de  Keep of the Glass não destoaria de uma película blaxploitation. Gonna Take a Journey termina o álbum atirando todos os elementos para um caldeirão, enaltecendo um fundo free jazz sem freios com motivos vocais - coisa rara e estranha neste tipo de obras.
Bob Downes continuaria a criar música interessante e continuamente diferente, mas nunca nada similar a esta pérola frenética, a qual continua a ser uma porta de entrada perfeita para o seu mundo singular e um pequeno objecto sónico não-identificado no jazz disruptivo que despontou na Inglaterra e na Europa nas décadas de 60 e 70.