Os praticamente ignorados Ultramarine introduziram na electrónica dos inícios da década de 90 influências da folk britânica e explorações inteligentes de gentes de Canterbury como os Soft Machine ou os Caravan. Every Man and Woman is a Star, álbum que os deu a conhecer aos poucos iluminados que fizeram caso disso, trazia na bagagem texturas ambientais e elegantes, humanizando a electrónica e desafiando a sua abstracção com samples de Kevin Ayers e dos Matching Mole.
Após esta obra, já de si surpreendente, o duo britânico constituído por Ian Cooper e Paul Hammond conseguiu a proeza de maravilhar ainda mais os adeptos mais livres-pensadores da música dita de dança. Com o lançamento de United Kingdoms em 1993, os Ultramarine juntam-se a uma ténue vaga de criadores de electrónicas e batidas que não se resumem ao minimalismo e à repetição até à exaustão para justificar a toma de MDMA. Nomes como Aphex Twin, The Orb ou The Future Sound of London saíam das respectivas tocas para consagrar o Techno e a Trance como música que também pode ser inteligente, desafiadora e estimulante para lá das fronteiras físicas. Uma fonte de inspiração e de experimentação cujos horizontes são extensos. Os Ultramarine fizeram-no magistral e majestosamente no disco eleito para hoje. Respirando tradição e herança celtas por todos os poros, não conterá propriamente música para acompanhar a leitura d’ O Mabinogion (é demasiado solarenga e beatífica), mas abre a porta a um deslumbrante mundo de escapismo e fantasia. Como se druídas da pós-modernidade se reunissem em Stonehenge e celebrassem com música do seu tempo, mas que não quebrasse a ligação com o mais arcaico; como se as florestas se enchessem de sons festivos e luxuriantes, mas baseados na antiga comunhão entre Homem e Natureza, por antítese à alienação e os excessos que dominam essa relação no presente. Electrónica verde, Techno ecológica.
Todo o álbum encerra uma miríade de delícias que vagueiam entre o tecnológico e o orgânico. A liberdade é total. Repare-se no início da primeira faixa, Source, fabulosa porta de entrada, em que um acordeão nebuloso é digitalmente alcançado, irrompendo daí um ritmo lento e tribal, emparelhado em simultâneo por flauta e maquinaria. Kingdom é a primeira de duas belíssimas canções de travo mais pop às quais o imenso Robert Wyatt dá voz. A flauta que lhe dá personalidade é inesquecível. A outra é Happy Land e possui um interlúdio de saxofone nada menos que fosforescente. Sabendo que o senhor não coloca a sua venerável voz em qualquer palavreado, a primeira é uma adaptação de um poema do século XIX intitulado The Song of The Lower Classes e a segunda uma farsa social dos tempos vitorianos. Basta uma única leitura de ambas, para concluirmos que continuam a ser tristemente actuais...
Ritmos mais vincados e dançáveis surgem em Queen of The Moon ou Dizzy Fox, mas mantendo sempre um sentido de aventura e a frescura melódica dos instrumentos de sopro. A comunhão total entre homem e máquina sente-se na perfeição em The Badger, soberbo tema em que palmas e inflexões de voz aparentemente sem sentido são parte integrante da música, que nos embala a espaços com um violino em arrasto e exala um doce aroma jazzístico. Os ecos de uma Canterbury tornada electrónica propagam-se na flagrante revisitação aos Matching Mole feita em Instant Kitten e na longa deambulação de English Heritage, cujo coda só peca pela escassa duração do devaneio melódico. Percorrendo territórios experimentais mais limítrofes, mas sem nunca descambar no bacoco, Urf ensaia um funk abstracto e o genial Hooter enlaça uma circular cadência rítmica a uma tontura narcótica e constante que faz as vezes de melodia. Provavelmente, o ponto alto do disco. No Time encerra-o subtilmente, fazendo a súmula dos elementos que ficaram para trás. A toada é sombria, quase crepuscular, o saxofone e um velhinho Hammond tomam conta da ocorrência. Aos poucos, dá-se o ocaso e o silêncio instala-se sobre um disco todo ele feito de sensações e que deveria ser alvo de um reconhecimento maior e merecido. No entanto, nunca é tarde...
Em certos momentos, United Kingdoms pode parecer datado, oriundo dos primitivos inícios de 90. Os discos dos Kraftwerk também o parecem e é no seu pioneirismo que ainda hoje reside todo o seu génio, charme e influência. Aliás, como os próprios Kraftwerk afirmaram um dia, as máquinas possuem vida e emoção. Ipsis verbis o que se passa aqui...