18 de novembro de 2013

Bittersweet Symphony




Podia ser apenas efeito do culto e do mediatismo, mas não é. Cold Fact e Coming From Reality são dois discos assombrosos e plenos de canções brilhantes. Da melhor safra surgida nos inícios dos anos 70. Ambos foram os únicos legados do cantautor do Michigan Sixto Rodriguez, que desapareceu misteriosamente após a conclusão do segundo e alimentou os mais variados mitos e mistérios nas décadas que se seguiram.
Temas como Crucify Your Mind, I Wonder, Sugar Man, A Most Disgusting Song ou a devastadora Cause encontram-se perfeitamente ao nível de pares de profissão mais consagrados como Bob Dylan, Neil Young ou Van Morrison. Criações cuja simbiose entre um lirismo crú mas imensamente poético e um instinto melódico notável transformam em pequenos monumentos à arte de fazer canções.
A veneração velada pela ausência que rodeou Rodriguez nos últimos 40 anos terminou subitamente com a edição de Searching For Sugar Man. Filme documental de 2012 realizado por Malik Bendjelloul, recupera o homem por trás do mito, mostrando a sua verdadeira história e devolvendo-o ao mundo dos vivos. O tom algo melodramático é inevitável porque o próprio enredo é agridoce e é impossível não imaginar o que teria acontecido a um músico tão talentoso se não tivesse arrumado as botas prematuramente, desconhecendo que era ídolo de um público que também pouco sabia sobre ele.
Mais que tudo uma história de segundas oportunidades, Searching For Sugar Man celebra uma vida de amor à música que teve um inesperado efeito borboleta. E, mais que o retrato de um grande e talentoso artista, uma lição de como nada está oficialmente terminado até que a banda pare de tocar.


               

9 de novembro de 2013

The Life of P

A vida dos P foi curta. Durou entre 1993 e 1995 e gerou apenas um fruto. A parca atenção dada a este projecto paralelo de Gibby Haynes - líder dos Butthole Surfers - prendeu-se, sobretudo, com o músico de serviço Johnny Depp. O actor fetiche de Tim Burton e objecto de fantasias para jovens (e não-assim-tão-jovens) damas melancólicas, toca guitarra e baixo ao longo de todo o álbum homónimo da banda e fá-lo com a galhardia de um rocker deliciado com a desbunda.
P é um disco tremendamente eclético e quase esquizofrénico. Abre deliciosamente com o rock magnético de I Save Cigarette Butts e a partir daí uma caixinha de surpresas exibe-se perante nós. Existe espaço e liberdade para tudo, desde paródias ao R.E.M. em Michael Stipe a uma versão indie rock de Dancing Queen dos ABBA. E não sabemos como reagir a estas provocações porque a música está sempre à altura dos devaneios.
A sombra dos Butthole Surfers mais viscerais e inconvencionais, filhos bastardos do punk e do psicadelismo, projecta-se em Zing Splash e Oklahoma. E os P ganham identidade própria em experimentos como Jon Glenn (Mega Mix) e Scrapings From Ring, duas peças apostadas em trazer à ribalta uma espécie de dub rock que oscila entre o ambiental e o demencial.
Há ainda espaço para os blues psicóticos que David Lynch não desdenharia em White Man Sings The Blues, para uma desconjuntada canção de amor - Die Anne - e para The Deal, um estranho épico sucedâneo do grunge que nos faz coçar o queixo à procura de sentido. Porque tudo e nada fazem sentido neste disco. É música em bruto, na qual as únicas cedências concedidas são à arte da miscelânea.
Para além da super estrela Johnny Depp, merece igualmente destaque a colaboração de luminárias como Chuck E. Weiss, Flea (dos Red Hot Chili Peppers) e Steve Jones (dos Sex Pistols) nesta obra. Um disco singular e desafiante, que não foi um blockbuster e passou fugazmente pelos anos 90, mas cuja personalidade original foi feita para durar.

1 de novembro de 2013

Estrela de David

A maioria dos que me lêem conhece certamente o icónico Blow-Up, filme de Michelangelo Antonioni cujo enredo se centra num fotógrafo que, conscientemente ou não, é testemunha involuntária de um assassínio. A película de 1966, com o seu retrato romantizado e estilizado da Swinging London e das suas vivências libertárias, tornou-se um marco cultural, parte integrante do imaginário da década de 60 do século passado.
Igualmente célebre ficou David Hemmings, o actor que encarnou o fotógrafo David Bailey e cuja personagem se colou inevitavelmente à sua carreira cinematográfica.
Talvez apenas uma minoria dos que me lêem conheçam a vertente musical de David Hemmings. O que é natural porque o actor apenas foi cantor num disco - Happens, de 1967.
É uma obra que vale mais pela curiosidade que pelo conteúdo. Hemmings é acompanhado por gente de valor (como Roger McGuinn e Chris Hillman dos Byrds ou o baterista Ed Thigpen do trio jazzístico de Oscar Peterson) e entrega-se a versões de nomes não menos consagrados como Tim Hardin ou Gene Clark. Estas, Reason To Believe e Back Street Mirror, abrem o álbum da melhor maneira, mostrando que David Hemmings poderia ter sido um cantor credível ao invés de um grande actor. No entanto, o glamour da Swinging London que tanto ajudou a definir a sua imagem encontra-se ausente dos cenários sónicos de Happens. A maioria das canções enquadra-se numa moldura folk pop com ligeiros lampejos de psicadelismo, exemplificadas perfeitamente em Good King James, Anathea e War's Mystery e no toque transcendente que a cítara de Roger McGuinn lhes confere. After The Rain e The Soldier's Wind ressoam como ecos de prados verdes ingleses.
David Hemmings não conseguiu ser um bardo de sucesso, ao contrário do seu trabalho como actor. Happens passou fugazmente pela música e a música apenas o olhou de soslaio. Para a posteridade fica uma das raridades possuidoras da bizarria típica da década que a viu despontar.