A minha primeira memória de David Robert Jones remonta aos 7 anos de idade. 1983. Um colega da escola primária, decerto por vias insondáveis, apareceu um dia com um caderno diferente. Na capa vermelha ressaltava, ao centro, uma figura estranha mas igualmente hipnótica. Tinha um olho de cada cor. O cabelo era vermelho e o rosto, envolto numa maquilhagem berrante e futurista, não permitia vislumbrar se era rapaz ou rapariga. Somente o nome, escrito a letras que mais pareciam gordos relâmpagos, dissipava as dúvidas. Era um rapaz chamado David. Bowie o seu segundo nome.
Mais tarde (dias? meses?), surgiu na televisão o videoclip de Let´s Dance. Um homem magro, de cabelo louro e roupas claras, cantava num bar no meio de nenhures, aparentemente num calor abrasador. O nome apareceu no fim: David Bowie. A estranheza acentuou-se. Como podiam aquele homem que tocava guitarra de luvas brancas e a figura flamejante do caderno ser a mesma pessoa? Afinal era músico e não uma personagem de ficção científica!
Ser criança é ser, essencialmente, uma esponja. Tudo é absorvido rapidamente e triturado para dar lugar à próxima revelação. A bizarra figura daquele simples caderno (que, obviamente, era Ziggy Stardust em toda a sua pompa) foi remetida para um canto da memória e coberta por camadas de novas descobertas musicais, algumas de gosto bastante duvidoso...
O primeiro regresso a David Bowie deu-se com a sua primeira vinda a Portugal. Não se falava doutra coisa. Tocou num estádio e o concerto foi transmitido na televisão. Vi, entre o fascinado e o desapegado, as suas movimentações teatrais e reptilianas em palco. Em 1990, o meu gosto adolescente colocava-me nos antípodas de qualquer música que agradasse às massas. Aquela figura destoava num quarto preenchido por posters de bandas obscuras de heavy-metal.
Com o tempo, veio o amadurecimento e o ecletismo nos gostos e nas escolhas. E, com ele, o primeiro disco de Bowie. Gostaria de dizer que a peça inaugural foi um clássico como The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars ou até Let´s Dance. Mas não. A compilação Changesbowie parecia ter um pouco de tudo para escrutinar a carreira da camaleónica personagem. Mas seria apenas uma pequena fresta para um mundo de delícias e mistérios a descobrir. Sucederam-se os abandonos e os regressos, o enfado e as saudades. Lembro-me de ficar definitivamente deslumbrado e rendido com Outside, o disco de 1995 feito em parceria com Brian Eno e que me franqueou as portas para a existência de uma anterior fase berlinense de Bowie, reverenciada de forma quase religiosa por uma certa franja cognoscente.
Em 1999, após a edição de Hours, outro disco que me tocou inesperadamente, chegou a notícia da reedição de toda a obra do músico londrino. Era chegada a hora da imersão total. Comprei todos obsessivamente e obsessivamente os escutei, inclusive a inusitada aventura denominada Tin Machine...
Low sempre foi o meu preferido. Muito provavelmente será o disco da minha vida. Não pelo que trouxe em definitivo, mas pelas portas que abriu. Este blog não existiria sem Low. Tal como eu não partiria em expedição do krautrock que tanto o influenciou e não abriria a mente a todos os sons mais experimentais e arrojados, aqueles que primeiro se estranham e depois se entranham.
Ao contrário do que muitos apregoam, Low não foi gravado em Berlim na sua totalidade e Brian Eno não é o seu produtor. O álbum foi parcialmente gravado em França e a produção dividiu-se entre Bowie e o quase omnipresente Tony Visconti. Dos onze temas que o compõem, seis são maioritariamente instrumentais, o que ilustra bem a direcção tomada por uma das maiores vozes de sempre da música popular.
Tudo em Low soa a novo, sempre, a cada audição, mesmo passados quase 40 anos da sua edição original. Nunca se ouviu uma bateria assim e a atmosfera geral jamais foi repetida. Friamente melódico, solitariamente emocional e envolto numa escuridão latente, é assombrosa a forma como uma obra tão alienada e alienante possui tamanha capacidade de cativar. Consta que Bowie abandonara Los Angeles, onde vivera até então, para se livrar das amarras da cocaína. Talvez derive desse facto o tom introvertido e melancólico do disco. A lenta descida à sóbria realidade.
Os temas mais imediatos de Low são, indubitavelmente, os dois singles que produziram: Sound and Vision e Be My Wife. O primeiro é uma das melhores criações de sempre de Bowie, um hino à depressão, mas cuja melodia cristalina e ritmo límpido tornam luminoso. O segundo constitui a peça musicalmente mais clássica do disco, apesar do tom agridoce que prevalece.
Os curtos mas brilhantes estilhaços de canções que fazem o álbum levantar voo, imediatamente a seguir ao arranque propulsivo e infeccioso de Speed of Life, transportam consigo tantas influências como disseminam o que deveria ser escrito musicalmente no futuro. É neste capítulo que se nota a tremenda sombra criativa e inovadora de Brian Eno. Ao esqueleto dos temas, Eno adiciona a sua alquimia pessoal e as suas estratégias oblíquas, tornando a música arte pura.
À medida que Low se encaminha para a conclusão, a sensação de solidão e clausura intensifica-se. A New Career in a New Town é a última paragem antes da entrada na noite cerrada, urbana e distópica. Warszawa é o hino nocturno a todas as cidades-fantasma do mundo, uma elegia terrivelmente bela e desoladora, que nos eleva e nos esmaga perante a indiferença da gélida paisagem sonora que contemplamos. Art Decade e Weeping Wall são quase autistas na forma como se fecham sobre si próprias num manto de electrónica lúgubre, xilofone repetitivo e efeitos ominosos. Subterraneans encerra o disco como um lento nevoeiro que se ergue na densa, cinzenta e nocturna paisagem urbana, envolvendo-nos e cobrindo-nos, até que a estrela mais alta desapareça do alcance da vista. Fica um saxofone, despojado e lunar, paradoxo de um instrumento que deveria ser caloroso.
Nunca David Bowie soou tão alienado/alieníngena como em Low. Seguir-se-iam outros momentos de génio, da mesma forma que outros o precederam. Mas Low será sempre um caso à parte, o exemplo flagrante do que fez de David Bowie único, imprevisível e irrepetível.
Agora, um mês passado da sua súbita, inesperada e quase orquestrada morte, é impossível superar o vazio que se instalou. As ondas de choque da perda avançam e regridem a cada notícia, a cada memória, a cada audição do seu impressionante legado musical. António Lobo Antunes disse uma vez que, quando perdemos o nosso pai, nada mais resta entre nós e a morte. Será, porventura, exagero comparar esta afirmação ao falecimento de David Bowie. Mas não será exagero apontar que uma grande fatia da minha geração perdeu o seu pai musical. E, ponderando até a sua própria finitude, ficou por sua conta, obrigada a viver num mundo menos inspirador. Não será fácil, mas também não será impossível. A música existirá sempre, para embalar o luto perpétuo. Virão, até, momentos em que não nos lembraremos dele. Mas, como em tudo o que é imortal e ajudou a construir a nossa identidade, a centelha da memória estará sempre latente, pronta para ser reavivada. Da minha tentacular família musical, David Bowie foi sempre o pai. Mesmo quando não o sabia. Mesmo sem o desejar. E ainda me lembro da imagem espelhada naquele caderno...