24 de outubro de 2009

Mr. Mojo Risin'

Desde há muito que as publicações musicais decidem acompanhar as suas edições de CD's gratuitos. Algumas não precisam, como a esmiuçante Record Collector; algumas fazem-no esporadicamente mas muito bem, como é o caso da Wire; outras fazem-no sistematicamente, como é o caso da Uncut ou da Mojo. A primeira já viu melhores dias neste campo, sendo que, há sensivelmente 8 ou 10 anos muitos adquiriam o pasquim pelo apêndice auditivo que oferecia. Infelizmente, de há uns anos a esta parte, a Uncut já não proporciona aos seus leitores a audição em primeira mão das obras que critica. Não obstante, continua a ser uma agradável revista musical, principalmente no que concerne à revisitação de bandas e discos mais antigos e na divulgação de nova e muito boa música feita em terras norte-americanas. Assim é também a Mojo, igualmente britânica, igualmente abrangente, igualmente interessada em divulgar certos artistas e determinadas obras de culto. Estas duas revistas constituem uma espécie de Bloco Central das publicações musicais, que se complementam uma à outra, mas que não exigem ser possuídas em conjunto. No entanto, e no que diz respeito a CD's ofertados ao comum melómano, a Mojo poderia ganhar aos pontos, se apresentasse amíude compilações da consistência e da qualidade que hoje decidi recuperar aqui. No relativamente recente mas igualmente remoto mês de Junho de 2003, esta revista ofereceu à borla uma das melhores compilações que alguma vez ouvi dedicada ao rock de garagem, a cena garage, surgida em meados dos anos 60, muito por culpa dos Rolling Stones e da sua aproximação branca e de fatiota aos blues. Instant Garage, como foi denominada, é uma autêntica Bíblia de referências nesta área. Ao contrário de, parafraseando o geriátrico José Saramago, ser um manual de maus costumes, esta Bíblia pura e simplesmente irrradia luz e júbilo sobre o ouvinte. Havendo quem pague (e bem) para adquirir algumas das rarídades de bandas aqui representadas, este disco grátis escancara magistralmente as portas para esta vertente musical tão rica e seminal. Muito do que se ouve nele é verdadeiramente raríssimo de encontrar, nomeadamente bandas como os Artesians ou os Brave New World, que tiveram existências curtas, resumidas a singles e a concertos dentro de portas nos seus E.U.A. natais. Pululam igualmente por aqui actos mais consagrados, mas embebidos no mesmo espírito rebelde, urgente e do it yourself, como os Modern Lovers e os Ramones, ou, em fase embrionária e crua, os Kinks e os Love.
Dos temas mais memoráveis desta colecção, realce para o genial I Had Too Much To Dream (Last Night) dos Electric Prunes, o sombrio e afectado My Daddy Walked In Darkness de Gil Bateman e o docemente doloroso Sometimes You Just Can't Win dos obscuros Mouse & The Traps. Destaque igualmente para o roufenho e primário Again & Again dos Iguanas, banda e bicho cujo baterista, James Osterberg, viria a homenagear na sua carreira a solo ao adoptar o nome Iggy Pop. De resto, que mais podemos dizer perante uma compilação que junta The Nazz (do excêntrico Todd Rundgren), MC5, Sonics e New York Dolls? Mais que um fim em si mesmo, esta colecção deve ser vista como ponto de partida para uma busca exaustiva das inúmeras bandas deste estilo, que lançou as raízes de movimentos marcantes como o punk e outros não tão marcantes como o psychobilly. A partir daqui, é provável e compreensível que se instale uma obsessiva-compulsiva febre de coleccionismo. Se houvesse uma nota a atribuir-lhe seria 18 valores. Se tivessem sido incluídos os 13th Floor Elevators e os Monks, seria justamente um disco merecedor de 20 valores. Gratuito, abrangente, enciclopédico e, acima de tudo, carregado de temas escaldantes, que mais se pode pedir? Se todas as revistas trouxessem discos assim, felizes seriam os humildes melómanos. A agarrar como se não houvesse amanhã, caso a estrela da fortuna brilhe e o encontrarem perdido por aí...


The Nazz - Open My Eyes (1968) por soulpatrol

Dieta Mediterrânica IV

É parca a informação em torno do colectivo italiano Dedalus. Originários de Turim, tiveram o seu apogeu no início dos anos 70. A isso se deve o brilhante primeiro álbum que editaram e que replica o nome da banda. Algures entre o jazz mais experimental, a electrónica mais expansiva e as paisagens de Canterbury, Dedalus é uma experiência auditiva embebida no mais audaz e livre espírito da época.
A abertura faz-se sinuosamente com Santiago, em que uma guitarra divagante se junta a um contrabaixo enérgico, cativando abruptamente e logo à partida. Uma pausa para respirar e eis que um saxofone igualmente atrevido toma o tema de assalto, conquistando-nos irremediavelmente. Defraudando as expectativas da melhor forma, este exercício de jazz rock inflecte para territórios de electrónica espacial, que se distende livremente até à fusão final em apoteose jazzística. Leda abre com chispas ecoantes de piano eléctrico, temperado por um tímido saxofone. Peça de atmosfera deliciosa e quente, introduz reminiscências dos Soft Machine das eras de Fourth e Fifth. Conn envereda pelo mais puro improviso, avançando às apalpadelas por entre a precisão rítmica de relojoeiro suíço. Segue-se C.T.6, peça complexa e magnificamente executada, segmentada em breves e caleidoscópicos trechos, que se vão sucedendo progressivamente para produzir um autêntico patchwork sonoro. Um panegírico para os sentidos. O quinto e último tema, Brilla, conclui o álbum num devaneio de jazz cósmico, progressivo, num turbilhão inescapável de alimento para a mente.
Para além dos supracitados Soft Machine, essa obra-prima do jazz de fusão que é Bitches Brew de Miles Davis surge inescapavelmente à ideia. Mas, neste disco de 1973, os Dedalus conseguem manter uma consistência de tal forma incrível, quer a nível composicional, quer a nível execucional, que nos envolve deliciosamente e nos faz esquecer tudo para além da excelência do momento.

23 de outubro de 2009

Velas na Tundra

Arrasados e, inúmeras vezes, incompreendidos pela crítica por alturas das sua primeira aparição, os Black Sabbath são, hoje, dignos e marcantes senhores na história do rock. Os inventores do heavy-metal. Os responsáveis pela sua incursão na via do ocultismo mais pedante e indulgente, mas não menos diabólico e pungente na entrega. Os seus três primeiros álbuns, Black Sabbath, Paranoid e Master of Reality são vistos actualmente como obras imprescindíveis na discografia de qualquer roqueiro bom chefe de família. Vol. 4 anda lá perto, sendo que, a partir da segunda metade dos anos 70, a banda começou a perder relevância e a ser apontada mais como referência, os seus discos mais imitados que ouvidos. A culminar, o decano Ozzy Osbourne (à parte ter elaborado dois ou três álbuns bem esgalhados) involuiu de senhor das trevas a imponderável e apalhaçada estrela de reality show.
Há 23 anos atrás, bem antes dos Sabbath voltarem (ou começarem) a ser hip fora do circuito estritamente metaleiro, um agrupamento sueco lançou um álbum de estreia em muito responsável pela sua reabilitação e fuga do esquecimento. Pesadamente intitulado Epicus Doomicus Metallicus é uma obra impregnada de riffs esmagadores, hipnóticos e arrastados na melhor tradição de Tony Iommi e de um negrume gótico, feito de melancolia opressiva e variadas temáticas esotéricas. Não é à toa que a este festim soturno foi atribuído o epíteto doom metal.
Rezam as crónicas que o disco foi produzido em condições extremas, o que se reflecte na ambiência sonora. A banda tinha por hábito ensaiar numa pequena casa, remotamente situada no alto de uma montanha. As gravações tiveram lugar num estúdio tão frio que os músicos, sem dinheiro para pagar aquecimento, usavam luvas e sobretudos enquanto tocavam. Os calafrios reflectem-se na música, especialmente na voz. Johan Langquist, cantor de serviço que abandonou a banda pouco depois da conclusão do álbum, afirmou respirar gelo enquanto cantava. A voz é, aliás, a porção mais estranha deste disco, pois Langquist é tudo menos um vocalista de rock pesado. Às vezes, até canta mesmo. Se Scott Walker, passe o hiperbólico sacrilégio, decidisse frontear uma horda metaleira em meados de 80, provavelmente soaria como algo parecido. A instrumentação, essa, é pesada como manda a lei por estas bandas, mas arrastada e penumbrenta. Solitude abre o disco do modo mais funesto possível. Uma elegia suicida, de entrada acústica e progressão negra e fatalista. A voz ecoa como se já não pertencesse a este mundo. Demon's Gate é um épico arrastamento de quase 10 minutos que relata nada mais nada menos que uma viagem ao Inferno. A hipnose em tom grave das guitarras é levada ao limite, em permanente espiral repetitiva, quebrada somente por proverbiais solos estridentes. Crystal Ball e Under the Oak são perfeitas osmoses do mais obscuro que os Black Sabbath legaram. Black Stone Wielder é um desfile de figuras encapuçadas debaixo de um céu cinzento, que verte uma melodia rica e plena do pathos que terá influenciado muito do tenebroso black metal nórdico da década de 90. No final, A Sorcerer's Pledge define-se como a peça mais ambiciosa do álbum. Bem elaborado para um grupo de tão parcos recursos, o tema começa por ser uma balada outonal, progredindo para territórios mais enérgicos que desembocam numa gélida marcha fúnebre. O tema extingue-se num estertor gótico, com a típica voz feminina em fundo.
Epicus Doomicus Metallicus, mais que óbvia homenagem aos patriarcas Black Sabbath, vale por ser um dos discos mais improváveis surgidos da área do metal. Apesar do negrume constante, é quase ingénuo nas suas intenções. A partir dele, os Candlemass tornaram-se uma banda mais convencional e apegada aos tiques e clichés do circo metaleiro. Tornaram-se, eles próprios, uma referência. Mas, ouvida no lado errado de uma noite de Inverno, ainda é provável que esta obra debutante assuste e cause alguns calafrios...

17 de outubro de 2009

Somos todos Mutantes

Mutantes, obra do biólogo evolucionista francês Armand Marie Leroi é um livro fascinante. Nele, são narradas, num misto de ensaio e rigor científico state of the art, histórias de como o ser humano é alvo de modificações. De como elas são originadas, de como se manifestam, de como os outros membros da espécie humana ditos normais têm vindo a reagir a elas ao longo dos tempos. Desde a história de uma menina, aluna num convento de freiras, que deu consigo a mudar de sexo na puberdade, a uma família cujo corpo era totalmente coberto de pêlo e que foi conservada na corte da Birmânia durante sucessivas gerações, passando pelo caso do homem que tinha uma cabeça parasitária implantada no lado direito da sua própria cabeça, este livro é um manancial de episódios incríveis, todos eles explicados pela genética e biologia molecular. Mais que relatar mutações bizarras e malformações do arco da velha, esta obra realça a importância que as modificações ocorridas na formação do ser humano possuem no desvendar do enigma da nossa própria construção. Na medida em que ninguém é igual ao seu semelhante e que o processo de criação da vida é feito de sucessos e insucessos, de heranças e erros genéticos, a premissa deste livro é afirmar que, mesmo sem manifestações visíveis, somos todos mutantes. Simplesmente magnífico!

As Fugas de Lubowitz


Manfred Sepse Lubowitz fundou os narcisicamente subordinados Manfred Mann na plenitude da Swinging London de 1963. Cedo se tornaram uma máquina de fazer êxitos sob a forma de singles derivados dos blues, em débito directo de outras bandas da City, como os Rolling Stones ou os Yardbirds. Temas directos e cantaroláveis como Do Wah Diddy Diddy, The Mighty Quinn, If You Gotta Go, Go Now ou Pretty Flamingo fizeram as delícias de muito rapaz imberbe guedelhudo e de donzelas tonitruantes no preto-e-branco da época. No entanto, provavelmente porque o estado de graça não dura para sempre, ou por não conseguir debitar mais singles gloriosos, o teclista de origem sul-africana engendrou uma forma bem mais colorida, interessante e sofisticada de mostrar a sua obra e dos seus acólitos ao mundo por volta de 1969. Após várias mudanças de line-up, eis que nascem os Manfred Mann Chapter Three. E em boa hora o fizeram, pois constituem um dos projectos mais consistentes de finais da década de 60. Bem longe da pop mais directa e engraçadinha dos inícios, este projecto põe prego a fundo no acelerador do jazz e impõe-se subrepticiamente como um dos fundadores do então embrionário rock progressivo. O seu primeiro álbum, impecavelmente intitulado Volume One, é um disco magistral. Pleno de estilo, elegância, ritmos suados e da tal sofisticação que faz com que os ingleses toquem com alma e ardor, mesmo de camisola de gola alta vestida. O genial Travelling Lady, tema que abre o álbum, principia por ser um groove nocturno comandado pelo órgão de Manfred Mann e pela voz fumarenta de Mike Hugg, até que uma secção de sopros o incendeia literalmente e o faz embarcar num idílio jazzístico, carnudo e quente, que pede cigarro atrás de cigarro. Este ambiente, de bistrot decadente, pleno de cortinas de veludo e luzes vermelhas, prossegue com Snakeskin Garter, onde o órgão insinuante e o baixo reptiliano são a base de outra canção deliciosa, embebida no jazz, que parece decorrer num tempo onde é sempre meia-noite e todas as mulheres são fatais. Imensamente contagiante, qualquer bar nocturno digno desse nome devia passar este tema, para aconchegar os corações solitários que por lá vegetam. Konekuf persiste em não nos deixar descansar, atolando-nos ainda mais na genialidade dos músicos que por aqui proliferam. Música sensual, cinemática de tão vividamente imagética, preenchida por ambiências que poderiam povoar de fleuma britânica qualquer film noir. A perfeita banda sonora nocturna, repleta de sombras intrigantes e de pecados a implorar para serem cometidos. Sometimes aclara ligeiramente as ideias, surgindo como uma bela e breve canção, em que a madrugada começa a invadir os olhos inchados e saturados de noites excessivas e a mente pede meças ao corpo por tantas horas sem dormir e orientação para onde o levar. Maliciosamente, surge o infeccioso Devil Woman e o vício retorna com força redobrada. Tema soberbamente construído, em lenta cadência felina, parece colocar uma língua feminina, intrusiva e deliciosa, na orelha do ouvinte. Não há como escapar da teia de aranha lenta e habilmente construída em torno do coração. A instrumentação é brilhante, o ambiente abrasador, imerso no jazz em lume brando e na voz distante mas sedenta. Acreditamos ser quase impossível melhorar, mas eis que chega Time para prová-lo. Mais uma brilhante canção, com uma secção de sopros irrepreensível e uma dolência soul que apetece baixar as luzes onde quer que estejamos. Há uma flauta que surge a meio do tema que serpenteia deliciosamente e aconchega de sobremaneira. E há a voz que parece debitar cada palavra de olhos entreabertos, como se nos quisesse embalar ou fazer esquecer que o mundo existe. Nova incursão pela soul surge em One Way Glass, tema de ritmo vincado e coloridos bafejos jazzísticos. Mister, You're A Better Man Than I traz o primeiro esboço assumidamente melancólico ao álbum, apresentando-se como balada fora de horas, guiada pela guitarra, com os sopros a olhar de soslaio. Ain't It Sad é uma peça solta, curta e inconsequente, um pequeno delírio dominado pelo curioso som de um apito de polícia. Tendo em conta a letra, alguém teve um comportamento menos próprio... A Study In Accuracy retoma os ambientes cinemáticos, de ruas escuras e poças de água iluminadas por candeeiros foscos. Mais Brooklyn que Whitechapel, todavia, este tema é mais um interessante exercício jazzístico, que quase parece antever o advento dos Lounge Lizards uma década mais tarde. O álbum termina com Where Am I Going, típico slow de fim de noite, quando o barman começa a limpar o balcão e se começam a varrer as beatas do chão, tema mais que apropriado para fazer cair o pano sobre esta obra mais que obrigatória. A edição em CD, datada de 1999, acrescenta diferentes versões de quatro temas do álbum. Nada que moleste, mas igualmente nada que acrescente mais à magia do que está feito.
Em 1970, surge Volume Two, derradeiro capítulo desta aventura. Nitidamente menos inspirado e entusiasmante que o seu antecessor, possui, no entanto, belíssimos momentos. A abrir, o excelente Lady Ace segue a tendência mais jazzística e solta do seu irmão mais velho. I Ain't Laughing, com a sua guitarra cristalina e a pandeireta discreta a marcar o ritmo, dá ares de psicadelismo contido, com meio sorriso a pairar-lhe no rosto. Poor Sad Sue é um blues-rock vigoroso, pintalgado a espaços por secos mas melódicos golpes de violino e cortado ao meio por golpes de free jazz que um Albert Ayler não desdenharia. Ritmos tribais africanos preenchem o magnífico mas imprevisível Jump Before You Think, cujo baixo desenha interessantes nuances e os sopros nos colocam numa incrível ambiência pré-Fela Kuti. A voz enevoada e roufenha de Mike Hugg assume preponderância no inebriante e súbito It's Good To Be Alive, canção que antecede o tema mais vincadamente progressivo dos dois álbuns, o épico Happy Being Me. Peça que se prolonga por mais de 15 minutos, é um autêntico cocktail de improvisação jazzística e melodias pop. A fechar, Virginia retoma o percurso fronteiriço entre o blues-rock e o jazz, que atinge o seu acme no órgão flamejante de Manfred Mann, para vir a ser quebrado no final pelo piano delicado e esparso do seu comparsa Mike Hugg. O final perfeito para a dupla responsável pela criação das únicas duas obras desta encarnação, que valem sempre a pena retirar do baú. A primeira, por ser um clássico. A segunda, por ser um bom complemento.

15 de outubro de 2009

Kosmische Kosmetik X

Edge Of Time, do colectivo internacional Dom é um enigma constante. Um perpétuo origami mental que forma diferentes e estranhas figuras a cada audição. Tal como as múltiplas origens da banda (um alemão, um polaco e dois húngaros), assim este álbum é uma das obras mais inclassificáveis e indecifráveis do krautrock. Hermético à primeira aproximação, Edge Of Time é um vórtice constante de sons espaciais, primitivos e maioritariamente sombrios. Penetrando a fundo na obra, esta revela-se onírica, mística, poética até.
Introitus abre o disco em dormente toada folk, muito ao estilo dos já aqui referidos Yatha Sidhra, mas com esgares de lamento. Guitarra acústica, flauta e percurssão unem-se num todo envolvente, até que o ritmo se esboroa num órgão litúrgico, entregue em sucessivos mantos de uma beleza tranquila, mas fria. No final, espírito e carne parecem fundir-se e o tema termina num misto de dissonância e improviso. Uma introdução intermitente e espectral dá início a Silence, tema possuído por uma dolência fantasmagórica, à qual não é alheia uma distante voz feminina que se projecta num misto ilusório de prazer e sofrimento. À medida que a faixa avança, as coisas tornam-se progressivamente mais estranhas e alucinogéneas. Há uma brecha a meio do tema que deixa entrar devaneios electrónicos na melhor veia de Stockhausen ou da música concreta de Pierre Schaeffer, enquanto que uma corda de guitarra é pontualmente dedilhada, como que a tentar manter contacto com a realidade. E no fim, ressurge aquele órgão, ora claro ora escuro, a seduzir como canto de sereia...
Segue-se o tema-título, que se ergue lentamente das profundezas, para se cristalizar numa serena melodia, escura como sempre, mas sem assustar. Acústica e electrónica dançam abraçadas ao longo desta peça, cadente e hipnótica, interrompida para dar lugar à récita do enigmático poema que surge integralmente transcrito na capa do álbum. Uma flauta esvai-se docemente e Edge Of Time acaba por voltar às profundezas num requiem de electrónica arcaica.
Perante o que ouvimos, não é de admirar que a faixa que encerre o álbum se intitule Dream. De novo, a música mais vanguardista e experimental funde-se com a placidez despida da guitarra clássica e da percurssão manual. Dream vagueia em transe mortiço por caminhos obscuros até ser cortada abruptamente e substituída pelo improviso visceral de um xilofone desconexo, de sons manipulados e de colagens electroacústicas, como se as imagens oníricas até agora prazenteiras resvalassem para o inominável, para o radical, para um artefacto de Dalí. Ou como se uma boa trip se transformasse numa má trip...
Os Dom, seguindo a (in)coerência de tantas outras bandas desta época, editaram apenas este álbum, que viu a luz em 1970. Aquando da sua reedição em CD em 2001, ao disco original foram agregadas cinco peças. A primeira, dividida em quatro partes e intitulada Flötenmenschen, foi gravada em 1972 e centra-se no cariz mais electrónico / experimental da banda, apresentando-se como uma sequência de drones sombrios e electroacústica atonal, invadidos a espaços por uma percurssão pungente mas longínqua. Let Me Explain 5, tema de 1998, reintroduz o grupo como entidade praticante de algo parecido com electrónica industrial, quase reminiscente dos primórdios dos Cabaret Voltaire ou dos Coil. Bem longe, assim sendo, da alucinose reflexiva dos primeiros tempos, mas não menos aconselhável.
Como epílogo, cai bem dizer que este disco consegue colocar-nos em vários estados de consciência consoante o nosso próprio estado mental no momento em que o procuramos. Pode desorientar. Pode promover deslocações mentais. Pode fazer com que nos percamos (ou encontremos...) dentro dele. Em suma, possui muito boas contra-indicações. Uma obra-prima absoluta.

13 de outubro de 2009

Kosmische Kosmetik IX

O que transparece dos instantes iniciais de Lasst uns auf die Reise Gehn, tema que abre o álbum Trips Und Traume da dupla germânica Witthüser & Westrupp, é uma ambiência pastoral, temperada por uma brisa campestre e uma instrumentação de ecos medievos. Típica balada folk, límpida e despojada, esta canção é um ténue e insuspeito indício do que está para vir. Antes de se juntar a Walter Westrupp, Bernd Witthüser tinha assinado já um disco, à margem dos territórios ocupados pelo krautrock, mui teutonicamente intitulado Lieder Von Vampiren, Nonnen Und Toten. Esta era uma obra centrada na folk acústica e no imaginário alemão mais mítico e popular, dos vampiros à encantada Floresta Negra. Trata-se de uma obra menor, mas curiosa, um bordão para deambulações rurais em climas outonais. Ao que tudo indica, o encontro entre os dois músicos tê-los-à levado, felizmente, a maus caminhos. Se, ao primeiro tema, Trips Und Traume parece seguir as pisadas do seu antecessor, a maratona herbal (ou lisérgica?) que se segue faz do disco uma das experiências mais psicadélicas que a folk terá conhecido, independemente do país de origem. Trippo Nova revela-se a partir do nome: quase se adivinha que estes rapazes, enraizados na música de pendor acústico, se dedicaram a provar algo que os fez transcender em muito os seus horizontes. A trip está indubitavelmente presente ao longo dos nove minutos desta peça, manietada por uns blues dolentes e viciantes, com solos intermitentes de guitarra acústica e uma vocalização arrastada. Lá atrás, uma voz feminina sussurra, a espaços, sem articular qualquer palavra. O sonho propaga-se em Orienta, que germina a partir de uma flauta enevoada e solitária num crescendo de cordas arabescas. Pelo meio, récitas em alemão e nuances dançantes que nos transportam para paragens orientais. Em pleno ano de 1972, esta dupla imiscui-se brilhantemente na folk mais progressiva e psicadélica e parece, nos interstícios desta peça, lançar sementes para projectos como os Dead Can Dance. Illusion I faz cair as sombras sobre nós. Tema belíssimo, envolvido por uma aura épica e nórdica, é arrepiante na melancolia que dele brota. Sentimo-nos a vaguear pelos átrios gélidos de um qualquer castelo abandonado, em que as paredes parecem respirar e em que a vida ainda se adivinha para além da decrepitude. Magnífico e intemporal...
A meditativa Karlchen é uma peça minimal e esparsa, sustida por uma guitarra a conta-gotas e uma flauta sonolenta. A voz declamatória de Renée Zucker recita qualquer coisa que parece ser interessante e abre alas a um interlúdio de sopros reminiscente dos Pink Floyd de Ummagumma ou de Atom Heart Mother. Da boa fase, pois claro... Os olhos pesam novamente e o tema retorna ao entorpecimento nos últimos minutos, pingando languidez. Segue-se a breve Englischer Walzer, tema inebriado por um piano boémio e um violino fugídio, como se tivesse a ser tocado dentro de uma caneca de cerveja. A fechar, retorna a folk de pendor mais tradicional na prazenteira Nimm doch einen Joint, mein Freund. As vozes de Witthüser & Westrupp ecoam sobre os instrumentos cem por cento acústicos, dando o toque psicadélico que percorre transversalmente este esplêndido álbum. Mais que krautrock, será talvez, e como já foi chamado, krautfolk. Trips und Traume é um disco que tem tanto de transcendental e cósmico como de apego à terra, sendo uma fonte magnífica de relaxamento, quer para viagens mentais, quer para sonhos despertos.