Manfred Sepse Lubowitz fundou os narcisicamente subordinados Manfred Mann na plenitude da Swinging London de 1963. Cedo se tornaram uma máquina de fazer êxitos sob a forma de singles derivados dos blues, em débito directo de outras bandas da City, como os Rolling Stones ou os Yardbirds. Temas directos e cantaroláveis como Do Wah Diddy Diddy, The Mighty Quinn, If You Gotta Go, Go Now ou Pretty Flamingo fizeram as delícias de muito rapaz imberbe guedelhudo e de donzelas tonitruantes no preto-e-branco da época. No entanto, provavelmente porque o estado de graça não dura para sempre, ou por não conseguir debitar mais singles gloriosos, o teclista de origem sul-africana engendrou uma forma bem mais colorida, interessante e sofisticada de mostrar a sua obra e dos seus acólitos ao mundo por volta de 1969. Após várias mudanças de line-up, eis que nascem os Manfred Mann Chapter Three. E em boa hora o fizeram, pois constituem um dos projectos mais consistentes de finais da década de 60. Bem longe da pop mais directa e engraçadinha dos inícios, este projecto põe prego a fundo no acelerador do jazz e impõe-se subrepticiamente como um dos fundadores do então embrionário rock progressivo. O seu primeiro álbum, impecavelmente intitulado Volume One, é um disco magistral. Pleno de estilo, elegância, ritmos suados e da tal sofisticação que faz com que os ingleses toquem com alma e ardor, mesmo de camisola de gola alta vestida. O genial Travelling Lady, tema que abre o álbum, principia por ser um groove nocturno comandado pelo órgão de Manfred Mann e pela voz fumarenta de Mike Hugg, até que uma secção de sopros o incendeia literalmente e o faz embarcar num idílio jazzístico, carnudo e quente, que pede cigarro atrás de cigarro. Este ambiente, de bistrot decadente, pleno de cortinas de veludo e luzes vermelhas, prossegue com Snakeskin Garter, onde o órgão insinuante e o baixo reptiliano são a base de outra canção deliciosa, embebida no jazz, que parece decorrer num tempo onde é sempre meia-noite e todas as mulheres são fatais. Imensamente contagiante, qualquer bar nocturno digno desse nome devia passar este tema, para aconchegar os corações solitários que por lá vegetam. Konekuf persiste em não nos deixar descansar, atolando-nos ainda mais na genialidade dos músicos que por aqui proliferam. Música sensual, cinemática de tão vividamente imagética, preenchida por ambiências que poderiam povoar de fleuma britânica qualquer film noir. A perfeita banda sonora nocturna, repleta de sombras intrigantes e de pecados a implorar para serem cometidos. Sometimes aclara ligeiramente as ideias, surgindo como uma bela e breve canção, em que a madrugada começa a invadir os olhos inchados e saturados de noites excessivas e a mente pede meças ao corpo por tantas horas sem dormir e orientação para onde o levar. Maliciosamente, surge o infeccioso Devil Woman e o vício retorna com força redobrada. Tema soberbamente construído, em lenta cadência felina, parece colocar uma língua feminina, intrusiva e deliciosa, na orelha do ouvinte. Não há como escapar da teia de aranha lenta e habilmente construída em torno do coração. A instrumentação é brilhante, o ambiente abrasador, imerso no jazz em lume brando e na voz distante mas sedenta. Acreditamos ser quase impossível melhorar, mas eis que chega Time para prová-lo. Mais uma brilhante canção, com uma secção de sopros irrepreensível e uma dolência soul que apetece baixar as luzes onde quer que estejamos. Há uma flauta que surge a meio do tema que serpenteia deliciosamente e aconchega de sobremaneira. E há a voz que parece debitar cada palavra de olhos entreabertos, como se nos quisesse embalar ou fazer esquecer que o mundo existe. Nova incursão pela soul surge em One Way Glass, tema de ritmo vincado e coloridos bafejos jazzísticos. Mister, You're A Better Man Than I traz o primeiro esboço assumidamente melancólico ao álbum, apresentando-se como balada fora de horas, guiada pela guitarra, com os sopros a olhar de soslaio. Ain't It Sad é uma peça solta, curta e inconsequente, um pequeno delírio dominado pelo curioso som de um apito de polícia. Tendo em conta a letra, alguém teve um comportamento menos próprio... A Study In Accuracy retoma os ambientes cinemáticos, de ruas escuras e poças de água iluminadas por candeeiros foscos. Mais Brooklyn que Whitechapel, todavia, este tema é mais um interessante exercício jazzístico, que quase parece antever o advento dos Lounge Lizards uma década mais tarde. O álbum termina com Where Am I Going, típico slow de fim de noite, quando o barman começa a limpar o balcão e se começam a varrer as beatas do chão, tema mais que apropriado para fazer cair o pano sobre esta obra mais que obrigatória. A edição em CD, datada de 1999, acrescenta diferentes versões de quatro temas do álbum. Nada que moleste, mas igualmente nada que acrescente mais à magia do que está feito.
Em 1970, surge Volume Two, derradeiro capítulo desta aventura. Nitidamente menos inspirado e entusiasmante que o seu antecessor, possui, no entanto, belíssimos momentos. A abrir, o excelente Lady Ace segue a tendência mais jazzística e solta do seu irmão mais velho. I Ain't Laughing, com a sua guitarra cristalina e a pandeireta discreta a marcar o ritmo, dá ares de psicadelismo contido, com meio sorriso a pairar-lhe no rosto. Poor Sad Sue é um blues-rock vigoroso, pintalgado a espaços por secos mas melódicos golpes de violino e cortado ao meio por golpes de free jazz que um Albert Ayler não desdenharia. Ritmos tribais africanos preenchem o magnífico mas imprevisível Jump Before You Think, cujo baixo desenha interessantes nuances e os sopros nos colocam numa incrível ambiência pré-Fela Kuti. A voz enevoada e roufenha de Mike Hugg assume preponderância no inebriante e súbito It's Good To Be Alive, canção que antecede o tema mais vincadamente progressivo dos dois álbuns, o épico Happy Being Me. Peça que se prolonga por mais de 15 minutos, é um autêntico cocktail de improvisação jazzística e melodias pop. A fechar, Virginia retoma o percurso fronteiriço entre o blues-rock e o jazz, que atinge o seu acme no órgão flamejante de Manfred Mann, para vir a ser quebrado no final pelo piano delicado e esparso do seu comparsa Mike Hugg. O final perfeito para a dupla responsável pela criação das únicas duas obras desta encarnação, que valem sempre a pena retirar do baú. A primeira, por ser um clássico. A segunda, por ser um bom complemento.