Apesar da magra obra que legaram, os Hatfield and The North são uma das bandas mais emblemáticas e representativas do que ficou conhecido nos inícios dos anos 70 como
Canterbury Scene. Esta rotulagem, um pouco forçada e vaga como são todas, assentou numa semelhança de estilos entre diversas bandas do território inglês em epígrafe, muitas delas constituídas por elementos de outras bandas já existentes, o que confere a este estilo o estatuto de uma autêntica
matrioska de individualidades. Estes estilos baseavam-se, essencialmente, em estruturas musicais intrincadas mas melódicas, em que os elementos mais acessíveis da música
pop se conjugavam à complexidade mais experimental do
avant-garde. Considerada muitas vezes um subgénero do rock progressivo, a onda (ou
cena) de Canterbury é bem mais que isso. Daqui advém uma grande parte da ousadia e da inventividade que construiu os alicerces do rock mais
arty, desafiador e incatalogável. O improviso é lema e peça-chave deste género musical, o que se nota distintamente na incorporação declarada de sequências jazzísticas e no liricismo muitas vezes absurdo e inusitado, que parece servir somente como bengala para a miríade instrumental que se estilhaça a cada momento. Música que encanta tanto como intriga, que se estranha tanto como se entranha, tem nos dois álbuns de originais dos Hatfield and The North um típico exemplo da suas artes sedutoras.
O primeiro álbum, homónimo, da banda, foi lançado em 1974, altura em que o estilo de Canterbury já tinha ultrapassado a sua fase embrionária. É uma obra rica e sofisticada, executada com a perfeição clínica dos seus calejados membros. O surrealismo e a excentricidade invadem-na a espaços, sendo que a música parece contorcer-se e amolgar-se para poder avançar pelas dobras do nosso córtex cerebral. A prova é o magistral Shaving is Boring, em que uma introdução saltitante de órgão vai sendo acometida de sucessivos estertores até se deixar levar numa corrente imparável e hipnótica da qual não apetece sair. O corte e colagem de ambiências e ritmos mais ou menos frenéticos perdura durante todo o álbum, pelo que é absolutamente normal suceder-se a uma peça suave e plena de coros femininos como Lobster in Cleavage Probe, o cataclismo em regime free-rock de Gigantic Land Crabs in Earth Takeover Bid. Como é igualmente apreensível, os títulos dos temas não apresentam grande margem para decifração. Exemplo disso é o intrigantemente denominado Big Jobs (Poo Poo Extract). Não raras vezes a capa de um álbum faz jus ao seu conteúdo, e desta feita acontece isso mesmo. O céu cujas nuvens parecem ser figuras de um fresco de Miguel Ângelo sobre a placidez cinzenta de um qualquer subúrbio britânico, demonstra bem a intrusão do surrealismo na normalidade.
O segundo álbum dos Hatfield and The North, lançado no ano seguinte e baptizado The Rotter's Club, prossegue a senda do seu antecessor, mas consegue alcançar a proeza de ser ainda mais conciso e depurado. O disco abre com uma declarada canção pop, Share It, leve à superfície, mas cuja escavação mais profunda revela um cinismo latente. Lounging There Trying principia com uma deliciosa e aquosa guitarra, que acaba por preencher magnificamente um tema outonal e sombrio, mas por onde apetece deambular bem agasalhado. Os interlúdios estranhos e vindos do nada mantém-se, como no gargantuamente denominado (Big) John Wayne Socks Psychology on the Jaw e no seu sucedâneo não menos esquizofrénico Chaos at the Greasy Spoon. O génio instala-se definitivamente ao quinto tema, uma peça contraditoriamente intitulada The Yes No Interlude. Aqui é dado livre-trânsito à improvisação, que se propaga em convulsões sobre a cadente secção rítmica. Primeiro o órgão de Dave Stewart, depois o saxofone de Jimmy Hastings, soltam chispas de sons naquele que é, provavelmente, o melhor momento do álbum. Após este bombardeamento, a toada prossegue serena e sem sobressaltos, com destaque para o excelente e jazzístico Underdub até Mumps, tema que encerra a edição original do álbum. Com 20 minutos de duração e dividida em 4 partes, a peça é o que mais se assemelha a rock progressivo em todo o espectro da obra da banda. Tocado pelo génio, a espaços, há que destacar obrigatoriamente a longa e extasiante deambulação de Lumps, mais um exemplo perfeito do motor propulsor que constituía o colectivo na posse dos seus plenos poderes. A abrir e a fechar esta última sequência do álbum, as duas partes de Your Majesty Is Like a Cream Donut, mais um título de referência a juntar ao reportório da banda. A reedição do disco em 1987 acrescentou-lhe mais 5 faixas extra. De todos os temas, há que realçar o belíssimo e sólido Halfway Between Heaven and Earth.
Pouco ou nada conhecidos fora do solo inglês, os Hatfield and The North conseguem ter a sua pequena legião de culto dentro de portas. Assim é com o escritor britânico Jonathan Coe, cujo notável romance de 2001 intitulado precisamente The Rotters' Club é uma homenagem indirecta à banda, que surge diversas vezes mencionada nas suas páginas. Mesmo não sendo a nata das natas de Canterbury (esse papel cabe a luminárias consagradas e instituídas como Robert Wyatt, Soft Machine, Caravan, ou mesmo os Gong), os Hatfield and The North constituem uma belíssima opção a juntar a este estilo musical tão único e sui generis.