8 de dezembro de 2009

Chill-Out Folk

Em 1973, o mestre John Martyn editou aquela que será, seguramente, a sua obra de referência. A sua obra-prima. O disco recebeu o título Solid Air e, ainda hoje, a sua influência se faz sentir, especialmente pelo facto de a folk nunca ter ido tão longe como antes deste álbum. Composto originalmente por 9 canções em estado de graça, este excelso disco mantém ao longo da sua duração o mesmo tipo de ambiência, dolente, arrastada, profundamente nocturna e tocada pelas estações do frio. O clássico absoluto que abre o álbum e lhe dá título é dedicado ao mago Nick Drake, amigo pessoal de John Martyn entretanto falecido. Esta canção foi feita para ouvir em quase total ausência de luz e silêncio absoluto. A voz inebriada e fumarenta de Martyn é magistralmente acompanhada por gotas cintilantes de xilofone, enquanto um saxofone enlutado observa à distância. Segue-se a folk mais tradicional do esplêndido Over The Hill, complementada por bandolim e violino, e em que a letra foca as agruras de uma vida de excessos, temática presente na maioria das canções do disco. A penumbra regressa, em tons de vermelho-escuro, com Don't Want To Know, belíssima balada adornada por discretos mas valiosos enfeites jazzísticos, nos quais um cálido piano eléctrico é rei. I'd Rather Be The Devil cumpre a promessa. É um tema possesso, um martelar voodoo, em que John Martyn aparenta mais ser um bluesman como Howlin' Wolf ou Leadbelly que um baladeiro do Surrey. O espírito livre do jazz sente-se mais que nunca, sendo que a versão ao vivo deste original de Skip James que viria a povoar algumas reedições do álbum ganha novo fervor pela intensidade e pelo improviso. Em ambas, o tema fecha com um encantatório trabalho de guitarra que remete para paisagens mais psicadélicas.
Um contrabaixo meditabundo estende o tapete a Go Down Easy, canção trémula em que a folk e o jazz se imiscuem na perfeição. Um baixo meio funky e uma guitarra semi wah-wah encetam a travessia vincadamente ritmada e fortemente inebriada de Dreams By The Sea, até que o piano eléctrico, sonolento e às apalpadelas, põe termo à excitação.
Chega a vez de May You Never, hino à amizade e um dos temas mais belos e emblemáticos do álbum, terno e despojado, em que a guitarra, ora golpeada, ora dedilhada, e a voz sentida de John Martyn chegam e sobram para as encomendas. A bruma e as sombras envolvem-nos e trepam por nós em The Man In The Station, perfeita ode a solitários que vagueiam pelas ruas nas horas mortas da noite. O disco termina em toada mais tradicional e alegre, com a dupla The Easy Blues / Gentle Blues. A primeira mostra bem a influência de Hamish Imlach, homem da folk mais aguerrida que lançou Martyn; a segunda é um quase um breve trecho cujo intuito é colocar ponto final no disco. E fá-lo com a qualidade e o génio de tudo o que ficou para trás.
Solid Air foi considerado, com o habitual e histriónico valor acrescentado que os britânicos colocam quando formulam algumas opiniões artísticas, como o primeiro disco de trip-hop de sempre. Facto é que o influente radialista Gilles Peterson, homem mais vocacionado para danças e electrónicas, coloca amiúde o tema-título no éter. Mas isto não se aproxima da realidade, apesar de não andar totalmente fora dela. Solid Air é um álbum de ambiências extremamente carregadas, narcóticas até. Como terapêutica relaxante e entorpecente encontra pouca rivalidade. Trata-se, indubitavelmente, de um dos grandes discos britânicos do século XX, que, reedição após reedição (a última teve lugar este ano, poucos meses após a morte do seu autor) ainda mantém a traça original e não precisa de mais que os seus primeiros 9 temas para encantar e arrebatar para a eternidade.