19 de junho de 2010

Hipnagogias

Quem, como é o meu caso, anda pela casa dos trinta, terá, certamente, recordações vívidas e saudosas dos anos 80. É muito provável que se lembre do campeonato do mundo de futebol de Espanha, em 1982, que será sempre melhor que todos os que se seguiram; da série Verão Azul; de Margaret Thatcher e do cubo de Rubik; do italo-disco e outros case studies musicais barricados nesse nicho temporal. Quem anda hoje pela casa dos vinte terá somente remotas e primárias reminiscências dessa década. Memórias arcaicas, visões distorcidas, pouco coerentes e nada abrangentes.
Decorreram já uns bons meses desde que a (im)popular revista Wire lançou um artigo onde se debruçava sobre um novo e estranho fenómeno musical. Baptizou-o de Hypnagogic Pop. O rótulo vale o que vale, mas faz algum sentido. A hipnagogia é um estado de consciência alterado, que ocorre na transição entre a vigília física dita normal e o sono natural. Durante a permanência neste limbo, a mente humana é capaz de apreender informação, mas nunca no seu todo. O som específico de uma palavra numa frase, o eco isolado do fragmento de uma melodia, será isso que ficará registado. A memória fará o resto anulando a maior parte desses dados na sua base. Mas o que acontece se esses dados insistirem em permanecer? Aí tornar-se-ão parte de nós, transformando-se igualmente em recordações, mas imperfeitas, inacabadas, pois o cérebro não as captou em total estado de vigília.
São estes fragmentos evocativos que constróem o cerne da pop hipnagógica. Peças soltas, melodias amputadas, o todo diferente da soma das partes. Música composta a partir de samples sensoriais, captados isoladamente com 2 ou 3 anos de idade, sem se perceber o que eram na realidade. Neste sentido, êxitos orelhudos e demodé dos anos 80, passam a ser fonte de inspiração para criações artísticas. Como se o resquício de memória da primeira infância ficasse completo sendo actualizado à luz da realidade de agora. Como se recuperassem memórias de memórias. Nomes como James Ferraro (e seus desdobramentos criativos), Nite Jewel, Gary War ou Pocahaunted editam gravações em cassette e lançam sucessivas obras em CD-R. Peças urgentes ou arrastadas, estáticas e oníricas, são injectadas com partículas de qualquer êxito esquecido do Verão de 1984. O que era foleiro passa a ser inspirador. Bizarro, surreal, mas que compele estranhamente à escuta e que acaba por revelar capacidades alucinogéneas e confontar-nos com as nossas próprias memórias. Outros actos, como o belíssimo projecto Oneohtrix Point Never, Emeralds ou Ducktails centram-se em atmosferas mais ambientais, referências à electrónica alemã mais cósmica e até reabilitações futuristas da maldita New Age. Em todos está samplada a memória, o que foi filtrado antes de adormecer e ficou para sempre acordado neles, bom ou mau.
Para além da alucinação auditiva, os praticantes desta retro futurista sonoridade têm levado a cabo surreais criações visuais, especialmente no YouTube, muitas delas fascinantes. Tal como o som, também as imagens que povoam os vídeos são oníricas, espicaçando o inconsciente de cores garridas e através de formas sem conteúdo. Quase que se poderia falar numa recriação psicadélica dos anos 80, expressão que tem tanto de contraditório como de potencialidade. No caso a seguir, veja-se como Daniel Lopatin (timoneiro do projecto Oneohtrix Point Never) consegue induzir a evocação hipnagógica, bastando para isso samplar um brevíssimo excerto de Lady in Red de Chris de Burgh, associando-o a qualquer efeito televisivo state of the art gravado em Betamax há 25 anos. Os comentários de quem assistiu dizem tudo...