18 de abril de 2011

Five Aces


Não há confraria folk que se preze sem a comparência dos Fairport Convention. Com mais de 40 anos de história e mais de 25 membros nas suas fileiras, a mítica banda britânica, pioneira no tratamento eléctrico da música tradicional, não dá mostras de desistir. Mas os Fairport Convention de hoje são um agradável anacronismo. Um jarrão que fica bem continuar exposto mas cuja criatividade e importância empalideceu há décadas.
A eternidade e sacralização dos Fairport Convention erguem-se em apenas três anos. De 1968 a 1970, cinco discos magníficos chegam e sobram para sustentar e justificar a influência do grupo. É a música da América que começa por agitá-los, em emanações intermitentes de Bob Dylan e Joni Mitchell. Mas, para lá das reverências aos mestres, o primeiro álbum da banda revela sensibilidades mais psicadélicas que folk e é a obra mais fragmentada da sua quase interminável discografia.


Fairport Convention oscila entre o Sol e a Lua, entre o imediatismo de Time Will Show The Wiser ou If (Stomp) e temas mais contemplativos, como One Sure Thing, I Don't Know Where I Stand e o sublime Decameron. O igualmente excelente The Lobster mergulha-nos num escuro aquário psicadélico, enquanto Sun Shade flui como as ondas da west coast californiana. A primeira exposição dos Fairport Convention tem tanto de ingénuo como de experimental. A banda é ainda refém das suas influências, mas as composições em nome próprio vincam já algum do seu carácter. Richard Thompson sai lentamente da crisálida como um dos melhores guitarristas e compositores britânicos das últimas décadas. Este é, igualmente, o único disco do grupo que conta com Judy Dyble como vocalista. O seu registo aproxima-se de Joni Mitchell e Grace Slick, o que, apesar de agradável, não nos prepara para o assombro que estava para vir: uma doce tempestade chamada Sandy Denny.


Indubitavelmente uma das melhores vozes que a Inglaterra deu ao mundo, a jovem de formas robustas e look campestre injectou energia renovada nos Fairport Convention. What We Did On Our Holidays, segundo álbum da banda, é uma obra mais directa e sólida, em que a timidez e introspecção que povoavam grande parte do seu antecessor dão lugar a um som mais expansivo. A sombra da folk encobre cada vez mais o colectivo e o tema que abre este segundo capítulo da sua vida discográfica é a melhor porta de entrada possível. Fotheringay é o seu nome e a conjunção da voz de Sandy com a guitarra acústica parece ter sido criada para sustentar a expressão pele de galinha. Sublime, etérea e mística, Fotheringay seria suficiente para garantir o Olimpo aos Fairport Convention. Depois de recompostos da triste história de Mary, Queen of Scots, há outras delícias para descobrir. Duas versões bem conseguidas de Joni Mitchell e Bob Dylan (esta última - I'll Keep It With Mine - especialmente saborosa). Blues insular em Mr. Lacey, rock com f de folk no clássico Meet On The Ledge e duas abordagens inovadoras e igualmente electrificadas de canções tradicionais inglesas (Nottamun Town e She Moves Through The Fair). A capa do disco possui igualmente a sua história: foi desenhada a giz pelos membros da banda no quadro de uma escola, antes de um concerto.


Poucos meses depois, Unhalfbricking avança progressivamente pelos territórios da folk, quer britânica, quer americana, deixando o rock de lado em tudo excepto no suporte instrumental. Infalível do princípio ao fim, o terceiro álbum dos Fairport Convention guarda muitos dos seus melhores temas. É o disco de A Sailor's Life, revisitação épica e oceânica da canção tradicional com o mesmo nome e um dos marcos primordiais no surgimento da folk eléctrica. As revisitações e subversões do reportório dylanesco continuam, desta feita com realce para a espantosa versão de Percy's Song e a transformação de If You Gotta Go, Go Now numa espécie de canção folclórica da Bretanha francesa chamada Si Tu Dois Partir. Os dois membros mais proeminentes da banda oferecem prestações superlativas e contribuem com criações próprias da mais fina safra: Sandy Denny com os excelsos Autopsy e Who Knows Where The Time Goes?; Richard Thompson com Cajun Woman e o belíssimo (e favorito pessoal...) Genesis Hall. Se a música de Unhalfbricking é lendária, a capa que lhe dá rosto também quase algo de mítico. Os senhores da foto são os pais de Sandy Denny. A banda aparece por entre os buracos da vedação e é possível discernir com facilidade as cabeças de todos os elementos. Muita gente diz que foi propositado, os próprios dizem que foi pura coincidência. Eu também prefiro acreditar na segunda...


Ainda em 1969, um novo álbum vê a luz do dia. Os Fairport Convention viviam um período de euforia criativa e ao quarto disco alcançam o seu momento definitivo. Liege & Lief é o melhor álbum de sempre a ser rotulado folk rock. O efeito é o de um bando de jograis medievais metidos numa máquina do tempo e a quem deram instrumentos eléctricos e uma bateria para tocar umas cantigas lá do feudo. Somente três dos oito temas originais foram compostos internamente. Os restantes são adaptações ao universo rock do legado musical britânico. É isto que faz de Liege & Lief um disco único, um objecto estranhamente familiar e belo, mas igualmente atavístico e pesado como as areias do tempo. Torna-se quase impossível distinguir os temas novos dos antigos, pois todos estão embebidos no mistério da música alimentada por lendas e mitos. Matty Groves e Tam Lin são épicos e intensos, narrativas que brotam das fogueiras das muitas noites em que foram contadas e que continuam a atravessar gerações. Reynardine e The Deserter são lamentos forjados na pedra dos castelos e no verde da Inglaterra rural. Os temas compostos pela banda são igualmente afectados por este regresso ao campo, aos segredos dos bosques e ao animismo da Natureza. Come All Ye é um convite à dança sob o luar, por oposição ao recolhimento solitário de Farewell, Farewell e à melancolia outonal de Crazy Man Michael. Uma obra-prima da música inglesa, Liege & Lief mudou para sempre a forma como a música tradicional foi vista, deixando de ser uma curiosidade cultural para se tornar um elemento passível de fusão e aberto à modernidade.


É difícil para qualquer banda recuperar da perda de alguém como Sandy Denny. Os Fairport Convention não foram excepção. Esta perda (primeiro musical, depois definitiva, pois Sandy viria a falecer em 1977) é notória no quinto álbum do colectivo, Full House. Editado em 1970, é o disco feito pelos homens deixados sozinhos sem a mulher para orientar a casa. Isso resulta num trabalho mais musculado, o mais orientado para o rock até então na sua carreira, mas sem perder nada do espírito folk do seu antecessor.
Full House é estranhamente viciante. É um registo tendencialmente mais sombrio, sem a luminosidade projectada por Sandy Denny e em que as vozes são agora repartidas pelos vários membros da banda. Não faltam momentos de comunhão perfeita entre os músicos, especialmente em Doctor of Physick e Sir Patrick Spens, ambas com um violino irresistível - culpa de Dave Swabrick. Magnífico é também o entrosamento nos momentos mais sombrios e introspectivos, como Poor Will & The Jolly Hangman, Now Be Thankful e o majestosamente inebriante Sloth (muito graças à guitarra em êxtase contido de Richard Thompson). Para espíritos festivos, recomenda-se Walk Awhile e duas danças tradicionais transformadas em folk rock: Dirty Linen e a frugalmente intitulada Sir B. McKenzie's Daughter's Lament For The 77th Mounted Lancer's Retreat From The Straits Of Loch Knombe, In The Year Of Our Lord 1727, On The Occasion Of The Announcement Of Her Marriage To The Laird Of Kinleakie...
Após Full House, o percurso dos Fairport Convention tornou-se erraticamente estável. A sua história discográfica até aos dias de hoje é feita de trabalhos mais ou menos interessantes mas incomparavelmente menores que estes cinco ases saídos do mesmo baralho. De todos os elementos da banda, será Richard Thompson (que saiu logo após o término de Full House) aquele que ainda produz música relevante. E apenas Simon Nicol resta deste período imaculado...

P.S.: Este post é dedicado a um amigo que perdi hoje. Chamava-se Jimmy e era um cocker spaniel muito especial. Vivemos excelentes momentos de companheirismo. E ouvimos muitas vezes juntos os Fairport Convention...