O rasto de mistério deixado por um disco há muito considerado perdido, esquecido ou obsoleto alimenta qualquer melómano com instintos de toupeira. Trazer de volta ao mundo dos vivos estas obras suspensas no limbo musical, bizarrias únicas e raras, e descobrir os tesouros que escondem é uma tarefa louvável e infatigável.
A arqueologia dos sons agradece aos superlativos Midlake a recuperação de muitos nomes ocultos na poeira do tempo. Nomes da folk mais obscura, da country fiel às suas raízes e do psicadelismo rural. Um homem que incorpora solidamente estas características é Bob Carpenter. Redescoberto através da exposição feita pela banda americana na excelente selecção reunida para a série Late Night Tales (mais uma, alíás, na constante consistência dos seus convidados), Carpenter é membro honorário do clube dos baladeiros que só lançaram um álbum, ignorado na altura, mas objecto de culto para quem não era nascido nessa época. Foi em 1975 que este músico canadiano editou o seu opus solitarium: Silent Passage.
Disco de grandeza humilde, Silent Passage conta com a presença da ainda emergente Emmylou Harris nas vozes. E apenas viu a luz do dia em 1984, após anos de litígio editorial que votaram Carpenter ao ostracismo. O rato de discoteca que tiver a sorte de passar por ele fortuitamente, reparará quiçá no lirismo algo fantasmagórico em tons de sépia que a capa ostenta, mas é provável que não lhe dê guarida. Afinal de contas, quem é este Bob Carpenter? Terá alguma coisa a ver com os delicodoces Carpenters? Felizmente não. O senhor é um singer-songwriter de voz rústica mas expressiva, dorida mas límpida e que compõe canções de sumptuosa sinceridade. A country music é o caule de onde os ramos se espraiam. Miracle Man e Morning Train são exemplos flagrantes, temas que carregam o peso da tradição ao mesmo tempo que roem o seu cordão umbilical. First Light e Beyond My Time poderiam formar um patchwork com as peças de psicadelismo pastoral de Jimmie Spheeris e Tom Rapp. Assombradas e acinzentadas, Gypsy Boy e Down Along The Border fazem crer que o tristemente malogrado Vic Chesnutt foi algo inspirado por este disco.
Ficam para o fim duas magníficas criações: Old Friends, um misto de country e soul muito antes dos Lambchop patentearem o invento, uma canção quente no ritmo, mas fria no trompete que a rasga solitariamente. Silent Passage, o tema-título, é incontornável. O álbum vale a pena só por ela. O génio de Bob Carpenter reside aqui, nas palavras em estado bruto, soldadas à melodia bela mas agreste. Esta curta balada merecia ombrear com as melhores canções de Bob Dylan ou Townes Van Zandt...
Do rigor da tundra canadiana para o sol da Califórnia. Ted Lucas ultimava igualmente em 1975 o seu igualmente único registo. O mesmo não tem nenhum título oficial para além do nome do músico, mas há quem lhe chame The Om Album. Apesar de não ser literalmente uma experiência mística musical em torno do som primordial budista, transcendência é coisa que não falta a esta obra, sendo que as mais recentes tendências da folk sem pára-quedas a resgataram para o panteão dos Achados.
As influências de Lucas vão dos blues mais primitivos (Robin's Ride) às meditativas ragas indianas (estudou com Ravi Shankar e aprendeu bem a lição, como se constata em Love and Peace Raga). Mas o que este disco deixa para a posteridade é um conjunto de canções acústicas em que o psicadelismo se ouve sob a forma de folk e se sente como uma droga que só faz efeito através da escuta. É cinismo ou ingenuidade intitular uma canção It is so Nice to get Stoned? Pela forma como Ted Lucas a canta (e ela é belíssima) parece ser franqueza...
O álcool tem direito a menção honrosa logo a seguir em Sonny Boy Blues, devaneio que não saberia a azedo na pint de John Martyn. Mas são os cinco primeiros temas que dá gosto nomear, pela simplicidade magistral e quase minimal que os estrutura. Melodias circulares e economia de meios fazem de Plain and Sane and Simple Melody e Baby Where You Are perfeitas carícias no espírito. Now that I Know e I'll Find a Way to Carry it All deixam intuir a que soariam discos como Five Leaves Left de Nick Drake ou Whatevershebringswesing de Kevin Ayers caso tivessem sido concebidos e paridos na costa do Pacífico.
It's so Easy when You Know what You're Doing, canta Ted Lucas na canção que também se chama assim. Que grande verdade. O músico sabe bem o que está a fazer e por isso tudo flui tão facilmente e seduz-nos com idêntica mestria. Tal como o Om budista, estas pequenas mas adoráveis canções poderiam tocar infinitamente, que não deixariam de nos iluminar...